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(Texto de Sophia Rivera Alves da Costa e Silva, pesquisadora e graduanda em Serviço Social pela UFPE).

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TRAVESTIS BRANCAS E A URGÊNCIA DE ROMPER COM A BRANCURA E OS PACTOS COLONIAIS

Me incomoda muito ver travestis brancas, assim como eu, articuladas a uma zona de conforto, fruto da colônia e mantida pela colonialidade, posição essa que vem contribuindo com uma engrenagem que permanece alvejando, em maioria, identidades negras e originárias, ainda que no território latino-americano, em especial no Brasil, nós travestis tenhamos a marca da morte atravessando nossas corporalidades a todo momento, nos recordando do projeto geno-epistemi-cida transfóbico, estrutural e estruturante, posto desde a gênese para todas nós, enquanto uma das expressões do patriarcado e tal qual o racismo.

Transicionar e travestilizar deveria ser sinônimo de rompermos com a colonialidade, ou seja, trair as expectativas, redes e acessos únicos estabelecidos pela brancura, cisgênera e burguesa. Entretanto, o que se tem visto é uma forte aderência aos moldes medicalizados, dóceis e higienizados como sinônimo de humanização, quando esses lugares, sequer, nos garantiu algo, mas já nos mostrou na história que nos mantêm controladas, adoecidas, violadas e violentadas.

As travestis, ou melhor, hoje “meninas e mulheres trans”, maior parte das que se colocam assim sendo brancas, vêm se abstendo do seu compromisso e realidade social, política e econômica enquanto TRAVESTIS brasileiras, identidade que durante os anos 70 e 80 se fazia fortemente legítima entre todas nós, na medida em que subtendia-se que a mulheridade não teria sido arquitetada para pensar nossas corporalidades e nossos projetos de sociedade e mundo. Com isso não quero dizer que a identidade travesti hoje não seja legítima ou que todas as travestis precisem estar militantes e ativistas, pelo contrário, se faz urgente a manutenção de nossas memórias e responsabilidades coletivas, tendo em vista as fortes investidas eugenistas (branca, cisgênero e burguesa), em continuidade, sobre a nossa identidade, e realidade populacional. No entanto, isso não quer dizer que travestis são obrigadas e devem assumir um compromisso de serem didáticas, mas aqui o debate não é somente sobre isso, tão pouco um papo cis-trans, é entre nós, sobre nós e para nós.

Adiante, a travestilidade informa fortemente raça, etnia, classe e território, nessa ordem é indiscutível e inegociável o reconhecimento das contribuições históricas centradas nas sujeitas negras, indígenas e periféricas para que a manutenção da identidade travesti fosse feita em nosso território, desde 1591, com o sequestro de nossa Xica Manicongo, travesti negra africana, natural do Congo, escravizada e vendida a um sapateiro na época. O que quer dizer que, na contemporaneidade, travestis negras ainda são maioria no enfrentamento, por estarem em situação de risco e vulneração social extrema, consequentemente, as que mais morrem no Brasil, sendo 80% das mortes, de acordo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais).

“Mas a maioria das travestis no Brasil vivem uma realidade de vulneração social, econômica e política!”. É verdade! Falar sobre esses marcadores para nós é de uma complexidade enorme, de fato, são poucas as nossas que se fazem presente em um lugar de prestígio, quando transicionar nos é um convite intrínseco de negação, impedimento, violência, solidão, hipersexualização, periculosidade, patologização, apagamento e morte.

Não é o meu intuito contrariar isso. Faz-se, mais do que necessário analisarmos trajetos a partir de nós mesmas, partindo de uma cosmovisão travesti.

Todavia, o que quero dizer, é que nós travestis brancas, partindo do pressuposto de que entendamos essas questões, ou no mínimo tenhamos consciência de nossa brancura, entremos em um movimento de traição desses lugares, comportamentos e lógicas estabelecidas por uma ancestralidade branca, um lugar racializado, ainda que não se perceba dessa maneira pela perspectiva hegemônica, que nos facilita acessos por dentro das entranhas e gambiarras sistêmicas.

Travestis não tem privilégio, mas sim uma dívida a ser paga pelo Brasil, porém, é inquestionável que a branquitude nos facilita conquistas e acessos, ainda que essa mesma brancura aconteça para nós a partir de outras experiências e implicações, que não cisgêneras. É sobre estabelecer outras negociações que contrariem essa brancura e toda carga colonial que a acompanha!

Lembro de uma familiar, a qual amo muito e por isso não pretendo identificar nome e parentesco, me disse, com boas intenções, assim que comecei a minha vivência travesti, que se eu quisesse ser mais bem vista teria que me vestir como as mulheres da família, me comportar de determinada maneira dentre outras coisas, e além desses esteriótipos nunca terem feito parte de mim, eu simplesmente não quis negociar com a oferta colonial, que ainda enquanto travesti jamais fosse dar certo, com a brancura que carrego poderia facilitar realmente as coisas. Uma decisão que incomodou e incomoda até hoje!

Sendo assim, trair a nossa brancura e os lugares estabelecidos pela colonialidade, sobretudo, branca e cisgênera, é fazer jus ao sangue derramado de travestis negras e indígenas, reconhecendo um legado e mantendo nosso compromisso e responsabilidade com a manutenção de nossas vidas, em especial, negras e originárias que permanecem sendo o principal alvo do modelo de sociedade e mundo branco, cisgênero e capitalista. E pôr a nossa função social em prática, para além de denunciar as mazelas estruturais, é reconhecer a nossa brancura e pensar o que estamos fazendo enquanto travestis brancas, que ainda que estejamos enfrentando de fora para dentro, também podemos, em alguma medida, desmantelar de dentro para fora.

Esse é um debate urgente entre todas nós, não podemos mais usufruir de um lugar facilmente pronunciado por nós, sem levar em consideração quais as expressões e experiências dessa travestilidade a partir de outros lugares.

Se coloquem e vivam como bem queiram, mas eu morrerei TRAVESTI, antes de tudo me questionando sobre os meus compromissos, e acima de tudo traindo as normas coloniais da brancura, seja pelo o que eu produzo, seja a forma como me comporto, como me visto, falo, com o que escolho negociar e percebo incômodo dos que carregam algo em comum comigo, a cor branca e a engrenagem política que ela produz!

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Sophia Rivera
Todos os dias um pedaço de mim escorrendo no ralo

Sou uma travesti, transfeminista interseccional, ativista dos direitos humanos e das causas LGBTQIA+, graduanda em Serviço Social e pesquis. na área de gênero.