Onde está o queer brasileiro?

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5 min readNov 10, 2018

Por Vitor Rubião, militante LGBTQIAPN+ independente e integrante do programa TODXS Embaixadorxs 2018

“woman sitting on top of red convertible coupe” by Ashly Araya on Unsplash

Você já deve ter visto siglas LGBT com a letra Q, como LGBTQ, LGBTQIA+, etc. E você provavelmente ficou sem entender qual segmento era representado por essa letra. Talvez tenham te dado alguma resposta.

A letra Q é para queers.

Pessoas queers são muita coisa. Muita mesmo. A identidade queer é ampla e abrangente. Toda pessoa LGBT+ é queer. Toda pessoa fora dos padrões de atração (sexual, romântica etc), gênero (identidade e expressão), e corporalidade (sexo, anatomia sexual) é queer. Pessoas não-monogâmicas — em especial as poliamoristas — também podem se definir como queer. O queer pode ser apenas um sentimento; sentir-se queer.

Vendo por esse conceito pode parecer algo maravilhoso, revolucionário, transgressor, até mesmo espiritual. E sim, eu admiro muito a comunidade queer. Admiro seus espaços e tudo que ela traz para o ativismo e para os segmentos marginalizados. E então me pergunto: por que não existiu uma grande e evidente comunidade queer aqui no Brasil?

Precisávamos de uma comunidade queer aqui? Que benefícios teria trazido? Essas perguntas têm respostas muito pertinentes e construtivas. No entanto, muita gente prefere focar em rejeitar algo “de fora” ou repetir ideias equivocadas sobre qualquer coisa com a palavra queer do que refletir sobre essas questões.

Ah, e não me venha com essa de que queer é bobagem porque “é coisa de fora”, porque estaríamos “imitando” coisa gringa. Até porque a palavra gay é super brasileira, né? Sabia que a palavra lésbica tem origem grega? A desculpa da palavra em si é furada.

(Mas, tudo bem, eu sou o tipo de pessoa que também não curte ficar incorporando palavras estrangeiras como se fosse impossível traduzir ou fazer uma adaptação decente. Não venha falar que o suco é de blueberry para mim; fala mirtilo).

Nós já falamos de queer muitas vezes e não percebemos. Quando falamos de viado e sapatona, quando falamos das pessoas dissidentes (ou corpos dissidentes), o transviado, a translésbixa, a/o/e travestigênere, todas essas identidades são essencialmente queer. Se precisamos ter uma palavra única equivalente a queer? Talvez. Nem sei mais dizer. Se sim, boa sorte em cunhar algo que se espalhe e tenha força. Ou podemos deixar essas muitas identidades soltas por aí funcionando com o mesmo propósito.

Falando nisso, só observando, as pessoas falam muita besteira sobre a Teoria Queer, mas ela chega a muitas pessoas e muitos grupos sem perceberem. Quando falam da liberdade da autoidentificação, estão falando de Butler. Quando falam do sistema controlando os corpos, estão falando de Preciado. Isso alcança as periferias, inclusive, para quem diz que estudos acadêmicos são impossíveis de chegar nelas. Estamos falando muito em Teoria Queer ultimamente. Sem perceber.

Retomando, queer reúne um monte de gente diferente e marginalizada, tudo junto e misturado. É uma bagunça? Sim, mas uma bagunça organizada. O melhor de um espaço queer é unir uma quantidade imensa de pessoas diversas.

O espaço queer está lá para toda a comunidade LGBTQIAPN+ (sim, é essa sigla que uso). E isso é muito importante. Espaços exclusivos são importantes, mas um espaço como esse traz uma troca de informação e experiências muito rica. E não falo apenas das vivências dissidentes de atração, gênero e corporalidade, mas falo também de vivências interseccionadas com outras parcelas marginalizadas pelo sistema: negra/racializada, deficiente, gorda, periférica, etc.

Exatamente por isso que a comunidade queer norte-americana é politicamente mais consciente, organizada e consegue promover respeito e senso crítico em relação a toda diversidade presente na comunidade LGBTQIAPN+. Queer sempre foi um movimento contracorrente, sempre foi anti-assimilacionista, pois era composto por todas as pessoas que rejeitavam se integrar à sociedade e se empenharam em romper com os padrões vigentes que as oprimiam.

Faço uso do queer de forma exclusivamente política e quando combino todas as minhas dissidências: pessoa não-binária e polissexual, que pratica poliamor, com uma expressão de gênero fluída, e que usa uma linguagem fora das normas (pronome elu, final de palavra com e). É assim que uso essa identidade. Existem muitas formas de usar queer.

Aliás, a identidade queer nasceu de uma estratégia agressiva e desafiadora, mas ao mesmo tempo pacífica: pegou uma palavra usada como ofensa e a tornou uma identidade política de orgulho e resistência. Infelizmente, pessoas que não gostam de se reapropriar de palavras ofensivas usam isso contra a identidade queer.

Dentro do contexto norte-americano a comunidade queer conseguiu se articular e se movimentar em prol de direitos sociais para toda a comunidade LGBTQIAPN+, além de criar espaços mais inclusivos e formar pessoas mais críticas sobre a diversidade humana. Não apenas referente a todas as pessoas que não são cis/hétero/perissexo e todas as intersecções já citadas, mas também sobre outras nuances das opressões que podem chegar até em grupos privilegiados.

A diversidade também inclui pessoas cis hétero, que são frequentemente taxadas como o oposto de LGBT+. Existem héteros nos segmentos T, I e A. O queer abraça pessoas cis hétero não-conformistas de gênero: pessoas com uma expressão de gênero não aceita pela sociedade. Já encontraram um hétero afeminado? Já viram uma hétero andrógina? Essas pessoas existem e o queer também fala delas.

Não quero dizer que uma comunidade queer brasileira teria melhorado 100% o ativismo e a consciência das pessoas. Existiria oposição sim, até de pessoas da comunidade, ainda existiria gente insistindo em ser cissexista, monossexista, alossexista etc, mas um queer brasileiro poderia ter plantado e regado uma semente de união interna e politização entre muitas pessoas dos segmentos, e permitido que a comunidade avançasse com as pautas e demandas da diversidade.

Poderíamos já estar falando de outros segmentos além de LGBT, cada segmento estaria mais empoderado e instruído, haveria mais harmonia entre gays e lésbicas, entre monossexuais e multissexuais, entre pessoas trans binárias e pessoas não-binárias, teríamos a noção de que a brincadeira “sai hétero” é um desserviço, aceitaríamos que algumas pessoas podem ter uma identidade que mistura atração e gênero, e haveria bem menos pessoas invalidando a identidade e experiência alheias apenas porque não está de acordo com o que acreditam ou viveram.

Respondendo a pergunta do título: o queer brasileiro está por aqui, por ali, largado em cantos obscuros da Internet, ou numa rodinha qualquer na Roosevelt. Ele existe prematuramente e por um tempinho quando pessoas se juntam pra falar de diversidade. Ele aparece como um espectro inaudível, mas presente, quando uma pessoa não consegue se encaixar nas identidades mais comuns. Ele está nas sombras de todas as existências marginalizadas sem elas perceberem. O queer brasileiro está aqui sim. Mas precisa ser devidamente construído e impulsionado e materializado.

Bora trazer a essência queer ao Brasil?

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