7 anos do direito ao casamento homoafetivo: como chegamos até aqui?

Mesmo sem uma lei específica, casamentos homo e heteroafetivos não diferem em nada na justiça

Vitor Garcia de Oliveira
TODXS
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7 min readMay 14, 2020

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Quando eu e meu companheiro decidimos morar juntos, nem sequer passou pela nossa cabeça a ideia de nos casarmos. Simplesmente, juntamos nossas coisinhas e fomos dividir o mesmo teto pela primeira vez. Isso foi em 2016. E, caso quiséssemos, isso já era um direito nosso.

Resultado de longa luta do movimento, a instituição legal do casamento nos trouxe e nos traz uma série de direitos. Mas talvez o ponto mais central seja o de nos equiparar às relações heteroafetivas, como deveria ser desde sempre.

Mas como chegamos até aqui e qual a situação atual dessa questão?

Como tudo começou no Brasil

Era maio de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a uma decisão há muito esperada pelo movimento LGBTI+: a união civil homoafetiva torna-se legal. Dessa forma, ainda que o Código Civil brasileiro na época (e ainda hoje) reconheça como entidade familiar “a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família”, casais homoafetivos passaram a ser reconhecidos legalmente como “entidade familiar apta a merecer proteção estatal”.

A partir daí, o reconhecimento desse arranjo deveria ser feito de acordo com as mesmas regras e com os mesmos resultados práticos (direitos e deveres) de qualquer união estável heteroafetiva.

O avanço ganhou um novo episódio positivo quando, com base no entendimento do STF, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, cinco meses depois, que um casal gay também tem o direito de se casar. Ainda assim, muitos casais encontravam dificuldade em converter a união estável em casamento nos cartórios, algo previsto no Código Civil.

Foi apenas em maio de 2013 que, após uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os cartórios de todo o Brasil passaram ser proibidos de recusar a realização de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou de converter em casamento a união estável homoafetiva. A decisão foi importante porque naquela época ainda não existia uma uniformidade no entendimento sobre as questões, sendo que alguns estados reconheciam e outros não.

Mas qual a importância dessas decisões?

É mais do que clara a importância, né? Mas deixa eu trazer uma história que vai exemplificar melhor isso.

Recentemente, a BBC Brasil trouxe a história de Lillian Faderman e Phyllis Irwin. Ambas trabalhavam na Universidade Estadual da Califórnia, quando se conhecerem em um projeto para abrir um programa de estudos sobre mulheres. Elas se apaixonaram e iniciaram a relação que durou quase meio século. Mas, naquele período, a homossexualidade era ilegal nos EUA.

Mesmo assim, após três anos de união, as duas decidiram ter um filho. Na época fazer uma inseminação artificial ainda era incomum, ainda mais para uma mulher solteira, como ambas precisavam se passar. Lilian porém convenceu o médico a ajudá-la, mesmo não admitindo que era lésbica. Com isso, nasceu Avrom, o único filho do casal.

Agora em uma família mais complexa, elas começaram a se preocupar com as questões burocráticas, já que não havia laços legais entre as duas e entre Phyllis e Avrom. “Todas as vezes que Avrom ficava doente e Phyllis tinha que levá-lo ao médico, ela não era legalmente sua progenitora, então eu tinha que dar um documento assinado por mim nomeando-a como responsável pela criança”, conta na reportagem. “Mas o que mais me perturbava era que, se algo acontecesse comigo, ela não teria o direito legal de reivindicá-lo como filho. Do ponto de vista legal, ela era uma estranha para ele.”

Mas elas encontraram um jeito inusitado de contornar a situação. Acontece que no estado da Califórnia, se houver um diferença de dez anos ou mais entre duas pessoas adultas, que era o caso de Lilian e Phyllis, uma pode adotar a outra. Logo, Phyllis não exitou em adotar Lilian e acabou se tornando, pela lei, avó de Avrom.

“A lei dizia que duas mulheres não podiam se casar — teríamos ficado felizes em casar — , a lei dizia que não poderia haver um segundo pai do mesmo sexo e sabíamos que tínhamos que ter um vínculo legal, pelo bem de Avrom. Então fizemos isso. Não parecia nada estranho”.

Finalmente, em 2008, a Califórnia permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Lillian e Phyllis correram para se casar no dia seguinte à legalização.

Phyllis e Lilian com Avrom, em 1979, quanto tinha 4 anos.

Mas qual é o cenário no Brasil hoje?

Basicamente, hoje todo casal homoafetivo pode oficializar legalmente a sua relação. Ainda assim, não existe qualquer lei aprovada nesse sentido. A resolução se baseia inteiramente na chamada jurisprudência, ou seja, as decisões e interpretações das leis feitas pelos tribunais superiores.

Isso explica, por exemplo, a explosão de casamentos homoafetivos nos momentos que antecederam à eleição de 2018 e a posterior vitória do atual presidente brasileiro: o medo de que esse direito fosse revertido no país, por conta do perfil LGBTfóbico da pessoa eleita para o cargo.

Ainda que a reversão de direitos adquiridos fosse muito improvável naquela época, já que seria preciso que o Congresso aprovasse uma lei proibindo a união estável ou relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, que poderia ser facilmente questionada na Justiça, o medo de perdermos o pouco que conseguimos era e continua sendo muito real entre nós. E nem sempre impossível.

Por sinal, à época, a recomendação para que as pessoas homoafetivas se casassem foi feita por diversas instituições e pela própria presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB, Maria Berenice Dias.

Além disso, uma situação geral em Santa Catarina causa estranheza atualmente: do total de 46 habilitações de casamentos homoafetivos em Florianópolis no ano de 2019, todas foram impugnadas pela promotoria da capital, responsável por fiscalizar os pedidos. Isso acontece porque os casais, sejam heterossexuais ou homossexuais, que querem se casar devem procurar um cartório para dar início ao processo de habilitação. Após publicação na imprensa local com o pedido, cabe ao Ministério Público, em até 15 dias, fiscalizar se existe algum impedimento legal para a união. O MP pode impugnar o casamento, mas a decisão final é da justiça. Nesses casos, portanto, todos os casamentos puderam ser concretizados, mas apenas após as pessoas recorrerem à Justiça.

O titular da unidade, promotor Henrique Limongi, se opõe às solicitações, usando como justificativa a Constituição Federal de 1988, e diz não agir por homofobia.

Para evitar questões como essa, é importantíssimo que o casamento homoafetivo vire lei no país. Por sinal, desde 2011, roda no Congresso um projeto de lei que mudaria o Código Civil para retirar menções de gênero em relação ao casamento e à união estável — como dissemos hoje, a lei fala em “homem e mulher”. O projeto de lei nº 612, de autoria da senadora Marta Suplicy, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas ainda não foi enviada para votação na Câmara, em especial devido à atuação da bancada evangélica. Para que vire lei, o projeto precisa ser aprovado nas duas Casas do Legislativo, além de passar por sanção presidencial.

Episódio da websérie “Resistindo ao Retrocesso” mostra como o discurso do atual presidente ecoou na sociedade e qual sua relação com a “corrida” de alguns para se casar no período eleitoral e o aumento da violência contra a população LGBTI+.

Mas vem cá, qual a situação para outros arranjos de relacionamentos no Brasil?

A Constituição brasileira entende família com base em apenas três modelos: o relacionamento decorrente de casamento, a família formada por meio da união estável e a chamada “entidade familiar monoparental”, quando apenas uma das pessoas fica com o filho/filha/filhe.

Dessa forma, embora hajam relacionamentos com três ou mais pessoas, a lei brasileira não os reconhece como família. Alguns casos bem pontuais de oficialização de união entre três pessoas chegaram a ser realizados no passado, mas desde a publicação de uma decisão do CNJ em junho de 2018, os cartórios estão proibidos de registrar escrituras de uniões com mais de 2 pessoas.

Além dessa questão de casamentos com mais de uma pessoa, existe o caso de relacionamentos que optaram por ser abertos. Uma reportagem da Revista Galileu, por exemplo, mostrou um estudo da Universidade Estadual de San Francisco (EUA) que acompanhou 556 casais de homens durante três anos e descobriu que 50% deles faziam sexo fora do casamento com aprovação total do parceiro. Uma outra pesquisa, dessa vez da consultoria YouGov, feita em 2016 nos Estados Unidos, apontou que 17% dos participantes de 18 a 44 anos disseram já ter tido relações sexuais com outra pessoa com o consentimento do parceiro.

Dessa forma, embora o movimento LGBTI+ tenha lutado muito para avançarmos no direitos de casais homoafetivos se casarem, se fechar a um modelo tradicional, pautado muitas vezes na mesma lógica heternomativa e monogâmica, seria simplista.

Por isso, vem com a gente conhecer alguns modelos familiares lindos:

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