Sobre como viver em tempos mortos

Guto Alves
Todo Tanto
Published in
6 min readApr 20, 2021

Ganhamos essa Lantana de uma pessoa muito especial, que se dedica às plantas com uma “devoção botânica”, como quem se agarra à vida. Ela veio quando nos mudamos para o apartamento novo, local onde também decidimos, por aqui, nos agarrarmos à vida, em um momento em que a morte prepondera sobre nossa existência. Aos poucos, tudo ganhou contornos elásticos e difusos, nos fazendo esquecer do que é que queríamos nos agarrar, numa mistura de dias lindos e dias feios — se é que aos dias podem ser atribuída a responsabilidade sobre a beleza de quem por eles passam — e, quando dei por mim, estava dentro de um vórtice em que era jogado a todos os lados, batendo contra a parede, me rebelando contra o real, tentando me apegar à ficção que é a beleza, não conseguindo agarrar às mãos da vida. Fui me perdendo de mim ao recolher pedaços da realidade no chão e deixando alguns outros esquecidos, caídos mesmo, achando melhor assim.

Num desses dias eu percebi que a Lantana, que chegara florida, carregada mesmo de flores, como quem dizia de sua natureza bela e definitiva, secou. Todas as folhas. Eu regava, mas ela secou. Faltou luz. Encostei nela, que estava na lavanderia, e as folhas se soltaram. Em questão de dias, ela foi das flores ao esboço vegetal que, agora, mais remetia à morte que à vida que ela carregava em seus dias gloriosos. Tirei todas as folhas secas. Fiquei com uma pena. Chorei, porque queria ter dado conta de cuidar. Queria ter dado conta de manter as flores. Aprendi sobre a luz e a levei para a janela da sala. Nua. Nenhuma folha. Nada. Seca. Morta. Como pano de fundo, na paisagem da janela onde está pendurada, um edifício se erguia: tijolos, cimento, barulho, a aridez. Todos os dias acordo com o barulho da construção. Sempre espiava a Lantana e, para minha surpresa, um belo dia ela voltou a ter folhas. Veja bem, não falo de flores, falo de folhas verdes. Ela voltou a ser verde.

O vórtice em que caímos nestes tempos sombrios, imagino, não engoliu somente a mim, minha família, meus amigos. Atingiu a todos de alguma forma. Cada escudo sentiu o peso da morte que nos assola de uma forma diferente. Até mesmo a indiferença, que é uma forma de reação, foi a opção de alguns. A indiferença diante do abandono e da morte é injusta, no entanto. Faz ser maior sobre os outros que se importam o peso a ser dividido. Assola mais a uns que a outros. Mata as flores de alguns enquanto floresce o jardim inteiro de outros. Em mim, evidenciou-se, então, com o auxílio dos muitos auxílios que tenho para passar por tudo isso, a resistência. Resistência virou palavra de ordem na realidade que se impõe, quando você sente um existir tão forte que te faz chorar — e que me desculpe Fernanda Montenegro, que certa vez deu a dica, mas chorar no banho para sair com cara limpa não facilita em nada quando se continua a chorar enquanto se enxuga.

Conversando com uma amiga, falávamos sobre ódio. Raiva. Rancor. Ela havia acabado de recuperar o marido, que fora entubado, eu havia acabado de perder um amigo — que se despediu da existência falando sobre como resistir, o que é triste, e não há beleza na tristeza. Tristeza é tristeza. Colocamos nossa raiva para fora madrugada adentro como forma de derramar, transbordar, ainda que com humor, aquilo que atrapalhava nossa resistência e nossa humanidade. Pro inferno quem romantiza o que acontece. E para o inferno quem é responsável por estarmos onde estamos. Pronto. Um passo, um dia, uma noite. O vórtice continua.

Peguei todas as plantas da casa e resolvi fazer algo que vi falarem na internet: rega de emergência. A Árvore da Felicidade, que resistia bravamente com somente um galho fraco ainda verde no topo, uma Zamioculca, que comprei por ser “a mais fácil de se cuidar”, mas que também estava morrendo, um Lírio da Paz, pelo qual tenho um especial e estranho carinho maternal, mas que deixava à própria sorte, dando somente água, e resolvi germinar grãos de milho para que o gato se distraísse com os brotos e deixasse as plantas em paz. Para além da tal rega de emergência eu decidi que era preciso alimentar, adubar. Adubei. Todas. Revirei as entranhas dos vasos, limpei as raízes, tudo com um grande amadorismo de quem tenta mesmo manejar a vida. Me dediquei ajoelhado no chão, cuidando de cada vaso como quem tentava dizer ao próprio corpo que era preciso cuidado para resistir, era preciso cuidar das raízes, era preciso cultivar para florescer, germinar, ter vida.

É difícil falar tanto em vida quando a morte nos circunda e, principalmente, o medo da morte associado ao viver. Porque é disso que se trata: para viver hoje é preciso temer. Para cuidarmos de nós e dos outros a ponto de sobrevivermos é preciso temer o inimigo. É preciso temer o tempo todo, checar a temperatura, sair com máscara, ter medo da aglomeração, checar a saturação, ligar para os pais, pedir que se cuidem, se estressar com quem não se cuida, cuidar de quem a gente ama, tudo se resume a viver com medo para tentar se proteger. Temer para viver em tempos mortos. E é com resistência que se consegue. É com amor. É apegando-se à ficção do que representa a beleza.

Num outro dia de luz, por assim dizer belo e por isso mesmo fictício, saí a pedalar pela orla, para sentir que estava tudo bem. Para fazer com que tudo estivesse tudo bem. Deixei o sol bater em meu rosto mascarado, ouvindo Ney Matogrosso, deixei o vento bater, quis ouvir o mar quebrando nas pedras da Praia do Diabo, o sol arder na minha pele, a brisa me lembrar do balneário em que vivo. Por um minuto só. Ver a beleza onde ela não existe. Por um tempinho só. Sentir nos olhos a ardência do sal. Entrei no mar de roupa. A beleza é uma ficção. Eu estava construindo a minha. Por ter direito a ela, eu a queria. Eu precisava dessa beleza calcada em mim, que me via sugado pelo deserto do real. Assim, aos poucos, percebi que, sim, o real é pesado e o cuidado se impõe. Mas que sim, apesar de toda a morte e do medo, eu estava vivo. E deveria seguir lutando para que assim me mantivesse: vivo. Mesmo que fosse o único, eu tinha de estar vivo. Foi assim que deixei o mar e voltei para casa, passei no supermercado e cozinhei.

Hoje, para minha surpresa, vi a Lantana, meses depois, está começando a florescer novamente. Depois de estar seca, de ter tido suas folhas arrancadas, sua existência ignorada ao sabor do sol e da água, depois de ter sido revirada e alimentada, devolvia ao olhar uma flor. Em resposta à morte, a vida. A Lantana resistiu. Reconfigurou sua existência, perdeu alguns galhos e resistiu. Não só resistiu, também voltou, como eu, a criar sua beleza. A dela na forma de uma flor que se abre na esperança de que mais flores nasçam. De que mais vida brote. De que o peso da morte seja mais bem distribuído e que a indiferença diminua. Resistência e esperança.

Talvez sejam meus maiores desejos, ou não os maiores, porque há abraços maiores que o mundo dos quais sinto tanta falta que quase mina tudo isso, mas os meus melhores desejos. Ver essa pequena flor brotar depois de todo esforço que eu tive para que ela existisse me faz traçar um paralelo inevitável com meus próprios esforços de cultivar a vida em mim. De resistir. De viver em tempos mortos.

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