Documentadas: projeto LGBTI+ visibilizando o amor entre mulheres lésbicas

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8 min readAug 31, 2021

Agosto é o mês da visibilidade lésbica no Brasil. Em todo o país, é possível encontrar mulheres lésbicas lutando para garantir que essa data de luta não passe em branco.

Por esse motivo, o time de Inteligência de Pesquisa & Desenvolvimento da TODXS elaborou este texto cuja temática principal é a importância da construção de memória dos afetos entre as mulheres, trazendo uma entrevista inédita com a idealizadora e executora do projeto Documentadas.

Breve histórico do movimento lésbico no Brasil

As primeiras tentativas de construção do Movimento Lésbico na América Latina são fruto de movimentos políticos de esquerda. Os debates sobre gênero, sexo e sexualidade em meados do século XX inauguraram as primeiras articulações lésbicas na América.

No Brasil, o Movimento Lésbico surge da ruptura com o Movimento Feminista dessa mesma época em que a universalidade da mulher era pregada pelo feminismo, em suas primeiras vertentes, invisibilizando as singularidades identitárias, inclusive a de mullheres lésbicas. Este rompimento com o então Moviemento Feminista teve como meio e fim a busca por identidade própria, pela contrução de espaços propriamente lésbicos e o fomento do debate de pautas centradamente lésbicas.

Nesse mesmo momento histórico acontece a Revolta de Stonewall quando a então comunidade LGBT resolveu se levantar contra constantes abusos policiais recorrentes na cidade de Nova York, nos Estados Unidos. Esse episódio acarretou insurreições em todo mundo, inclusive no Brasil onde começa a aparecer grupos de pessoas homossexuais diversas, incluindo mulheres lésbicas. Em meio a essa conjuntura acontece o rompimento do Movimento Lésbico com o Movimento Homossexual por causa de posturas machistas que dificultavam, quando não impossibilitavam, a comunicação entre os grupos. Da mesma forma que ocorreu com o Movimento Feminista, sentiu-se também os entraves nos diálogos com o Moviemento Homossexual posto que ambos os movimentos resistiam em priorizar demandas e pautas lésbicas.

Porém, ainda que não tivessem suas questões priorizadas dentro destes movimentos, nos encontros nacionais feministas que ocorreram entre os anos 80 e 90, as lésbicas não exitaram em levantar suas bandeiras e promover suas lutas impulsionando a visibilidade do Movimento Lésbico.

Manifestações e coletivos precursores

Ainda na década de 80, da necessidade da criação de espaços onde se discuta a sexualidade e afetividade de mulheres que se relacionam com mulheres, surge o primeiro grupo lésbico no Brasil, na cidade de São Paulo, chamado Grupo Lésbico-Feminista, e posteriormente renomeado como Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF).

Pelos mesmos motivos, em 1996 surge o SENALE — Seminário Nacional de Lésbicas que além de espaço fundamental para promover pautas e o protagonismo lésbico, fomentou várias diretrizes políticas e organizou ações voltadas para o Movimento Lésbico, e também abriu caminhos para a I Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais em 2003.

É ainda referência para o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, 29 de Agosto — data em que aconteceu o primeiro SENALE. Hoje, o SENALE é (re)nomeado SENALESBI — Seminário Nacional de Mulheres Lésbicas e Bissexuais por considerar-se necessária a aproximação com esse último grupo posto que relações sexuais e de afeto entre mulheres não se limitam a relacionamentos entre mulheres lésbicas.

Nessas mesmas trilhas surgiram outros grupos como a LBL (Liga Brasileira de Lésbicas) e a ABL (Articulação Brasileira de Lésbicas).

Assim, o Movimento Lésbico nasce da ruptura com a violência do apagamento pelas vertentes universalistas do Movimento Feminista, bem como da inadimissão do sexismo por parte do Movimento Homossexual machista, buscando reconhecimento e respeito a suas especificidades e promovendo a visibilidade da mulher lésbica enquanto sujeito coletivo e individual.

Heterossexualidade compulsória e lesbianidades

A nossa sociedade se organiza de uma forma em que existem normas sociais esperadas como características e comportamentos padrões. Dessa forma, os indivíduos que desafiam as regras são apagados, patologizados, invisibilizados e marginalizados.

Na sociedade amplamente patriarcal, a heterossexualidade é concebida como natural, universal e normal. Em razão disso, a ideia da relações afetivas e sexuais com sexo oposto como sendo compulsória parece confirmar, com bastante pertinência, a suposta naturalização e normalização da heterossexualidade.

O termo tornou-se popular nos anos 80 através do ensaio Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica de Adrienne Rich. Nele, a autora descreve o apagamento dentro do movimento feminista das vivências lésbicas.

A heterossexualidade é uma instituição política patriarcal e capitalista que retira o poder das mulheres. O apagamento da existência lésbica no pensamento feminista, bem como no entendimento geral das relações de gênero na sociedade é cruel, manipulativo e violento com as nossas vivências.

A supervalorização da heterocentricidade, mesmo entre feministas, não leva em consideração a grande variedade de vivências possíveis de mulheres que amam mulheres. Quando mulheres amam outras mulheres — levando em consideração um termo amplo de amor e relações -, elas rejeitam a ideia do padrão masculino a ser adorado, e são colocadas à margem pois ameaçam a estrutura normativa.

A heterossexualidade compulsória se encontra em muitos tipos de pressão que a sociedade exerce sobre as pessoas para garantir que a orientação sexual siga o destino comum, não só em relação à sexualidade mas também em relação à performance de gênero esperada.

Essa pressão é altamente violenta, o que faz com que muitas mulheres experienciem o entendimento da sua própria sexualidade de forma tardia, suprimam suas identidades e se submetam ao que é esperado.

A potência das nossas vivências como instrumento movedor de estruturas e questionador das normas assusta uma sociedade que finca alicerces na violência patriarcal e manutenção das relações de gênero.

Pensando nisso, entender-se e afirmar-se como lésbica é desafiar o que está posto como norma. É a demarcação de uma identidade sexual e afetiva. É mais que uma expressão, é resistência importante e crucial para ressignificação das normas da sociedade.

Invisibilização de mulheres lésbicas e importância da construção de memória

Para falarmos sobre visibilidade de afetos e sexo entre mulheres, faz-se necessário lembrarmos de todas as pessoas que se identificam do gênero feminino e que se relacionam com pessoas do gênero feminino, independente da sua definição de orientação sexual.

Nossos rótulos fazem parte da nossa identidade, mas a nossa identidade não se resume aos nossos rótulos. As trocas e construções de sentimentos, prazeres e conexões são diversas e plurais, tanto quanto nós, mulheres. Reivindicar nossas memórias é lutar contra nosso silenciamento e, consequentemente, contra nossa invisibilização. Mas o que é essa invisibilização?

A invisibilização pode ocorrer de duas formas distintas e complementares quando tratamos de produção de memória e de representação. A primeira surge quando algo é excluído ou não está visível, como se não existisse.

Como os afetos e desejos entre mulheres que não são considerados reais e, por isso, entendidos como “não ameaçadoras” — e, muitas vezes, são assimilados com a decepção com o masculino; como o sexo entendido como “preliminar” por não se enquadrar em termos falocêntricos; ou como quando homens gays nos excluem de relações de amizade preterindo mulheres heterossexuais, lembrando que a intenção é mostrar as invisibilidades de mulheres LGBT+ e não criar hierarquias e exclusões entre quaisquer mulheres.

A segunda forma está relacionada ao silenciamento intencional, aquele que não dá voz às protagonistas.

Isso ocorre quando nos aplicativos de relacionamento é comum se deparar com propostas de relacionamentos com casais hétero — como se fosse uma prerrogativa querermos estar nessas relações, especialmente quando são mulheres bissexuais; quando nossas histórias de “sair do armário” são moldadas de uma forma positiva — pela sociedade e pela própria comunidade LGBTI+; e quando há o espanto e o estigma pela feminilidade ou pela falta dela.

A nossa memória é a nossa narrativa, é como pensamos, como somos e como nos expressamos no mundo. É o processo de (re)construção de nossas identidades, ela é flexível e atemporal, perdurando em sua própria transformação.

Nossa narrativa não é engessada, ela é dinâmica, ela muda porque nós mudamos, porque o que fomos ontem não é o que somos hoje. Somos plurais. (Re)Imaginamos dois caminhos para a construção de nossas memórias: Liberdade.

De estigmas, de rótulos, de silenciamentos e exclusões. Ressignificação. Ato de recriar, atribuir novos significados, moldar nossas histórias e nossas representações. Estamos fora dos armários para ocuparmos as ruas e sermos nossas próprias protagonistas na definição de nossas memórias e identidades.

Documentadas, o amor entre mulheres através da fotografia

Idealizado pela fotógrafa e militante Fernanda Huggentobler, o Projeto Documentadas busca registrar o amor entre mulheres por todo o Brasil através da fotografia.

A iniciativa começou no início de 2020, a partir de diversos estudos sobre a comunidade LGBTI+, sobre a história do movimento LGBTI+ brasileiro, e da percepção de que as mulheres são pouquíssimo registradas e representadas, principalmente tratando-se de mulheres lésbicas e bissexuais.

O projeto é o primeiro acervo da história a documentar mulheres que amam mulheres, e a reivindicar nossas próprias histórias e amores para além do espectro da dor e da violência.

acesse: documentadas.com

Fernanda conta que desde os quatorze anos se entende como uma mulher lésbica, e assim, desde o início de sua formação pessoal e profissional como fotógrafa, se dedica a área de comunicação, cultura e assessoria política, com envolvimento direto com a militância LGBTI+, com o direito à cidade e com políticas públicas.

Contudo, os caminhos trilhados até a criação do projeto não foram fáceis. Os desafios que mulheres lésbicas e bissexuais enfrentam, sobretudo enquanto ativistas no atual contexto social e político brasileiro, são extremamente violentos.

Assim, para Fernanda, o desenvolvimento desse projeto representa um processo de cura muito significativo, tanto para ela, como para todas as mulheres envolvidas.

Através do Documentadas, conexões, redes de apoio e laços de fortalecimento entre mulheres são criados. O projeto demonstra o poder da escuta, de se conectar, de compartilhar nossas vivências e histórias com quem nos identificamos. Iniciativas como o gerando renda para a comunidade, e parcerias com psicólogas para fornecer suporte psicológico para as mulheres que já passaram pelo projeto, têm ampliado ainda mais a rede de alcance e atuação do Documentadas.

@matenidadesapatao fotografadas pelo Documentadas

O projeto expressa o quanto somos muitas e diversas. É extremamente potente como o Documentadas retrata a diversidade de corpos e realidades das mulheres que se relacionam afetivamente com outras mulheres.

Embora tenha sido fundado no Rio de Janeiro, o Documentadas busca registrar mulheres de todos os cantos do Brasil, para além das capitais das regiões Sul e Sudeste do país. O projeto já passou por diversas cidades do Nordeste, e segundo Fernanda, em breve também passará pela região Norte, nas cidades de Belém e Manaus.

Nesse sentido, Fernanda relata que o projeto luta também contra os próprios algoritmos discriminatórios das redes. É um esforço diário para alcançar espaço, visibilidade e renda para manter o projeto. O Documentadas não se bancaria se não fosse o apoio e colaboração da rede de mulheres envolvidas.

Atualmente, mesmo em meio a um contexto tão difícil no país, a plataforma do Documentadas conta com mais de cinquenta histórias de amor e resistência entre mulheres. O projeto se multiplica pelas cidades do Brasil, espalhando esperança e afeto por onde passa. Quando indagada sobre o que é visibilidade na sua visão, Fernanda afirma:

“Toda mulher merece ser amada por outra mulher, porque isso sempre nos foi negado [….] Vivemos em um momento de muito ódio, um momento de luto, de desespero e desesperança no país. Tudo ao nosso redor parece estar desabando. O governo nos odeia [….] então, falar sobre o amor entre mulheres nesse momento é, por si só, um ato de resistência, de ir contra a maré do ódio, através da arte, da escuta e da conexão entre mulheres. Através de um projeto feito por nós e para nós.”

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