TODXS
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6 min readSep 15, 2020

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Durante a organização do conecta 2020, evento da TODXS Brasil, me vi envolvido em diversas histórias que foram próximas ou completamente distantes da minha realidade como LGBT. Logo na primeira live, me deparei com a mãe de uma criança trans falando do seu filho com tanta naturalidade, assim como mecanismos jurídicos usados para proteger famílias e crianças LGBTs. Percebi que na minha infância tive que esconder tantas coisas com medo de não ser aceito no céu ou de não ser amado pelos meus pais. A religião foi um fator de muito silenciamento e feridas internas, pois fui criado em uma igreja evangélica, levado pela minha família e isso internalizou preconceitos.

Quando criança, o mais remoto dos meus pensamentos, que hoje sei que eram os primeiros sinais que eu não seria heterossexual, era não entender por qual motivo os meus amigos olhavam para a uma menina quando passavam por elas. Não fazia sentido pra mim.

Já na adolescência, comecei a sentir interesse pelo corpo masculino que, à época, era interpretado como um tipo de corpo que eu queria que o meu se tornasse, nada tinha a ver com interesse sexual. Isso se deu tempos depois.

Recordo bem a confusão que era não me sentir hétero. Na minha vizinhança tinham muitos gays super afeminados que jogavam vôlei, devido a isso, criei preconceito com o esporte, já que para mim era “jogo de viado”. Todos os dias eram quase um lembrete das passagens de Levítico, cap 18, vers 22 ou ainda o sempre citado Coríntios, cap 6, versículos 9 e 10 que dizia que: “os efeminados não herdarão o reino de Deus. E não só eles, mas, também, os injustos, os adúlteros, avarentos…”, e por aí vai.

Ser “aquele tipo de gay” não era uma opção para aquele menino evangélico. Desse momento em diante, a adolescência se tornou uma das fases mais difíceis da minha vida. Como falar sobre as dúvidas sobre mim para pessoas que não tinham interesse em falar sobre isso e que tratavam como algo que me distanciaria de Deus? Minha adolescência foi marcada por culpa e raiva.

Várias vezes recorri a sites gays para, sozinho, me satisfazer e não ter que me envolver fisicamente com homens. A sexualidade aflorava, mas acima disso estava o medo da não aceitação, a vergonha de não ser um “homem de verdade”, de não ir pro céu, de decepcionar a Deus. Para minimizar, namorei duas garotas durante a adolescência e até pensei em casar com uma delas. Hoje, consigo entender que a vida que eu levava era uma versão soft do livro “Boy Erased” de Garrard Conley, pois não tentaram me corrigir na igreja que eu frequentava — e nem poderiam, já que este assunto sequer foi tratado lá. Eu me proibia, e a decepção interna continuava.

Não posso deixar de citar sobre o ambiente escolar. No fim do ensino fundamental e início do médio, eu nem de longe fazia o estilo “hétero, jogador de futebol”. Na nova escola, percebi ser um alvo; não demorou muito para piadas como “viadinho”, “mulherzinha” aparecerem, e neste período comecei a desenvolver agressividade. Na época, entendia que na escola, se você não bate, apanha. Não queria apanhar, e pra que isso não acontecesse, eu passei a ser violento. Então, deixei de ser o que sofre bullying e passei a ser o que praticava e, quase como em mágica, as piadas desapareceram. Porém, fora da escola, na família e na igreja, eu continuava a ser o adolescente amável, mas quando estava só, cheio de dúvidas.

Eu ainda continuava no armário e, como não poderia deixar de ser, as visitas solitárias e clandestinas em sites gays já não eram suficientes. Aos 18 anos, tive minha primeira experiência física com outro homem.

Foi algo tão rápido que saí desse encontro sentindo alívio por não ter conseguido gostar da experiência e, ao mesmo tempo, com nojo de mim e envergonhado por ter decepcionado a Deus.

Lembro de chegar em casa e tomar banho com tanta força, como se aquilo pudesse me livrar do “pecado” cometido. Durante algum tempo fui um evangélico obediente e enterrei esse assunto.

Após esses anos de sentimentos enterrados, novamente na internet, voltei a marcar com alguns homens e, nessas saídas, conheci aquele que seria meu primeiro namorado — tudo muito sigiloso, o armário continuava a ser uma realidade pra mim. Nessa primeira experiência sentimental, pude perceber que dois homens poderiam ter sentimentos genuínos um pelo outro — nessa época eu ainda romantizava tudo.

Foi também nesse período que conheci a família do primeiro namorado e a partir daí fui perceber que existem famílias que aceitam seus filhos gays. Vivenciar aquilo foi um misto de satisfação e medo, pois eu sabia que em algum momento eu teria essa conversa, e conhecendo a minha família, eu sabia que seria uma das coisas mais difíceis que faria na vida.

Nesse meio tempo, saí da igreja, pois já não suportava mais viver naquele meio de santidade plastificada. Vi muita coisa que me fez feliz em não ser aquele tipo de cristão. Lembro de uma pregação do pastor Caio Fábio que dizia que as igrejas conseguiam prender as pessoas em duas vertentes: a culpa e o medo. Com a saída da igreja, me desvencilhei da culpa; o medo, mesmo depois de quase 14 anos, é uma ferida que ainda cicatriza.

Depois dessa decisão, mudei vestimenta, modo de falar, conheci novos amigos e algumas realidades me fizeram crer que existiam outros iguais a mim.

É reconfortante saber que não estamos sós.

Alguns anos passaram, terminei e comecei relacionamentos, morei junto com “amigo” — ao menos foi essa versão que eu dei para sair de casa. Já com 24 anos, o armário se fazia pequeno, era sufocante não poder compartilhar a vivência com meu então companheiro. Até que, após uma briga com minha irmã mais nova — hoje, pansexual — fui retirado do armário sem qualquer aviso, e foi aí que minha mãe perguntou: “Você é viado?”.

Essa pergunta chegou até mim como uma porrada, e já havia prometido a mim mesmo que não mentiria mais. Logo respondi: “Sim, sou viado, estou no meu 4º namoro, que dura 3 anos. Mais alguma pergunta?”. Tudo foi bem tenso.

Durante essa conversa, ouvi as coisas mais duras que eu poderia ouvir de alguém que dizia me amar. Aprendi que o amor, para a maioria de nós, é condicional, ele se encerra onde começa a nossa sexualidade. Aprendi que os presentes dados para eu mobiliar a minha nova casa foram dados para um Eduardo hétero, o gay teve que devolver tudo. Aprendi que quando disse “sim, sou viado”, eu tinha perdido 70% da minha mãe, os outros 30%, segundo ela, era se eu precisasse de comida ou água, pois isso não seria negado a mim.

Tive conhecimento pelas minhas irmãs que meus talheres foram separados. Para a minha mãe, eu era doente; a doença era ser gay.

Meu pai, que no quarto ouvia toda a discussão, não conseguiu se impor à minha mãe. Quando me despedi, ele disse quase em sussurro que nada havia mudado, que me amava independente disso. Lhe dei um abraço e fui embora.

Nessa época, foi importante o apoio que tive do meu então companheiro. Consegui, nessa bagunça de sentimentos, desenhar mentalmente o desespero que deve ser passar por tudo isso sozinho. Me senti privilegiado.

Foi com essa realidade familiar que tive a real noção que nós, LGBTs, temos a dádiva de escolhermos os nossos. Aprendi que nossa família e amigos são aqueles que nos querem perto, e que nossa sexualidade nem é um ponto que se coloca em pauta.

Uma semana depois, todos os móveis foram devolvidos, após isso cortei qualquer comunicação com minha mãe.

Hoje sou um homem gay, 100% confortável com isso, pois não há qualquer erro em ser quem sou. Consegui estabelecer limites e distanciamento daquilo que não me agrega, me impus a regra que a aproximação com minha mãe só aconteceria se partisse dela.

É fato que o tempo tudo ajusta, de uma forma ou de outra. Depois de 2 anos, sem qualquer contato meu, ela teve a iniciativa. Atualmente, embora ela não goste ou não aceite o filho gay, essa aceitação não é mais importante pra mim. Talvez esse seja o limite dela, cada pessoa tem o seu, mas ela tem 100% de certeza que tem um filho gay e que eu jamais negarei isso novamente.

Foi um processo doloroso em muitos níveis, que gerou feridas e cicatrizes necessárias pra eu ser quem eu sou. Adoraria que as próximas gerações não precisassem passar por esses problemas, e que as cicatrizes criadas durante a vida sejam aquelas adquiridas pelas escolhas pessoais e não por imposição externa de como devemos ser, nos comportar ou sobre nossa fé.

Então o que posso dizer é que caso passem por problemas semelhantes a esses, por favor lembrem-se que o erro não está em nós e que nós não estamos sozinhos. E, se precisarem, procurem ajuda.

Eduardo Almeida — Jornalista e Gerente de eventos na TODXS.

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