TODXS
TODXS
Published in
4 min readAug 3, 2020

--

Na infância, eu fui um menino que tinha muito medo. Quando alguém esbarrava em mim propositalmente era eu quem pedia desculpas e não o contrário. Eu andava com as meninas e não me defendia quando alguém me agredia verbalmente ou fisicamente e por isso acabei sendo o principal alvo de chacota e risadas dos garotos fazendo com que a minha voz, que ainda era tímida e silenciosa, ficasse cada vez mais fraca.

Na foto oficial da turma do ensino fundamental, eu me recordo que fiquei extremamente desconfortável porque me senti apertado ao lado do menino que adorava me chamar de viadinho, boiola e derivados. Eu poderia ter pedido pra ele fechar um pouco a perna ou me dar alguns centímetros de espaço. Preferi deixar passar. Sempre foi assim, eu achava que estar incomodado com o desrespeito dos outros era um problema meu.

Aos 9 anos de idade, ganhei da minha mãe a minha primeira mochila de rodinhas. Naquela época, aquela mochila representava o meu sonho de consumo: todo mundo tinha e eu só consegui uma depois de alguns anos de lançamento quando o preço finalmente baixou e minha mãe conseguiu comprar.

Primeiro dia de aula, o sinal tocou e eu, como de costume, fui para o ponto de ônibus que ficava mais isolado do colégio, com a finalidade de fugir dos garotos que costumavam me importunar sempre que tinham a oportunidade. Estava esperando o ônibus sozinho quando um desses meninos pegou minha mochila e saiu correndo com ela. Na briga entre “me devolve” e “não vou te devolver”, a parte da alça onde se puxa a mochila com as rodinhas quebrou no meio, foi naquele dia que voltei chorando pra casa.

Acho que a gente demora a entender como nossa voz é importante e que se posicionar, mesmo que em uma sala de aula, faz com que as pessoas tenham uma outra visão de nós mesmos. Naquela época não existia a palavra bullying então as pessoas lidavam com esse tipo de situação como “coisa de criança” e aí você acabava normalizando e se acostumando com aquilo. Afinal de contas, como entender os outros quando você não entende nem a si mesmo.

Depois de um tempo, eu me descobri no Teatro e fiquei ali por muitos anos. Foi como se eu tivesse encontrado minha segunda casa, minha segunda família. Com aquelas pessoas, me abri pela primeira vez e pude me compreender como um menino gay. Estar no palco e com aqueles outros adolescentes que amavam arte era uma das melhores sensações da minha vida. Me sentia livre, podia compartilhar dos meus segredos, angústias e medos sem ser julgado e parecia que, de alguma forma, todo mundo estava ali pelo mesmo motivo. Era como se fosse um pequeno grupo de apoio. Escrevo isso sendo eternamente grato ao Theatro Adolpho Mello.

Curiosamente, anos mais tarde, quando estava em cartaz na peça “Encantados”, me vi de frente à minha antiga turma do colégio. Meu figurino cheio de brilho — criado pelo meu diretor que também era carnavalesco — e minha maquiagem geraram risadinhas e cochichos na escuridão da plateia. A diferença é que dessa vez aquilo não me abalava mais, eu me sentia forte e passei a ter mais orgulho de ser quem eu era do que alguém que eu fingia ser.

Lembro que foi ali, em cima do palco, que decidi que não deixaria ninguém me calar. Eu estava no lugar mais feliz e importante da minha vida e ninguém iria afetar a felicidade que o teatro me trazia. A peça aconteceu, dei o meu melhor. Fiz a melhor peça da minha vida para pessoas que me deram somente risos e cochichos.

Depois que você se aceita, todos os medos e angústias se dissipam. No lugar deles, nasce o impulso de criar uma narrativa da vida que não depende mais dos outros, e sim de você.

A arte fez com que eu me aproximasse de pessoas que eram parecidas comigo e possibilitou que nossas vozes, juntas, pudessem ecoar mais alto do que qualquer preconceito. Na nossa luta, diariamente vão contestar nossas vitórias e são nessas horas que precisamos estar firmes para conquistar nosso espaço. Me chamaram a vida toda de viado para me deixarem mal, hoje eu deixo eles mal ocupando meu lugar, com muito orgulho, como viado.

Guilherme, 29 anos, ator e roteirista e formado em Publicidade e Propaganda.

Escreve o Isso A Globo Não Mostra, criador do Ego Estagiário e filho da Dona Silvana.

Nascido em São José-SC e atualmente reside no Rio de Janeiro.

--

--