Cena do filme ‘Moonlight’

‘Além de preto, é viado’: a discriminação racial dentro da comunidade LGBTI+

TODXS
TODXS
Published in
5 min readMay 30, 2018

--

Ser uma pessoa negra no Brasil significa receber menos, ter menos oportunidades de emprego, sofrer discriminação e conviver com a violência. São registrados 1.210 boletins de ocorrência relacionados ao crime de racismo só no estado de São Paulo, segundo levantamento do UOL. Negros e negras representam 71% das vítimas de homicídio e 64% da população carcerária no país.

Ser uma pessoa negra e LGBTI+ é acumular vivências distintas, mas igualmente opressoras: é conviver com a LGBTIfobia entre as pessoas negras e conviver com o racismo junto a pessoas LGBTI+. Discutir essa vivência é essencial. Por isso, Bruno Nzinga Ribeiro, mestrando em antropologia social na UNICAMP, foi o convidado do primeiro TODXS Café de 2018 no dia 22/05, em Campinas. Aqui, separamos alguns destaques da discussão, que foi transmitida ao vivo e se encontra na íntegra aqui.

Bruno Nzinga Ribeiro, palestrante do Café. Reprodução: Facebook

“Não dá pra separar a experiência de ser negro, LGBTI, ou de gênero. Não estamos divididos, as diferenças estão se construindo a todo momento”

RACISMO E LGBTIFOBIA

Além de preto, é viado. Além de preta, é sapatão.

Essas colocações, segundo Bruno, são extremamente comuns ao se referirem a pessoas negras LGBTI+. Inclusive, ele próprio já ouviu discriminações explícitas desse tipo. Ele lembra que é quase como se fosse um lugar de negação, citando uma frase de Rupaul. Em 2016, ele expôs no Twitter que foi rejeitado por brancos por ser negro, por negros por ser gay, e pelos gays por ser afeminado.

Dentro da discussão racial, há uma série de estereótipos carregados de conotação sexual relacionados a pessoa negros, principalmente objetificando corpos. Bruno lembra também que é necessário desnaturalizar esse comportamento e o olhar viciado. Por isso, é necessário pensar a experiência da sexualidade para além do sexo. Um desses estereótipos é o da cobrança de uma masculinidade exacerbada de homens negros, tanto da sociedade quanto dentro da família, desde a infância. Isso acaba reforçando a violência quando eles acabam não se identificando com a masculinidade ou mesmo por se interessarem por outros homens.

Uma representação dessa vivência, lembra Bruno, é a Carta Aberta de um Negro Homossexual, de Arthur Romeu.

GENOCÍDIO DO POVO NEGRO

Marielle Franco, Luana Barbosa, Matheusa. Essas são apenas algumas pessoas negras e da comunidade LGBTI+ assassinadas nos últimos dois anos, citadas por Bruno para lembrar da violência. Ele também lembrou do caso de Daniel Marques, poeta periférico, para reafirmar que a violência sofrida pela população negra e LGBTI+ não é apenas física, mas também psicológica.

Não é um tiro, uma facada. São vinte, é tortura física, precisamos acabar com aquele corpo porque o odiamos. O Brasil é o país que mata um menino negro a cada 23 minutos. Esse assunto é pesado, mas a gente não está tratando dele. É necessário pensar em como agir, em saídas coletivas. A gente é letrado para ser racista e não se dá conta disso; a gente é letrado para ser LGBTIfóbico. Precisamos pensar em práticas pedagógicas de diversidade, anti racistas, dar outra possibilidade de referência para as pessoas.

REFERÊNCIAS NA MÍDIA: ANTES E HOJE

Bruno relata que, quando tinha cinco ou seis anos, a única referência de pessoa negra LGBTI+ que tinha na grande mídia era a Vera Verão, interpretação do ator Jorge Lafond. Outro momento que marcou foi a frase do personagem Gay Magnólia, interpretado pelo comediante Tutuca: “Bicha não morre, bicha vira purpurina”. O questionamento é o fato de, por anos, as poucas referências estarem sempre associadas ao humor e a chacota.

Não entendia o que as pessoas queriam dizer com isso, e encontrei essa resposta vendo a Vera Verão. Anos mais tarde, percebi que bicha não vira purpurina, bicha morre mesmo

Felizmente, Bruno vê avanços em termos de representatividade, citado o filme Moonlight — primeiro filme produzido por um negro a ganhar como Melhor Filme no Oscar de 2017. A história do longa é baseada na experiência de relacionamento entre dois homens negros. Por fugir de estereótipos, mostrando os protagonistas como seres humanos, de afeto, família, desejos e falhas, o longo acaba por humanizar a experiência, sem cair na construção da imagem de herói.

Cena de Moonlight. Reprodução: YouTube

Outras referências atuais e que levam essa pauta são Mc Linn da Quebrada, Rico Dalasam, Gloria Groove e Luana Hansen, que participou do TODXS Conecta 2017.

Gloria Groove e Luana Hansen. Reprodução: Facebook

Na literatura, ele cita James Baldwin e Alice Walker, autora do “A cor púrpura”, livro ganhador do Pulitzer.

O que os dois [autores] têm em comum é que, para além da temática negra e LGBTI+, são livros sobre experiências humanas e humanizadas, de pessoas negras e que se relacionavam com pessoas negras, com suas incoerências, em um lugar a partir do afeto.

DESNATURALIZAR OS ESPAÇOS

A compreensão mais ampla da opressão, de suas interseccionalidades e particularidades ajuda a entender a falta de pessoas negras em determinados espaços, como na Academia e mesmo dentro do movimento LGBTI+. “Pensando no movimento LGBTI+: quem são as figuras proeminentes? Cadê as pessoas negras? É preciso entender o racismo nesses espaços, não é por acaso, não é por falta de pessoas negras, é porque o racismo impede desde a formação. É a luta cotidiana pela vida da população negra. Quais são os espaços para LGBTI+ negros no mundo do trabalho? Na maioria das vezes, é no call center, que você não precisa ver, é só uma voz”. A partir do momento em que entendemos a ausência ou presença de grupos em espaços, é possível desnaturalizar-los e discutir de forma mais profunda o que significa exclusão.

CRIMINALIZAÇÃO DA LGBTIFOBIA

Para Bruno, a criminalização da LGBTIfobia não é a melhor saída. Ele acredita que é necessário pensar melhor, principalmente considerando o que é a política de encarceramento em massa do país hoje.

Não sei se a criminalização é a melhor saída, discordo dessa perspectiva. Porque, se tem um alvo para qualquer tipo de criminalização, são os negros. Por isso, precisamos pensar esses debates com mais calma.

TODXS CAFÉ

Você curte ver um debate engajado, com muita informação relevante e a respeito da comunidade LGBTI+? Resumidamente, esse é o TODXS Café. Chamamos uma pessoa LGBTI+ para abordar algum tema em específico. Em outras edições, por exemplo, já abordamos a questão do nome social para pessoas trans com a Robeyoncé Lima, primeira advogada trans de Pernambuco:

Fique de olho nas nossas redes sociais e site para acompanhar as próximas edições!

--

--