Vitor Garcia de Oliveira
TODXS
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5 min readSep 26, 2020

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Em entrevista para a TODXS, a delegada Olívia Fonseca explica o que a mudança representa de fato para a população trans

Ainda que este ano esteja marcado por uma série de declarações LGBTIfóbicos de pessoas com projeção nacional e alguns retrocessos, 2020 trouxe conquistas importantes para os direitos de pessoas transgêneros, transsexuais e travestis. Uma delas ocorreu no estado de São Paulo, onde, desde 13 de agosto, as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) passaram a incluir formalmente o atendimento a essa população em suas atribuições e competências.

A mudança ocorreu após um decreto estadual definindo que a identidade de gênero da pessoa deve ser levada em consideração no atendimento por essas unidades especializadas em casos de violência doméstica, familiar ou crimes contra a dignidade sexual — e não o “sexo feminino”, como a redação anterior estabelecia.

Em entrevista para o G1, a coordenadora das Delegacias da Mulher em São Paulo, Jamila Ferrari, explicou que a mudança não significa que “transexuais eram impedidas anteriormente de serem atendidas nessas unidades”, mas que, agora, a medida, “traz mais segurança e garantias a este público no momento de registrar o boletim de ocorrência nestas delegacias”.

Para explicar um pouquinho melhor sobre esse assunto para vocês, conversamos com a Olívia Fonseca, delegada adjunta da DDM de Piracicaba e mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC.

Na prática, o que significa a nova determinação da Polícia Civil de que o atendimento às vítimas nas DDM deve feito levando em conta a identidade de gênero e não mais o sexo biológico?

Em poucas palavras e de maneira simples, significa que as Delegacias de Defesa da Mulher não podem recusar atendimento a qualquer pessoa que se identifique com o gênero feminino (como transexuais, transgêneros e travestis), que sejam vítimas de violência doméstica ou crime contra a dignidade sexual. Não importa se houve ou não a alteração dos documentos de identificação civil ou a cirurgia de redesignação sexual. Basta se apresentar socialmente e se identificar com o gênero feminino. Ou seja, o atendimento passa a ser baseado no gênero das pessoas e não no sexo biológico.

Antes dessa resolução, como funcionava o atendimento a mulheres transexuais, transgêneros e travestis na DDM? Elas eram impedidas de ser atendidas ou encaminhadas para outro órgão?

A Polícia Civil tem como política não recusar atendimento em qualquer unidade de polícia judiciária do Estado. Isso é fato, é uma determinação superior. Mas, em contrapartida, ocorre sim de uma pessoa procurar atendimento em determinada delegacia e ser encaminhado para outra unidade, por vários motivos.

Desde muito antes de qualquer decreto regulamentando essa situação, eu sempre tive o entendimento de que pessoas que se identificam com o gênero feminino e são vítimas de violência doméstica ou crimes contra a dignidade sexual devem ser atendidas nas DDMs. Mas, infelizmente, nem todos os profissionais adotavam esse procedimento. Isso causava muito constrangimento a essas pessoas, que já sofreram com a prática do crime e, quando procuram ajuda na polícia, são vítima de nova violência. Dessa vez, a denominada “institucional”. Agora não tem mais discussão. O atendimento é obrigatório e qualquer má prestação de serviço por parte dos policiais deve ser denunciada.

De acordo com a ONG Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Em sua opinião, a nova resolução contribuirá para a mudança desse cenário?

A criação de leis e tipos penais que protegem a população LGBTQIA+ é importante para dar visibilidade à causa e mostrar que atos violentos não serão aceitos e resultarão em punição. Porém, eu acho muito difícil qualquer decreto ou lei nesse sentido mudar esse cenário terrível que vivemos no que se refere à situação das pessoas transexuais. Isso porque nenhuma lei tem o poder de mudar a realidade social. A discriminação contra a população trans é cultural e, infelizmente, está arraigada em nossa sociedade, assim como o machismo, racismo e outras práticas odiosas. Acredito muito mais em outros mecanismos, como a escola, a comunidade.

Muito mais necessário e imprescindível para diminuir os números da violência é a criação de politicas públicas para essa população, envolvendo todos os atores sociais. Ainda hoje se encontra resistência em discutir questões de gênero na escola, por exemplo, ambiente que deve ser acolhedor, ainda mais para crianças e adolescentes que estão se descobrindo quanto à própria sexualidade. É preciso abandonar práticas hegemônicas que somente consideram a família “tradicional”, sendo certo que todos os arranjos familiares devem ser discutidos, validados e a educação tem que ser inclusiva. Não adianta criar leis para pessoas que não querem respeitá-las; é preciso investir no respeito às pessoas, independente de raça, sexo, cor, credo, enfim.

Como delegada em Piracicaba, como tem sido seu trabalho na DDM? Você já atendeu algum caso envolvendo mulheres transexuais, transgêneros ou travestis?

Pessoalmente, eu nunca cuidei de nenhum caso assim, mas tenho conhecimento da gravidade da situação, pois todo dia a mídia noticia alguma violência do tipo. Também acredito que faltam registros policiais sobre essa temática, devido a um fenômeno que chamamos de “cifras ocultas”, que se refere à criminalidade real que acontece, a qual é diferente da criminalidade que chega a conhecimento dos órgãos de criminalização secundária (como a Polícia, o Judiciário e o Ministério Público). Um dos fatores para que esse fenômeno aconteça é que a pessoa já sofreu um trauma tão grande quando foi vitimada pelo crime que não deseja revivê-lo. Isso resulta em vergonha de procurar a polícia e relatar os fatos novamente.

Os crimes de violência doméstica e contra a dignidade sexual são os que as cifras ocultas atingem os níveis mais altos. Eu acredito que o cenário fica ainda mais complicado quando a pessoa trans sofre uma violência, principalmente essas citadas. Somada a vergonha de relatar a violência vem o medo de também ser discriminada pela identidade que ela se reconhece quando decide denunciar.

Eu tenho certeza que isso faz com que elas sofram caladas e que a estatística certamente seja mais alta do que a divulgada, pois ela só considera os números reportados e registrados pelas unidades policiais. Esse novo decreto, somado a necessária capacitação dos agentes que vão atender essas pessoas, pode resultar em estatísticas mais realistas que posteriormente podem se traduzir em políticas públicas direcionadas às pessoas trans.

Você sabe se já existem medidas semelhantes em outras partes do país? A resolução de São Paulo poderia influenciar outros estados a fazer o mesmo?

É do meu conhecimento que, expressamente previsto, o decreto de SP é o primeiro a estabelecer o atendimento à pessoas que se identificam com o gênero feminino nas DDMs. O Estado de São Paulo também foi o pioneiro na criação das Delegacias de Defesa da Mulher, ainda em 1985, e essas unidades se estenderam a vários estados, seguindo o exemplo de SP. Boas práticas devem ser reproduzidas, então acredito que nesse caso, a tendência será que todos os estados alterem seus decretos, possibilitando uma garantia legal de atendimento a população trans nas unidades de atendimento especializado para mulheres.

Quer saber mais sobre o assunto? Assista à live “Atendimento das pessoas trans, travestis e transgêneros nas DDMs” com a Olívia e Yonara Oliveira, ativista dos Direitos de Pessoas Transsexuais.

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