TODXS
TODXS
Published in
6 min readOct 10, 2019

--

Desde pequena eu sempre soube resolver as coisas sozinha, minha mãe morreu muito cedo e eu fui criada pelo meu tio e pelo companheiro dele, dois homens incríveis, sempre fomos três grandes amigos dentro de uma família, as relações de pai e filha nunca foram opressivas e sim dialogadas e compreensíveis porém sempre firmes e justas, tenho isso refletido no meu caráter até hoje.

Meu tio estudava rádio e televisão na época em que me adotou e muitas vezes eu assistia aula e o acompanhava nos seus projetos, sempre com muito entusiasmo e dedicação, nesse ínterim ele percebeu que eu era, ao bem dizer, muito dada e comunicativa e foi aconselhado a me colocar no meio artístico para ver se eu não me encontrava, e me encontrei.

Aos 6 anos eu comecei a fazer propagandas, desfiles e tudo quanto é tipo de trabalho publicitário até surgirem as novelas. Em meio a milhares de testes eu participei de 4 novelas na rede globo, a última em 2012, Avenida Brasil, como Ágata, a filha da vilã Carminha.

Passei uma parte da infância e a pré adolescência trabalhando que nem gente grande, sempre estudei e sempre mantive minhas responsabilidades com notas, horários, textos decorados e manter a minha imagem midiática sempre auxiliada pelo meu pai (tio).

Com o final de Avenida Brasil fui contestada com a realidade de não ser mais uma criança fofinha, gordinha e sim uma adolescente gorda que precisaria mudar para sair dos estereótipos de suas personagens alegóricas subjugadas pelo seu sobrepeso se quisesse seguir carreira.

Eu estava no auge da minha, aos 12 anos, uma das novelas mais bem sucedidas da televisão brasileira, vendida pra diversos países, porém o estigma de uma personagem gorda que sofria bullying estava em mim.

Eu sabia que era talentosa, pra mim sempre foi natural, gostoso, divertido e nunca me vi fazendo outra coisa, porém na minha cabeça nunca fez sentido a necessidade de um certo corpo para poder expressar meu talento, porque dentro de um corpo na margem dos padrões meu talento estaria supostamente preso.

Eu continuei estudando, era a primeira vez em que eu estava estudando sem trabalhar, era a primeira vez que eu estava na escola sempre e fazia as provas junto com a minha turma e não precisava viajar e nem ser sempre a aluna nova, porém todos me conheciam, ou achavam na realidade.

Mudei de escola diversas vezes, talvez estivesse fugindo de ser conhecida, queria poder me apresentar, queria poder fingir ser outra coisa do aquilo que eles achavam que sabiam.

As pessoas acham que figuras públicas são reflexo de suas imagens midiáticas mas na maioria estamos longe disso .

Eu sempre fui meio fora da curva, trabalhava e tinha uma vida exposta, e isso sempre fez com que eu não me encaixasse em nenhuma panelinha escolar, portanto eu não tinha vida social e nem relacionamentos.

Minha adolescência se resumiu em varias sagas de livros como Jogos vorazes e o Destino do tigre que foram relidas um absurdo de vezes, e milhares de pensamentos sobre carreira e vida pessoal escritos por cadernos a fora .

Eu tinha um vício de ler fanfics em um aplicativo chamado Wattpad, inúmeras fanfics acabaram me levando para romances LGBT, eu com meus 14 pra 15 anos não tinha nem beijado uma boca ainda, mas comecei a me apaixonar pelas belas palavras e curvas que as histórias me mostravam .

Comecei a me aventurar em livros sobre o comportamento humano e esquematizar como eu toda estranha mergulharia na arte de flertar e me relacionar com outro ser humano, mas a princípio eu não pensava em nenhuma sexualidade, apenas queria sentir algo, uma intimidade.

Meus pais sempre foram muito ocupados, até hoje trabalham que nem doido pra garantir um futuro tranquilo e sempre me deram tudo, porém eu sou uma taurina carente e fui buscar carinho porta a fora.

Beijei um ou dois meninos em festas por volta dos 15 anos, porém nunca fiz parte das meninas que se gabavam de suas aventuras sexuais nos intervalos e corredores, sempre tive medo de gravidez, o companheiro do meu pai medico sempre me mantinha alerta, e confesso que nunca senti nenhum calor diferente com um garoto.

Todavia, mesmo sendo filha de um casal gay eu não sabia muito bem o que era ser lésbica, eu não transava nem com homem e nem com mulher, mas eu sabia que tinha curiosidade de beijar mulheres, pelo calafrio que as palavras cálidas dos textos que eu lia me despertavam, e assim aconteceu, eu usei todas as minhas técnicas emocionais e comportamentais e consegui meu primeiro beijo com uma garota, ali eu lembro que me senti muito aliviada, eu gostava muito, era uma certeza na vida e eu estava feliz de ter alguma certeza sobre a minha própria vida .

Transei com uma garota e também pareceu natural, eu não pensei nem planejei nada, eu sabia, meu corpo sabia e pra mim era certo.

Eu não escolhi nada, ninguém me influenciou, sentir e ser, é isso.

Dai pra frente, saber e aceitar a minha sexualidade foi uma tarefa árdua, por um lado me fazia bem e eu aceitava, mas eu ainda mantinha uma imagem midiática mesmo que fora da tv e eu me importava muito com o que os outros iriam pensar!

Em 2018 entrei na faculdade estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS )

Sai de São Paulo, larguei tudo pelo curso de artes cênicas que eu tanto queria, um jornalista me ligou pra fazer uma matéria sobre essa mudança, e eu tão desacostumada com o jogo de cintura do meio, soltei sobre uma namoradinha.

Filha da Carminha se assume lésbica”, virou manchete, minha avó me ligou chateada, eu nunca havia aberto a boca, nunca tinha aparecido com namorada, meus pais sabiam, agora o mundo inteiro sabia e cada um se achou no direito de expressar a opinião que quisesse sobre isso.

Foram muitos anos lidando com exposição, mas essa doeu um pouco mais, me senti um pouco mais julgada, me acusaram inclusive de soltar a informação pra voltar para os holofotes, como se eu fosse cruel o suficiente comigo mesma de me sujeitar a ameaças e ofensas em troca de fama .

Tudo passa, toda fofoca só é boa quente, mas pro nosso lado, um boato é sempre um boato, mais uma vez as pessoas acham que me conhecem sem me conhecer, mas o mais importante durante tudo isso, é que hoje aos 19 anos, em uma faculdade de licenciatura em artes eu entendo o significado de um pensamento midiático colonizado que estabelece padrões os quais eu sei que não preciso seguir para desenvolver minha arte, nem para ser feliz no meu relacionamento, nem para ser bonita mesmo com os meus cabelos coloridos e minhas dobrinhas sensuais.

Hoje eu tenho uma bolsa de pesquisa científica na faculdade sobre a midiatização e o pensamento colonial, aonde eu escrevo os mesmos pensamentos que eu escrevia nos meus cadernos em casa, só que agora estudando sobre as desigualdades desse nosso mundão e o que nós artistas devemos valorizar e disseminar para construir uma sociedade menos nociva, mais humana.

Eu não viverei sem arte e busco conquistar apenas ouvintes que tenham motivos reais para apreciar a minha, ser quem somos e dividir nossos conhecimentos e pesquisar é arte e é vida.

Karol Lannes, 19 anos, é taurina com ascendente em escorpião e namora garotas. Gosta de organização na casa e bagunça na alma, gosta de inquietação e ambição, gosta de quem gosta de saber e ser, nem sempre ter. Gosta de quem se gosta, gosta de gostar de si mesma e dos outros, mas mais de si! Gosta de fazer com que outros se gostem e gostem dos outros, pela arte, através da arte. Prefire ler e cozinhar mas trabalha no agito da boate mandando um som, fala alto mas é meiguinha e segue sempre esfomeada e com uma exagerada risada asmática.

--

--