Amarelo, bissexual e não-binário

Reflexões sobre não lugares, ou lugares muito bem definidos

TODXS
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5 min readJun 18, 2021

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por S.P. Takeuti

Você também pode ouvir este texto no segundo episódio do TODXS Podcast!

TENSIONAMENTO 1: RAÇA

Quando tinha uns 10 anos, lembro de ver um tio contando de quando renovou um documento. A pessoa no cartório o classificou como branco no campo de raça. “Olha pra mim! Olha meu sobrenome! Eu sou amarelo!”, ele disse, ou algo assim.

Enfatizou o sobrenome paterno e como, na leitura dele, aquilo era importante para sua percepção, fosse própria ou de outras pessoas, como amarelo. Meu sobrenome materno é amarelo, mas o paterno é branco.

Fiquei pensando nisso, porque claramente não era branca aos olhos da vizinhança branca do meu pai, embora a pergunta “Você é mestiça, né?” parecesse quase obrigatória toda vez que encontrava uma pessoa Nikkei fora do meu círculo de convivência cotidiano.

Falo especificamente de nipo-brasileiras porque meu convívio com pessoas de outras ascendências leste-asiáticas sempre foi muito limitado e recente, e talvez até por isso, sem muitas tensões.

Desde o início da pandemia, jornais brasileiros e estrangeiros noticiam o aumento de casos de racismo contra pessoas amarelas. Obrigatoriedade dos protocolos de higiene em certos locais antes que fossem amplamente adotados, falas que sugeriam que éramos o próprio vírus, ações que procuravam nos higienizar.

Desde o início da pandemia também, li diversas vezes pelas redes sociais que pessoas amarelas são materialmente ou fenotipicamente brancas. Sim, foi nosso fenótipo branco que fez pessoas brancas mandarem a gente voltar para o que diziam ser a nossa terra! Como adivinhou?

Mas é que se a gente não faz parte das três raças que compuseram o Brasil, não devemos existir aqui, certo? Isso explica a surpresa de uma criança que disse com claro entusiasmo uma vez para sua mãe “Olha, mamãe! Chinesas!” quando passeava no interior de Minas antes da pandemia.

Ou então, a facilidade com quem diversas pessoas já adultas que me gritaram “Sayonara! Arigatou! Itadakimasu!” (o que se traduz por “Adeus! ‘Brigade! Humildemente recebo [a refeição que estou prestes a comer]!”) ou perguntaram como se diz bom dia em japonês sem nunca termos nos visto antes na vida.

TENSIONAMENTO 2: SEXUALIDADE

Tinha 13 anos quando questionaram minha sexualidade pela primeira vez. Digo isso porque foi uma amiga que sugeriu que eu gostava de uma pessoa quando lhe contei sobre ela, o que nunca tinha me passado pela cabeça.

Não tive grandes dificuldades de aceitar minha bissexualidade, embora o “Beijar pessoas do mesmo sexo tá na moda” vindo de alguém próximo ainda ressoasse na minha cabeça.

Foi apenas com o tempo que percebi como é recorrente assumir que qualquer sexualidade monodissidente é moda, uma fase. Foi apenas na faculdade que, embora já imaginasse, a semelhança das narrativas sobre pessoas que não se relacionam afetiva e/ou sexualmente de forma que pode ser colocada como homo ou heterossexual se materializou para mim.

Procurava filmes para uma pesquisa sobre essas histórias e tantas vezes me peguei não aguentando mais a simples ideia de que tinha de ver mais um, porque chances eram, não mudaria muita coisa. É uma fase, um experimento, um desvio de caráter, uma coisa que não se nomeia, uma homossexualidade renegada.

TENSIONAMENTO 3: GÊNERO

Não me perguntem meu gênero se quiserem saber algo além de ele não ser binário. Tenho minhas identificações com outros nomes, mas não são muito importantes. Talvez consiga pensar mais sobre isso quando não tiver mais que ler mesmo em estudos sobre não-binariedade que uma pessoa transmasculina é do “sexo feminino”.

Por que um genital é feminino se não pertence a uma pessoa de identidade feminina? Talvez consiga pensar mais sobre isso quando não tiver mais que ouvir que pessoas trans nasceram no corpo errado.

Se o corpo certo é o cis, e se na lógica da cisgeneridade apenas há dois gêneros, dois sexos, dois corpos, uma pessoa não-binária não pode ter nascido “no corpo errado” porque sequer há um “corpo certo” que nos cabe.

Talvez consiga pensar mais sobre isso quando não tiver de resgatar primeiramente ideias básicas, já tanto discutidas e estudadas nas ciências sociais, para pessoas bem estudadas, como que gênero é construção social, então não, “homem” e “mulher” não foram simplesmente colhidos da natureza, como a cisgeneridade gosta de dar a entender.

CRUZAMENTOS

Em março de 2021, o Grupo Amazônida de Estudos sobre Bissexualidade realizou um encontro para discutir não-binariedade e bissexualidade. Não foi difícil traçar paralelos. A exigência da escolha de “um dos lados”, fosse homo/hetero ou homem/mulher.

O apagamento, mesmo de teorias de gênero e sexualidade mais progressistas, por assim dizer. Aquela famigerada fala sobre como “bi” remete a dois, logo a bissexualidade é binária, embora nos anos 1990 o Manifesto Bissexual argumentasse o contrário.

E mesmo se não o fizesse, não existem sexualidades sem pessoas, e, portanto, não são as sexualidades que são ou não transfóbicas, mas as pessoas que as discursam, seja de uma perspectiva de identificação ou de acusação.

Esses apagamentos, de alguma forma, sempre me remeteram ao fato de que não sou branca o suficiente para a branquitude, nem amarela o suficiente para algumas pessoas Nikkei. Era “a japa” para algumas pessoas brancas que me rodeiam, mas usar meu nome japonês/nome social ninguém quer, né?

É o nome estranho, o estrangeiro, o que não usamos desde que era criança, e não me incomodo que usem o de registro, então não precisa. Mas sequer é um nome difícil para pronúncia brasileira. Não sou trans o suficiente, nem minha sexualidade é dissidente o suficiente, embora também não seja um modelo a ser seguido, pelos olhos da cisheteronorma.

Círculo nesse conjunto que há quem pense como não lugares, mas que também podem ser entendidos como lugares muito bem definidos, deliberadamente ignorados, ou quando discutidos, frequentemente colocados como fronteiriços entre a cisheteronorma branca e as dissidências.

Lugares às vezes percebidos, por pessoas que não os habitam, como perto de casa, mas nos quais sempre há algo estranho, que não pertence completamente àquele lugar. Mas são sempre lugares, que embora com suas diferenças e mesmo privilégios, no caso racial, se comunicam muito melhor com outros lugares dissidentes que com normativos.

“Amarelo, bissexual e não-binário: reflexões sobre não lugares, ou lugares muito bem definidos” foi o 1º colocado na 1ª edição do Prêmio LiteraTODXS, a premiação literária da TODXS para pessoas não-brancas.

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