O Fundeb pode e deve melhorar

Todos Pela Educação
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12 min readJun 11, 2018

Considerada uma das políticas mais exitosas da Educação brasileira na última década e referência internacional de equalização de oportunidades educacionais, o Fundeb tem sido objeto de um amplo debate sobre a perspectiva de sua continuidade e sobre aprimoramentos possíveis em seu desenho. Um rico diálogo entre atores de todo o campo educacional tem acompanhado a tramitação na Câmara dos Deputados da PEC nº 015/2015, que visa passar o Fundeb para a parte permanente da Constituição Federal.

Estando na parte transitória, o Fundeb atualmente tem vigência apenas até o final de 2020. Ao ser colocado na parte permanente, será transformado em política de Estado, contínua, sem extinção prevista. Dada a sua relevância em termos de redução da desigualdade educacional, há um consenso sólido de que esse movimento é positivo.

Existe ainda outro consenso que tem sido gerado ao longo das quase 30 audiências públicas sobre o Fundeb que ocorreram na Câmara Federal desde o início de 2017: o Fundeb, ao ser tornado permanente, pode e deve melhorar enquanto política pública — considerando os objetivos de qualidade e equidade educacional.

Aprimorar o Fundeb é um passo natural e necessário, tal como ocorreu em 2006, quando o Fundeb foi criado em substituição ao Fundef. Precisamos ter em conta que esse passo tem de ser dado com a segurança de evidências e de simulações de impacto, através de um processo que respeite o pluralismo de propostas, com o compromisso de manter no novo Fundeb os pilares que contribuíram para uma melhor organização do sistema educacional e para a equalização de oportunidades educacionais.

A PEC nº 015/2015, em seu texto originalmente apresentado, coloca o Fundeb tal qual funciona hoje em dia na parte permanente da Constituição. Mas as argumentações construídas ao longo das audiências subsidiaram a apresentação de um Substitutivo à PEC que traz importantes avanços. Não se pode, contudo, deixar de pontuar: também esse Substitutivo pode e deve melhorar.

Em uma perspectiva mais estrutural, o Substitutivo propõe aprimorar a lógica do Fundeb nos seus dois eixos redistributivos: na repartição dos recursos tributários entre os entes federativos de cada estado (mecanismo intraestadual) e na forma como são partilhados os recursos que a União aplica no Fundeb (a chamada “complementação da União”).

A redistribuição intraestadual de recursos.

O atual mecanismo redistributivo intraestadual do Fundeb divide, em cada um dos estados brasileiros, a soma de receitas de impostos vinculadas ao Fundo (20% do ICMS, ITR, IPI, IPVA, ITCMD, FPM, FPE e recursos da Lei Kandir) pela quantidade de matrículas que as redes de ensino têm na Educação Básica pública¹. Em cada estado, os diferentes municípios e a rede estadual passam a receber, via Fundeb, um mesmo valor por aluno.

Como o Fundeb representa cerca de 60% do investimento na Educação Básica pública brasileira, o resultado é uma profunda equalização intraestadual. Mas, por o Fundeb não ser a totalidade do financiamento educacional², há ainda uma grande desigualdade de recursos à disposição das redes de ensino que precisamos enfrentar.

A situação concreta é que municípios mais ricos, com maior atividade econômica, têm mais recursos fora do Fundeb para investir em seus estudantes. Analogamente, os mais pobres e em situações mais vulneráveis têm menos recursos para financiar a Educação. Embora o Fundeb induza uma redução da desigualdade, as diferenças se mantém efetivamente em níveis bastante elevados.

De acordo com o Estudo Técnico nº 24/2017 da Conof/CD, mesmo após a redistribuição de recursos do Fundeb, o município de Pinto Bandeira-RS tem R$ 19,5 mil para investir por aluno/ano, enquanto Turiaçu-MAtem apenas R$ 2,9 mil por aluno/ano. Dentro de um mesmo estado, Douradoquara-MG tem R$ 17,6 mil por aluno/ano, ao passo que São João da Ponte-MG tem R$ 4,4 mil por aluno/ano.

A inovação trazida pelo Substitutivo à PEC nº 015/2015 no que tange à distribuição intraestadual dos recursos é abrir a possibilidade para que redes de ensino com menor nível socioeconômico recebam do Fundeb maiores valores por aluno, o que diminuiria a distância entre mais ricos e mais pobres no financiamento da Educação.

Contudo, ainda não está claro que essa é a melhor estratégia para potencializar a redução da desigualdade intraestadual de recursos. Existem casos de munícipios com baixo nível socioeconômico da população mas arrecadação tributária relativamente alta, como Alvorada de Minas-MG, que está entre os 25% municípios de menor nível socioeconômico do país e entre os 1% municípios com maior disponibilidade de recursos (R$ 10,0 mil por aluno/ano).

Do ponto de vista da equalização de recursos, podemos incorrer no ato de dar mais recursos para entes que já têm valores mais elevados de investimento por aluno considerando a totalidade de suas fontes tributárias (alto valor aluno/ano total). Uma possibilidade alternativa para garantia de maior equidade nessa política pública seria combinar, como fatores de ponderação das matrículas, indicadores socioeconômicos com indicadores fiscais (disponibilidade de recursos e capacidade fiscal), possibilidade essa que pode e deve ser aberta no Substitutivo à PEC nº 015/2015. Essa posição foi defendida em audiência pública pelo Todos Pela Educação e tem sido apoiada por outras entidades, como a Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Complementação da União ao Fundeb.

A segunda mudança de lógica trazida pelo Substitutivo diz respeito à complementação da União. Hoje, o Governo Federal é obrigado a desembolsar o equivalente a 10% da soma dos recursos dos 27 fundos estaduais (R$ 13,6 bilhões em 2018), destinando o montante aos fundos estaduais com menores valores por aluno, de forma a igualar tais valores. Com isso, concretamente, todos os entes federativos de Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí passam a ter o mesmo valor por aluno no escopo do Fundeb, o chamado valor mínimo aluno/ano nacional.

O que é importante perceber é que a complementação da União é distribuída igualmente entre os entes federativos de um mesmo estado, de modo que alguns municípios com alta arrecadação tributária para além do Fundeb também recebem complementação da União — como Canaã dos Carajás-PA, cujo valor aluno/ano total é de R$ 7,7 mil. Enquanto isso, municípios pobres de estados com valores aluno/ano no Fundeb relativamente altos deixam de receber complementação da União — Campinápolis-MT, por exemplo, com valor aluno/ano total de R$ 3,4 mil. Ou seja, a complementação da União, em seu formato atual, é ineficiente no cumprimento do objetivo de equalização dos valores aluno/ano totais entre as redes. Citando novamente o Estudo Técnico nº 24/2017, 31% da complementação da União é distribuída de forma ineficiente.

Nesse sentido, o Substitutivo traz a perspectiva de uma nova modalidade de complementação da União, essa sim totalmente eficiente para o efeito equalizador. Em linha com as defesas feitas nas audiências públicas, a complementação passaria a ser destinada diretamente aos entes federativos com menores valores aluno/ano totais, considerando o total de receitas disponíveis. Assim, municípios pobres de estados ricos poderão receber complementação de recursos e municípios ricos de estados pobres deixariam de ter incrementos despropositados.

Contudo, a proposição contida no Substitutivo é um modelo híbrido: mantém a atual e ineficiente regra de distribuição da complementação da União para um montante equivalente a 10% da soma dos recursos dos 27 fundos estaduais do Fundeb e utiliza o novo formato para distribuir os recursos de um eventual aumento do valor de complementação. Em paralelo, o Substitutivo busca consagrar na Constituição uma triplicação do tamanho obrigatório da complementação da União — o que significaria, em 2018, um incremento de investimento federal da ordem de R$ 27,2 bilhões.

Vale explicitar: buscar que a complementação da União seja mais eficiente em seu papel redistributivo não é argumento para que se deixe de defender uma complementação com valores ampliados. Pelo contrário, uma complementação mais eficiente justifica uma majoração de seu tamanho.

Como se ecoou nas audiências públicas sobre o Fundeb, é importante caminhar no sentido de ampliar a complementação da União, buscando gerar maior equidade nas condições financeiras dos entes federativos e induzir uma maior participação do Governo Federal no financiamento da Educação Básica. Essa é, inclusive, uma forma de expandir o investimento educacional sem entrar em atrito com o teto de gastos federais (Emenda Constitucional nº 95/2016, § 6º do Art. 107 do ADCT), uma vez que a complementação da União ao Fundeb não entra no grupo de despesas limitadas.

A proposição do Substitutivo, entretanto, mostra-se se frágil, uma vez que não está acompanhada de previsão de fonte de recursos para a destinação de R$ 27,2 bilhões adicionais ao Fundeb nem de evidências justificando o valor que se propõe de aumento na complementação. É fundamental que se desenvolvam estudos robustos no sentido de completar essas lacunas argumentativas, o que sem dúvida facilitará a criação de um consenso a respeito da PEC do Fundeb no Congresso, no Executivo Federal e na sociedade civil.

Além disso, sabendo da ineficiência do atual modelo de complementação da União, não podemos manter no novo Fundeb um desenho que é fracamente equalizador, não gerando os mesmos efeitos positivos de um modelo mais eficiente. É verdade que uma mudança de formato gerará perda de recursos para alguns entes federativos, mas, se desejamos avançar no caráter redistributivo do Fundeb, é preciso defender um novo modelo em que entes mais ricos deixem de receber recursos adicionais em benefício de um maior número de entes mais pobres.

A posição do Todos Pela Educação é de que toda a complementação deve ser distribuída em um formato direto aos entes federativos que mais precisam, e não no formato híbrido que mantém distorções. Essa posição está sustentada nas evidências trazidas na tabela abaixo, construída a partir de simulações com os dados do Estudo Técnico nº 24/2017 da Conof/CD. A tabela mostra a variação em dois indicadores de equidade (colunas A e B) de acordo com formatos e valores possíveis de complementação da União. Em cada cenário, também é possível ver quantos entes são beneficiados ou prejudicados em relação ao cenário atual de complementação (colunas C e D), além do esforço fiscal adicional que se exigiria da União (E).

Tomemos como objeto de análise um cenário de adição de R$ 5,8 bilhões na complementação, a qual passaria a corresponder a 15% da soma dos fundos estaduais (linhas 3–5 da tabela). Se seguíssemos no formato atual de complementação (linha 3), lograríamos reduzir o desvio-médio em 10,3% e aumentar o menor valor aluno/ano (VAA) do país em apenas 9,3%. O formato híbrido (linha 5) melhoraria consideravelmente o efeito redistributivo (redução de 16,9% no desvio-médio e aumento de 40% do menor VAA), mas está aquém dos resultados que seriam induzidos por um formato em que toda a complementação se destinasse aos entes federativos que mais precisam (linha 4). Nesse cenário, que beneficia 2.226 entes em prejuízo de 493, chegaríamos em um menor VAA de R$ 4.133,55 (45,7% maior que o atual) e um desvio-médio de R$ 760,50 (22,2% menor que o atual). Isso sem mudar nenhuma regra de distribuição intraestadual de recursos.

Outros aprimoramentos para induzir qualidade na Educação.

Do ponto de vista das regras de distribuição financeira do Fundeb, portanto, as proposições do Substitutivo à PEC nº 015/2015 podem ser aprimoradas para que se potencialize, de forma inovadora e gradativa, a equidade no financiamento educacional. A isso se somam outras melhorias necessárias apontadas nas audiências públicas, cujos princípios devem estar inscritos na Constituição Federal para posterior detalhamento por Lei regulamentadora.

Uma dessas melhorias é a previsão constitucional de um ambiente de pactuação federativa em que se realizará o conjunto de decisões operacionais do Fundeb, cuja instância deverá ter representação tripartite dos níveis municipal, estadual e federal. Tal medida é fundamental para que o Fundeb possa ser continuamente analisado e aprimorado em colaboração entre os níveis federativos.

Hoje já existe um ambiente de pactuação federativa operando no âmbito do Fundeb, chamado de Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade. Reunindo-se anualmente, a Comissão limita-se apenas a definir os fatores de ponderação das diferentes etapas e modalidades que serão considerados no Fundeb no ano seguinte. Precisamos ampliar o escopo e o poder de atuação desse ambiente de pactuação³, sendo espaço de construção contínua de entendimentos sobre o que municípios, estados e Governo Federal podem fazer para que cada real investido na Educação se traduza melhoria da aprendizagem dos estudantes.

Há ainda um importante passo a ser dado no sentido de ampliar o controle pela sociedade da qualidade do uso dos recursos do Fundeb. Esse avanço tem alto impacto potencial na efetividade dos investimentos educacionais. Precisamos que, diferente do que ocorre hoje, o Fundeb tenha seus dados de distribuição e utilização dos recursos por ente federativo amplamente divulgados, de forma aberta e acessível para a sociedade, considerando princípios de transparência e de padronização para comparabilidade.

Não é possível saber com segurança, atualmente, quanto e como cada ente federativo investe na Educação Básica pública, em métricas que permitam que avaliemos as diferenças no território nacional. Não conseguimos saber, a partir dos dados disponíveis hoje, nem para quais ações educacionais nem para quais etapas de ensino vão os recursos do Fundeb.

Essas informações devem ser divulgadas conjuntamente com os dados de aplicação total de recursos na Educação Básica pública dos entes federativos, possibilitando a efetiva fiscalização e controle interno, externo e social dos Fundos. O desafio é descentralizar a informação de forma qualificada, induzindo maior qualidade da gestão e do controle social.

Tanto a criação de um ambiente de pactuação federativa educacional quanto a maior transparência dos dados para controle social na Educação são temas já amplamente debatidos no Congresso Nacional, mas que não estão sendo previstos no texto atual do Substitutivo.

Por outro lado, o Substitutivo propõe a inclusão na Constituição Federal de algumas medidas, paralelas ao funcionamento do Fundeb, ainda pouco discutidas e cujos impactos concretos ainda não foram bem dimensionados. Apesar de serem ideias significantes para o avanço educacional no país, há um risco claro de desorganização do sistema educacional ao se aprovar medidas sem que tenha havido o necessário debate e criação de consensos operacionais. Nesse sentido, a Câmara dos Deputados deve ficar atenta para evitar, por ora, a aprovação constitucional de temas ainda nebulosos, dando o tempo apropriado para que se amadureçam posições mais sólidas e claras.

Resumo propositivo. A tramitação da PEC nº 015/2015 é uma oportunidade evidente para que avancemos em formulações que sejam capazes de fazer avançar a qualidade e a equidade da Educação em todo o país. Felizmente esse processo tem sido acompanhado por um profundo e respeitoso debate entre parlamentares, especialistas, gestores, pesquisadores, consultores legislativos, representantes da sociedade civil e de entidades estudantis e de trabalhadores da Educação, o que tem permitido a produção de consensos fundamentais para aprimoramento do Fundeb.

Tais convergências foram apenas em parte incorporadas na apresentação de um texto Substitutivo à PEC nº 015/2015, o qual ainda pode e deve ser melhorado para que o Brasil não perca a chance de um criar um novo e melhor Fundeb — mais redistributivo, mais efetivo e indutor de maior qualidade da aprendizagem.

Para tanto, pelo menos cinco aperfeiçoamentos devem ser considerados: abrir a possibilidade de combinar fatores socioeconômicos e fiscais na redistribuição intraestadual, para dar mais recursos aos entes mais pobres; tornar o direcionamento da complementação da União mais eficiente, chegando na medida certa aos entes que mais precisam de recursos; ampliar a complementação da União de forma bem embasada; dar maior transparência aos dados do Fundeb para que o controle social seja efetivo para melhorar o uso do dinheiro; e prever a criação de um ambiente de pactuação federativa, com representação municipal, estadual e federal, de forma a garantir que o desenho operacional do Fundeb seja continuamente aprimorado e que haja estímulo à difusão de boas práticas de uso dos recursos públicos.

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¹A soma de matrículas não é uma soma simples do número de alunos nas redes, mas sim uma soma ponderada que leva em conta pesos diferentes para as etapas e modalidades da Educação Básica e para as diferenciações das matrículas em termos de localidade urbano-rural e tempo parcial-integral. Esses pesos são definidos em resoluções do Ministério da Educação com base nas determinações da lei de regulamentação do Fundeb, lei infraconstitucional que detalha o que se diz a respeito do Fundeb na Constituição Federal.

² Os municípios e estados aplicam em Educação pelo menos outros 5% do ICMS, ITR, IPI, IPVA, ITCMD, FPM, FPE e recursos da Lei Kandir, 25% do IPTU, ITBI e ISS e também os recursos relativos a transferências obrigatórias da União (como merenda e transporte escolar).

³ Esse ambiente de pactuação federativa não se precisa se ater às decisões somente do Fundeb. Pode ser o centro de difusão de boas práticas de gestão dos recursos públicos para todo o país, formulando políticas de incentivo e orientação técnica, como um elemento constitutivo do Sistema Nacional de Educação previsto no PNE — há tanto sendo debatido e cuja implementação se mostra cada vez mais urgente.

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