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10 min readNov 30, 2020

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Por Pris Rosso

Novembro é um mês dedicado para a visibilidade da população e da luta das pessoas negras no Brasil. Temos, inclusive, o dia Nacional da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de Novembro, simbolicamente considerado o dia da morte de Zumbi dos Palmares, um dos principais responsáveis pelo Quilombo dos Palmares, importante resistência contra a escravidão.

Pensando nisso, a TODXS Consultoria convidou pessoas membras da TODXS que foram beneficiárias da Política de Cotas no Ensino Superior (Lei nº 12.711/2012), uma das principais políticas afirmativas do país, para contarem um pouco sobre a sua experiência com essa política. Vale ressaltar que a Política de Cotas não é exclusiva para pessoas negras, abrangendo também pessoas indígenas e pardas.

  1. Em qual período você foi uma pessoa beneficiada pela Política de Cotas? Alessandro: 2015/2 a 2019/2

Iveli: Do início do 2011 até o primeiro semestre de 2017. Eu entrei na faculdade justamente no primeiro ano que a minha universidade decidiu adotar um programa de cotas para estudantes de escolas públicas e de cotas raciais para estudantes pretos, pardos e indígenas que vieram de escolas públicas.

2. Para qual curso?

Alessandro: Administração

Iveli: Eu me formei em Engenharia Civil pela UFSCar.

3. Você teve contato com outras pessoas cotistas enquanto realizava o seu curso?

Alessandro: Pouco, pois eram de outros cursos. O meu curso, Administração, era um curso muito branco, pois a faculdade onde estudei é considerada de elite.

Iveli: Sim, a maior parte dos meu amigos e colegas durante a graduação eram pessoas cotistas também. Eu acredito que a gente acabou se aproximando por ter passado pelas mesmas experiências e por ter vindo de realidades parecidas.

4. Você considera que foi uma experiência positiva?

Alessandro: Não, não foi; tanto que estou rumo à segunda graduação via CEDERJ (graduação em universidades públicas, só que à distância), de forma a tentar ressignificar esse período que deveria ter sido mágico, mas não foi.

Iveli: Para mim, foi uma experiência positiva. Eu fiquei muito feliz quando entrei na graduação e descobri que 20% dos 80 estudantes do curso de Engenharia Civil eram cotistas. Por outro lado, com o passar dos anos eu percebia que meus colegas cotistas não conseguiam aproveitar todas as oportunidades legais que o ambiente universitário oferece. Entre 2014 e 2015, eu fui uma das beneficiárias do programa “Ciências sem Fronteiras” — um programa realizado pelo governo federal e pela Capes — e tive a oportunidade de estudar por um ano numa universidade nos Estados Unidos. Um dos requisitos para participar do programa, além de boas notas na graduação, era o domínio de uma língua estrangeira (geralmente inglês, espanhol ou alemão) no mínimo num nível intermediário. Enquanto alguns colegas de curso estavam fazendo aula particular à noite para se preparar para o TOEFL (exame de certificação da língua inglesa), outros sequer iriam tentar participar do programa porque nunca fizeram um cursinho de inglês. Com o passar dos anos essas diferenças foram ficando mais evidentes e com frequência eu percebia que era sempre a única pessoa negra no ambiente. Enquanto alguns estavam aprendendo o segundo idioma estrangeiro, fazendo iniciação científica, participando da empresa júnior do curso, eu via outros colegas trabalhando o final de semana todo em festas universitárias para poder se sustentar na cidade. Adivinha a cor da pele dos que estavam investindo no seu desenvolvimento pessoal e dos que precisavam trabalhar porque os pais não davam conta de bancá-los?

Existiu uma política para a facilitar a entrada de pessoas negras e indígenas nos ambiente acadêmicos, mas as políticas de permanência para nós deixou a desejar.

5. Você sofreu algum tipo de preconceito enquanto pessoa beneficiada pela política? Ou viu outra pessoa sofrer?

Alessandro: Sim; pessoas negras (tanto pardas, meu caso, quanto pretos retintos) eram raríssimos dentro da instituição. Sendo eu de uma cidade da baixada fluminense, periférico, simples, era bem comum um professor cismar comigo sem eu ter feito nada, me olhar torto, fazer comentários desdenhosos sobre minha cidade, pessoas mais pobres, beneficiários do bolsa família e afins. Tinha um professor, inclusive, que me perseguia. Bem famoso na mídia, inclusive. Uma vez ele já chegou a fazer uma ‘piada’ na frente de todos perguntando se eu “dormi na instituição”, pois segundo ele, se surpreendeu em me ver ali, às 7h30, para fazer a prova. (sendo que nunca me atrasei). Uma vez ele contou uma ‘’piada’’ sobre uma vez em que ele foi dar um conselho para uma ex-aluna classe média que havia começado a trabalhar numa empresa de Nova Iguaçu, que ficava na Dutra, que disse que estava com dificuldade de se enturmar com o pessoal “chão de fábrica”. Ele disse que a sugeriu descer do carro uns metros antes da empresa, dar uma ‘corridinha’ para que ela chegasse no trabalho suada como os demais.

Iveli: Não diretamente, mas ouvi várias falas preconceituosas sobre a política de cotas raciais. Eu lembro que na época em que se discutia sobre a lei de cotas, muitas pessoas fizeram chacota da proposta. Até meus professores do ensino médio ridicularizam o programa, mesmo lecionando para estudantes de escola pública. Para eles, ingressar numa universidade dessa forma era quase como trapacear.

Apesar de nunca ter ouvido qualquer comentário sobre ter ingressado no meu curso como cotista, é preciso ressaltar que o racismo e o preconceito social está muito presente no ambiente universitário. Foram incontáveis as vezes que ouvi falas preconceituosas tanto de professores quanto de colegas brancos que eram muito próximos. Com o passar do tempo, eu fui me tornando uma pessoa politizada e esses deslizes começaram a ficar mais evidentes para mim.

No meu caso, as piadas eram sempre sobre o meu cabelo. Na época que eu coloquei mega-hair, meu melhor amigo na época disse que eu fiquei com “cara de mãe solteira pobre”. Um amigo do intercâmbio ganhou o apelido entre meus colegas de “Classe C”. Outra amiga negra muito próxima, que inclusive estudou a vida inteira em escola particular, me contou que toda vez que entrava na sala de aula as pessoas começavam a cantar funk para ela. Para eles, não faz muito diferença: se a pessoa é negra, provavelmente é pobre e veio da favela.

6. Você mudaria alguma coisa na política de cotas se tivesse a possibilidade?

Alessandro: Sim: oferecer bolsa permanência a quem entrar na universidade via cotas, pois quando eu entrei lá, via ProUni, acreditava que estava elegível à bolsa permanência, porém uma questão relacionada a carga horária do meu curso me fez inelegível a bolsa (havia no edital do ProUni um critério de carga horária mínima diária). Como a questão da cor/raça no Brasil está diretamente relacionada à renda, vulnerabilidade social, acho que da maneira como funciona hoje em dia não está muito ‘redondo’. Faltou muito pouco para que eu não largasse a faculdade. Pois 1) Já cheguei a ficar no Centro do RIo sozinho, na madrugada, de um dia pro outro porque não tinha passagem para ir para casa e retornar e tinha teste no dia seguinte. 2) E por muito tempo eu precisei decidir que dia da semana eu iria faltar por falta de passagem. O bilhete único quando eu comecei a estudar era menos de 5 reais, no final da graduação já estava 8,50!!!; 3) Para estar na faculdade às 7h30, precisava acordar 4h30 no máximo, pegar o ônibus antes das 5h (Nova Iguaçu x Rio de Janeiro), além disso havia dias na semana em que eu tinha aulas à noite que acabavam 22h50; 4) Meu bairro era e é muito perigoso, então já cheguei aqui durante operação policial, tiros. 5) Meu irmão foi vítima da violência no meu bairro e por pouco não morreu. Não justificaram minha falta na 1a aula nesse dia — quem vê esses professores na televisão (no GloboNews, Globo..), grande parte dos que estudei, não imaginam o quão desumanos eles são; 6) Eu não tinha dinheiro para comer no início da graduação, antes de começar estagiar (a partir do 4° período) então ficava lá o dia todo com fome. Na maioria das vezes eu já saía de casa com fome, só com um copo de café no estômago. Só comia ao chegar em casa!!! (tinha dias que chegava aqui às 0h, 0h30, comia rápido, em pé e ia dormir — quando não tava em semana de provas — — para levantar às 4h,4h30)

Iveli: A política de cotas foi um marco muito importante, mas acho que pecou nas políticas de permanência. Só assim, todos os alunos poderão lutar em pé de igualdade.

7. Você considera ou percebe que essa política tem impacto no mercado de trabalho?

Alessandro: Sim. Em 2015 eu não via isso no mercado de trabalho, apenas no âmbito acadêmico, porém hoje em dia é possível ver isso sim em diversas empresas, até nas mais elitistas e de quase impossível acesso para quem vem da periferia. Por exemplo, eu estou participando de um processo seletivo para uma das minhas empresas dos sonhos (que eu já tinha desistido de tentar entrar), e esse processo é exclusivo para pessoas negras, e ainda há um recorte LGBTI+.

Iveli: Um pouco, mas ainda não o suficiente. Apesar do percentual de pessoas negras formadas nas universidades ter sido muito maior do que nas últimas décadas, a minha impressão é que as empresas têm dado passos muito tímidos para incluir essas pessoas no mercado de trabalho.

8. Você acredita que a política te beneficiou no mercado de trabalho?

Alessandro: Até agora não; eu trabalhei em duas seguradoras. Tá para existir ambiente mais hétero cisnormativo, branco e classe média. Para entrar na primeira seguradora precisei fazer parte de um laboratório de inovação (parceria da minha universidade com a seguradora em questão), e mesmo assim não entrei de cara. Me senti preterido. Eu entrei numa vaga que surgiu depois (‘’repescagem’’). Já na 2a experiência me escolheram por já ter a experiência no cargo e no setor e por não estarem a fim de ensinar outra pessoa do zero. Algo que sempre buscaram deixar em evidência.
O local onde eu estudava vinha antes de mim enquanto pessoa. Inclusive, as pessoas na empresa ficavam chocadas quando descobriam que eu estudava naquela instituição, tipo “VOCÊ estuda lá?” e vez ou outra eu sentia como pela maneira de falar estavam querendo pôr em xeque isso: se eu de fato era bom, se consegui por “mérito” ou se consegui essa oportunidade por algum erro de sistema ou algo do tipo.

Era raríssimo encontrar pessoas pretas dentro da companhia, tal como é nos bancos, corretoras… Porém, esperançosamente, acho que isso está começando a mudar (vide o relato sobre esse processo que estou participando), mas é algo muito tímido ainda.

Iveli: Com certeza. Se não fosse o Sisu e a política de cotas provavelmente eu não teria estudado numa universidade pública. Estar na universidade me abriu um leque de oportunidades que provavelmente eu não teria se estivesse estudando à noite e trabalhando durante o dia para bancar a mensalidade da faculdade.

Eu tive oportunidade de melhorar meu inglês, fiz intercâmbio com custeio do governo federal, estagiei dentro da universidade, participei de projetos de extensão. Todas essas experiências expandiram os meus horizontes e me enriqueceram como profissional.

9. Você acredita que a sua experiência de gênero teve alguma influência neste processo?

Alessandro: Acredito que sim; pois eu, devido a minha sexualidade, e também bastante exposição num ambiente acadêmico e de negócios totalmente diferente do meu (social, geográfica e financeiramente), acredito que acabei incorporando certos trejeitos e adotando certos códigos subconscientemente para ser aceito pela branquitude nesses espaços. Por exemplo: homens negros são comumente vistos como ameaça nesses espaços. Eu, por exemplo, fiquei 1 ano inteiro na graduação sem ter amigos, grupinhos. Só foram falar comigo pois salvei a pele da galera numa disciplina difícil. Nesse período, quando entrei na Empresa Júnior certa vez uns colegas acabaram soltando que sentiam medo de mim, que eu parecia ameaçador, intimidador, cara de ‘matador’, ‘segurança de baile’, ‘psicopata’ e afins, apesar de eu nunca sequer ter batido boca com ninguém nem nada do tipo..
Acredito que depois desse feedback eu passei a me adaptar e agir de maneira que eles começaram a me ver menos como ameaça.
O fator sexualidade considero que foi um ponto positivo ao meu favor nesse quesito, pois quanto mais virilidade um homem negro demonstra, mais ameaçador a sociedade o classifica; eu, por performar um comportamento mais misto (não tão feminino, não tão masculino; “gay discreto”, “gay fora do meio”, na época), além de ser um negro menos retinto (sou pardo). E, claro, o fato de ser homem. Diversas pesquisas, estudos demonstram explicitamente que a mulher negra é quem mais sofre opressão (entre homens e mulheres brancos e não-brancos) e a mais preterida no mercado de trabalho, principalmente no ambiente corporativo.

Já dentro da esfera acadêmica, eu acredito que a minha experiência de gênero, diferente do mercado de trabalho, foi algo que impactou negativamente: na minha percepção (cruzada também com dados do Censo de Educação Superior 2018, do INEP), há uma maior pressão sobre os homens negros quando o assunto é educação superior: como bem disse o MV Biel no Altas Horas (https://www.youtube.com/watch?v=YNdNJRB1Dt4), os nossos pais (pai de preto periférico) fica é feliz quando a gente descola um trampo, ajuda na casa.. Seja o trabalho que for, insalubre ou não, desde que honesto. O filho estar fazendo faculdade, para muitos pais e familiares, às vezes é visto de maneira até negativa. Eu não me sentia motivado pela minha família em relação a isso. Eu precisei contar comigo mesmo durante grande parte da jornada. Minha mãe só foi respeitar minha escolha quando consegui um estágio quase na metade da graduação (4° periodo) e comecei a pagar minha condução, botar comida na mesa e etc. Não é que nossos pais sejam ruins ou algo do tipo, e sim porque não tem exemplos de pessoas nas suas famílias que tiveram a vida mudada por meio da educação.

Iveli: Sendo uma mulher aplicando para curso de engenharia, eu já imaginava o que me esperava na universidade. Eu já estava pronta para os comentários de que lugar de mulher não era na engenharia e acredito que por esse motivo esse tipo de piada nunca me incomodou tanto. Isso só me deixou realmente frustrada quando no penúltimo ano um dos professores enfatizou muito que as mulheres do curso só poderiam trabalhar em escritório e com projetos. Na época, eu tinha muita vontade de trabalhar em obra ou em áreas mais práticas. Meu sonho era usar o capacete branco e ir a campo. Essa frustração fez com que eu trocasse de área e desistisse de atuar como engenheira civil depois da minha formação.

Gostaria de agradecer publicamente ao Alessandro e à Iveli por compartilharem com a gente as suas experiências com a Política de Cotas, mesmo as que não foram tão positivas. Esperamos que esse conteúdo possa desmistificar um pouco o universo das cotas raciais no Brasil e nos ajudar a pensar em melhorias para o futuro.

A TODXS tem diversos projetos ligados à promoção da Diversidade e da Inclusão dentro das Universidades. Já a TODXS Consultoria tem atuado com as empresas juniores, principalmente, para promover D&I dentro dos espaços universitários.

Caso você tenha interesse, entre em contato com a TODXS e saiba mais sobre o trabalho da Consultoria voltado à Diversidade e Inclusão. Acesse a página ou escreva para consultoriatodxs@todxs.org.

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