Amar também é resistir: sobre a morte e outras coisas

Guto Alves
Todo Tanto
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6 min readAug 26, 2019

Texto dedicado a Fernanda Young

Mamãe, eu nunca doí tanto. Foi assim que Estela começou seu texto em homenagem a mãe Fernanda Young, que nos deixou de forma avassaladora no final de semana. Me doeu também a morte de Fernanda. Me doeu a dor de Estela. Assim como muitas coisas têm me doído recentemente.

Morreu Fernanda Young e meu telefone e computador começaram a notificar. Que coisa triste, pensei. Morreu Fernanda. E ela virou uma notificação insistente em milhões de telefones mundo afora. Morre a escritora, roteirista, atriz, apresentadora, a louca. Morreu também a mãe de Estela e seus irmãos. A esposa do Alexandre. A vizinha de sei lá quem. Morreu também qualquer coisa naquele mesmo instante.

Mas somos incapazes de parar. Não paramos, porque o tempo não para, poeta, e nem tem certeza da continuidade. Fernanda publicou há três dias um desabafo que terminou de sua forma bem Young: Tenho 50 anos, sonhei alto, realizei muito e estou longe de encerrar minha jornada nesta orbe, ou coisa que o valha. Dois dias depois, encerrou. Ou não.

Gilberto Gil canta sobre a morte já há alguns anos. Não tem medo da morte, mas medo de morrer, sim. A morte é depois, morrer ainda é aqui. Como será isso? pensei aqui. Como será isso de morrer? E tenho pensado no que morre, em quem morre, em quem fica, o que é que fica? O que é que vai?

Na falta do que dizer claramente, sentei para escrever qualquer coisa que fosse. Viva São João, Viva qualquer coisa! Também canta Gil. A cafonice do ódio tem tomado conta do Brasil. E brasileiro que sou, afetado por essa potência da inexistência da consciência da alteridade (ufa!), me diminuo a um mamãe, nunca me doí tanto.

A dor é sintoma, mas também síntese.

A dor é a reação cabível ao que transcende o medo. A dor não é a morte, a dor é morrer. Quem fica morre um pouco. Vamos morrendo aos poucos até chegar o momento derradeiro. Eu morro um pouco quando vejo o horror se naturalizando. Eu morro um pouco quando Fernanda morre. Eu morro um pouco quando o amor passa a ser um substrato, inegável sedimento, ignorado em sua potência.

Deus parece estar morto, em chamas e pouca gente se importa. Talvez pouquíssimas realmente se importam. Aí, eu morro de novo.

Eu morro quando querem me matar, eu morro quando matam, eu morro quando a ignorância prevalece e o bom senso desaparece, c’est fini. Morro quando tenho medo, porque medo atrapalha, medo retrocede. Morro quando não escrevo, morro também quando escrevo.

Morro terrivelmente quando vejo as pessoas adoentadas, sem rumo. Todos os dias postando sem parar sobre o que nos mata, numa cadeia triste de lamentos chorosos que nos conduzem à loucura. Prisões isoladas têm se tornado as pessoas. Cada tanto no seu canto a procurar vazões, procurar amores, gozos, felicidades clandestinas.

Não aguento mais ver tanta notícia ruim, é um desabafo. Não aguento mais estar acorrentado. Não aguento mais a rotina que levamos. Não aguento mais o país em que vivemos. É uma tristeza. E dói, porque machuca mesmo. Qualquer coisa que escreva não será em vão, porque escrever cura e é libertador. Mas será em vão, porque escrever não cura e aprisiona na solidão.

Aí pensei que queria também escrever sobre o amor. As risadas que Fernanda já nos proporcionou. As raivas também. Liguei para algumas pessoas, falamos tanto sobre a vida, sobre isso ou aquilo que vale a pena. Uma me contou dos artesanatos que pretende fazer, dos livros que quer escrever e da força que pensa ter o amor.

Outra me lembrou de tempos outros em que sonhávamos coisas que hoje fazemos, que caminhos visitamos e me vi novamente sonhando, deslumbrado com a possibilidade do que pode vir a ser, do que virá. E nessa palavra insistente, o amor, vem a outra chatinha chamada resistência. Ordem indiscreta, impositiva e animosa. Ordem que nem sei muito bem o que significa, mas sei que vivo a resistir. Talvez seja resistir à morte todos os dias.

Com amor, com uma volta na rua, uma compra no supermercado, uma receita que deu certo. Tem, claro, os idiotas poderosos e seus prazeres torturantes, mas temos aqui uma caminhada que pode ser a de uma noite dançante, a de um livro lido, de uma peça de teatro que nos arremate.

Tem quem não tenha nada disso e tem a nossa luta para que tenham. E aí a gente morre de novo um pouquinho. Mas tem a luta. Tem a luz. Tem o caminho. Dia desses eu critiquei quem receitava poesia em tempos de cólera, e me peguei rindo nessa intolerância irônica: lembrei novamente do amor, para mim sempre atrelado aos tempos de cólera. O amor é poesia, nada romântico, ele é quântico.

Talvez o que falte é pegar esse caminho que é o do amor. Amor ao que a gente ama. Amor ao que nos falta, amor ao que temos, amor ao nosso corpo, amor ao que se vive. Na involuntária tentativa de abrandar a morte, ou a dor, só o amor salva. O amor-poesia. O amor-rua. O amor-resistir. O amor-luta. O amor-teatro. O amor-música. O amor-sexo. O amor-mar. O amor-você. O amor-outro.

E dentre tudo o que queria escrever, sem saber como começar, dar meio e sequer um fim, me lembrei do que me atordoa sempre, que é a face ordinária que temos numa poeira cósmica irrelevante num sistema solar dentro de um universo incrivelmente grande, poderoso e desconhecido. A empáfia.

Nas janelinhas que vejo, vejo sempre, vejo pessoas com seus amores, desamores, afetos, fazendo café, masturbando-se na solidão, uma luz colorida que pisca, um cachorro que late e abana o rabo. E eu, eu que devo ser só mais um ordinário em mais uma janela sendo observado por alguém enquanto observo. Talvez até encontre na rua, já travestido, já funcional de algo, agente de uma consciência coletiva.

No sorriso a quem me cruza o caminho, na raiva de quem me corta a palavra, na dúvida que me lança no medo, na morte que me lança na dúvida. Há, nisso tudo, o amor. Na coleira que guia o bicho, no pote que o alimenta, na chuva que cai e te lembra uma viagem. Nas fotos que nunca revisitamos, na mãe que nos ama, no amor que nos chega.

E aí, no meio disso tudo, só mais uma, mas uma fantástica unidade, Fernanda morreu. Uma função vital deixou de funcionar. Algo ali em algum instante não reagiu como devia, outro algo deixou de executar e do lado de fora o desespero a levou. O morrer e a morte. Fernanda se foi. Sua obra fica, sua imagem fica, seus filhos aí estão, mas ela não. E isso dói, com amor, mas dói.

Dói porque dor também ressonância. Dor nos lembra de dor. E dor é reação em cadeia. Por isso dizem que chorar faz bem, porque desagua a dor, desagua a pressão, ajuda a não morrer. Sentir saudade é amor com uma ponta de dor.

Com amor, somente com ele, podemos ceder ao medo, ceder à dor e nos libertarmos dessa prisão atordoada e solitária que temos nos tornado. Viver enquanto se vive só é possível se amarmos. Então, olhe para o mar, para o céu, uma folha que seja balançando insistentemente. Sorria com o nada, leia um livro, faça o que quiseres, seja o próximo, seja você dentro do outro. Vá sim ao teatro, tenha a ousadia de ser feliz enquanto tentam te destruir. Amar também é resisitr.

Texto dedicado a Fernanda Young: escritora, roteirista, atriz, apresentadora, mãe, brasileira. Uma incrível mulher de humor anárquico e ácido, de amor e ódio, de genialidade e lucidez. Para sempre em nossa orbe, longe de deixar de existir. Fernanda morreu aos 49 anos em 25 de agosto de 2019.

Guto Alves é jornalista e produtor.

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