“Não há democracia sem abolição”, diz Elisa Lucinda; confira entrevista

Guto Alves
Todo Tanto
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4 min readDec 11, 2019

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Em entrevista para o Canal Todo Tanto, Elisa Lucinda fala de sua relação com a poesia, a palavra como resistência e sobre a ancestralidade que lhe ancora: a do povo negro. Assista aqui.

Imagem: Divulgação do Programa Passagens

Quando Elisa Lucinda chega a algum lugar, o mar de Iemanjá se esparrama junto de seu corpo. É a ancestralidade, explica. “A condução do meu povo foi feita, espiritualmente, por Iemanjá. Até onde não tem mar, tem mar se eu estiver”. Sem ela, estaria sozinha. E sozinha, Elisa não anda. Filha da poesia na palavra, do Chefe do Quilombo de sua vida e da Dandara que foi sua mãe, saiu do Espírito Santo para ser no Rio de Janeiro. Ser mulher, uma resistente da palavra, do ofício e da liberdade.

Hoje aos 61 anos, se é que isso importa (ou talvez importe muito, vejamos), Elisa Lucinda está em cartaz com o sucesso “Parem de falar mal da rotina”, no Teatro João Caetano. Seu rosto, estampando o cartaz da montagem em que apresenta texto de sua autoria, pode ser encontrado cidade afora, em estações do metrô de um Rio que um dia a recebeu anonimamente. Veio de Vitória, Espírito Santo. Na bagagem, a poesia. Da poesia, a atriz, a cantora, a escritora, a mãe.

Assista aqui à entrevista de Elisa Lucinda ao Todo Tanto

Elisa, a poetisa

Ao chegar a sua casa para a entrevista, a assistente Taís (não por acaso) Espírito Santo, nos recebeu com um sorriso aberto. Elisa já vem, disse. Enquanto preparávamos o equipamento e eu o espírito, reparei em tudo de canto a canto, no esquadro que me cabia, enquanto acariciava os pelos de Adélia, sua gata. Elisa está por todos os lados: nas cores, nos desenhos, no orgulho de sua trajetória. Naquele espaço, a grandeza da artista se revela na memória. E a ancestralidade, que eu conheceria em nossa conversa, se apresenta nos detalhes.

Ouvi sua voz dos corredores, olhei curioso. Como estaria Elisa? Chegou perto de mim e me pediu logo que soprasse seus olhos, que lhe ajudasse a atirar um cisco do olho. Soprei, soprei mais forte e, assim, rindo, começamos nossa conversa. “A grande mãe daqui de casa é a poesia”. E de onde vem? Perguntei.

“Desde menina / a poesia escolheu meu coração / através de sua inconfundível mão / colheu e o fez se certificando da profundidade / e da profundeza da ocasião”, iniciou, declamando um poema que escrevera na Zambézia, em Moçambique, em bloquinho que “também era uma bolsinha”. Com este poema, decidiu responder, de uma vez por todas, como é que a poesia surgiu em sua vida.

“Vários programas na época não queriam poesia. Decidi pegar uma pergunta que todos os jornalistas me fazem, mas vou responder com um poema”, conta. Com a estratégia, passou a declamar poesia nas entrevistas em que lhe perguntavam a gênesis de sua arte. A poesia, conta Elisa, foi a grande lição de sua vida. “A poesia foi quem me fez ser conhecida. Manoel Carlos, Tizuka Yamasaki, todo mundo me viu falando poesia nos bares da zona sul”, lembra.

A ancestralidade da palavra de Elisa Lucinda

“A indiferença com a desigualdade me machuca muito. Saber que uma professora não abraça uma criança negra, não dá uma cafungada no pescoço dela como ela faz com um menino branco é como um punhal pra mim. Parece ficção”. Emocionada, Elisa Lucinda responde ao que lhe fala na dor. As lágrimas vêm ao seco do rosto que encara a câmera na luta para nos fazer entender o que é a dor da pele negra. Para Elisa, se hoje brancos despertaram para a existência do racismo, ainda ontem, onde estavam? “Parece que tinha uma nuvem no assunto. Ninguém falava”, conta.

“Um preto e uma preta tem que passar por obstáculos que um branco não passa. Como que a gente consegue? É porque nós nunca estamos sozinhos. Uma pessoa sozinha não aguentaria ser a única negra do prédio, única da escola. Para eu estar aqui hoje, muitos antepassados morreram, lutando por essa liberdade que hoje eu desfruto. Eles achavam que, um dia, um deles seria livre. Sou eu” — Elisa Lucinda

A força da ancestralidade, portanto, é o que a acompanha, é toda a força do que viveram, para que ela, hoje, pudesse ser a mulher que é, feliz no seu ofício, na sua poesia, na sua liberdade e nos seus prazeres. “Eu fui preparada pelo chefe do Quilombo, que era meu pai. E por minha Dandara, que era minha mãe”, assim se fez Elisa Lucinda no mundo. Filha de duas pessoas negras que vieram da classe operária e ascenderam economicamente pela intelectualidade. Sobre o país que atravessa um turbulento 2019, Elisa se basta: “Não há democracia sem abolição”.

Leia trechos da entrevista com Elisa Lucinda

“Não existe nada sem a memória”

“A palavra é resistência. Totalmente. Agora, com toda minha alegria, minha brincadeira, eu tenho posto fogo no parquinho. Agora que vários brancos acordaram em relação ao racismo. Agora que amigas brancas minhas estão falando sobre o namorado preto que tiveram e que o ‘tempo fechou’. (Citando Conceição Evaristo) Não é mais pra fazer menino branco dormir da casa grande, é pra incomodá-los no seu sono injusto.”

“O mar é a minha ancestralidade. A condução do meu povo foi feita, espiritualmente, por Iemanjá. Até onde não tem mar, tem mar se eu estiver.”

“Esse trabalho de transformar essa imagem em escrita é o tesão do poeta.”

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