Pela queerização das fotos de família

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7 min readMay 16, 2020

Um papo com o Prof. Thomas Allen Harris, afro-americano queer, pesquisador da Universidade de Yale e premiado diretor de cinema

Entrevista: Leandro de Carvalho e Nathan Simões
Texto: Leandro de Carvalho

“Família só é bonita em porta retrato”. Não sei quem disse essa frase pela primeira vez, mas tenho certeza que não foi uma pessoa LGBTI+, porque para muites de nós a beleza de uma foto de família está longe de ser uma possibilidade, visto que com frequência somos exilades de nossas famílias e passamos longe dos álbuns familiares. Por isso, o professor Thomas Allen Harris defende a queerização dos álbuns de família.

Thomas é uma dessas pessoas incríveis, orgulhosas de si, felizes e alegres, que transformam as suas questões em causas maiores. Homem negro, queer, pesquisador, professor da Universidade de Yale, premiado diretor de cinema, ele se dedica a entender a condição humana e a busca por suas diversas identidades, a família e a espiritualidade. E, num papo regado à gin e muitas risadas, o Thomas compartilhou com a gente suas ideias sobre condições humanas e identidades — negra e LGBTI+.

O que significa queerizar os álbuns de família?

Eu tenho feito filmes há mais 25 anos e muitos deles analisam narrativas, histórias e representação de família. E eu sou um homem assumidamente queer, o que significa que trago uma perspectiva queer de família. No ocidente, historicamente, pessoas LGBTIs foram marginalizadas de suas famílias. Os meus projetos buscam centralizar a perspectiva de pessoas queer dentro de suas famílias, olhar para as famílias dessa perspectiva. Eu trabalho muito com álbuns de família e a queerização foi crescente a cada filme, desde os arquivos de família do meu avô nos EUA à família da qual me aproximei em Salvador-BA. A minha família e a família de Salvador são famílias diaspóricas. Mas quando as pessoas falam da diáspora africana elas não incluem LGBTIs no processo, como se não fossem parte da história. Mas pessoas LGBTI+ estão na história e muitas vezes fazendo-a acontecer. Daí a necessidade de queerizar estas histórias.

Qual a importância para a comunidade LGBTI+ de trazer à tona os álbuns de família?

Eu acho que às vezes nós, pessoas LGBTI+, somos invisibilizadas pelas imagens hegemônicas sobre o que se concebe como família nuclear. Mas para uma família sobreviver ela necessita de elementos e pessoas que façam as coisas diferentes. E para pessoas queer é importante ter representações que ela reconheça na família. É importante olhar para pesquisas que falam sobre o papel âncora que pessoas LGBTI+ tiveram em comunidades indígenas e africanas antes da colonização. Essas histórias são importantes. Como na tribo Zuni, nos Estados Unidos, onde existiam pessoas consideradas como o 3º gênero, pessoas com aspectos masculinos e femininos simultaneamente. É importante olhar para estas histórias porque elas apoiam quem nós somos hoje.

Em sua avaliação, existe uma maior invisibilização de pessoas LGBTI+ negras nos álbuns de família, comparando com pessoas LGBTI+ brancas?

Eu acho que a maneira pela qual o movimento LGBTI+ se tornou popular foi se adaptando à sociedade. Priorizando um certo tipo de corpo, um determinado gênero, o macho, o masculino. Um movimento de classe média, alta classe média branca. E algumas mulheres estabelecem uma complexa conformação, numa tendência a se conformar (acho que acontece o mesmo com pessoas negras no Brasil). Elas também querem estar em conformidade com o padrão, assumir passabilidade ou poder acessar. Ou ainda evitar a violência da discriminação que elimina oportunidades. Por isso é importante falar sobre a nossa diversidade enquanto LGBTI+.

Mas essa diferença é histórica, sempre foi desse jeito ou hoje em dia é diferente?

Eu não conheço muito do movimento LGBTI+ no Brasil. Mas nos Estados Unidos quem fez as coisas acontecerem, como em Stonewall, foram pessoas não brancas, pessoas trans e travestis. Essas eram as pessoas nos movimentos por direitos civis. E estas pessoas vivenciaram vários níveis de exclusão, foram presas. Nomes como Pauli Murray, que foi uma força importante nos movimentos por direitos civis no Sul, são comumente esquecidos.

Quais são as consequências dessa diáspora familiar para pessoas negras LGBTI+?

Nós ficamos na falta. Temos uma visão distorcida da história sobre a realidade. Uma versão higienizada. E é comum pais, mães e familiares acharem que há algo de errado com jovens LGBTI+, porque não se conhece pessoas LGBTI+ da história da diáspora. Então é como se só houvesse uma forma de existir — hetero e branco (ou no armário rsrsrsrsrs).

E quais são as consequências para pessoas LGBTI+ que são invisibilizadas por suas próprias famílias?

Atinge-se direto a autoestima. As condicionantes familiares para aceitação implicam em uma guerra (familiar) por direitos, que gera pessoas contidas. Muitas pessoas LGBTI+ cometem suicídio ou vão para as ruas, desperdiçando suas vidas e as possíveis contribuições que dariam para a sociedade.

Como foi pra você, pessoa negra e LGBTI+, mergulhar nesse trabalho?

Liberador! É libertador, para mim fazer este trabalho. E também uma benção. Ser livre para ser eu mesmo e para produzir estes trabalhos (sobre a comunidade queer e famílias). Fora dos EUA às vezes é mais difícil. Em alguns lugares, como em alguns países africanos, pessoas e ONGs tentam se aproximar de mim. Eles não podem se expressar livremente. Isso me dá força para que vá a estes lugares e tente abrir espaços. E isso já é alguma coisa.

Como pessoa negra LGBTI+ afro-americana, que esteve no Brasil e em países Africanos, quais as principais diferenças na situação da população LGBTI+ nestes lugares?

Me assumi como pessoa queer há mais de 30 anos. De lá pra cá a comunidade LGBTI+ mudou muito. Mas é complicado fazer generalizações porque existem diferenças regionais. Como no sul dos EUA, onde ainda há lugares muito fechados, comunidades rurais onde não é possível exercer sua sexualidade livremente. Já em outros lugares, como Atlanta, é possível ser uma pessoa negra abertamente queer e existem comunidades fortes, que possuem voz. Em Nova York, por exemplo, as coisas mudaram muito depois da internet. Bares e outros espaços sociais se resignificaram.

Talvez seja uma questão geracional. Eu trabalho muito, então não saio tanto, mas percebo que haviam mais espaços não inclusivos. Acredito que os apps mudaram isso, porque você conhece os espaços antes de estar lá e pode verificar se são abertos ou não para todas as pessoas.

Minha experiência em Salvador foi singular, mesmo não falando português. Como as pessoas são muito expressivas havia uma comunicação não verbal. Diferente dos EUA, onde as pessoas são mais reservadas. Acho que no Brasil as pessoas são mais calorosas, sinto que o meu trabalho, por exemplo, é mais valorizado aqui (Brasil) do que lá. Na exibição dos meus filmes That’s My Face e os Doze Discípulos de Nelson Mandela, no Rio, em 2009 e 2010, eu fui aplaudido por 4 minutos. Isso é reconhecimento. Nos EUA, se concentram mais estritamente na minha trajetória de CEO e também no fato de o meu trabalho não ser tipicamente afro-americano. Eu tenho uma sensibilidade diaspórica, não sou tipicamente estadunidense. E existem diferentes grupos de cineastas negros, alguns querem ir mais para o lado Hollywoodiano, outros fazer mais ativismo. Nos últimos 20 anos a arte têm sido mais orientada para o mercado, então, termina sendo sobre o que você vende. Mas sigo mantendo no meu trabalho o ativismo.

Qual a mensagem que você deixaria para pessoas negras LGBTI+ do nosso país?

Orgulhe-se de sua história e insista em olhar para você. Busque os seus ancestrais LGBTI+, os ancestrais históricos, resgate-os e garanta que eles apareçam na história. Isso não é dito sobre nós, pessoas negras e LGBTI+, então é nossa responsabilidade trazer isso à consciência e fazer com que a história seja a mais diversa possível.

Pra gente pensar!

Saí da conversa com Thomas em estado de pós-terapia. Animado e contente porque muito do que escutei fez eco em minha cabeça. Mas atordoado pelo entendimento da necessidade imediata de ação. Ação para que possamos ser pessoas negras LGBTI+ felizes em nossas famílias, para que as nossas famílias entendam e respeitem as nossas condições, para que a sociedade entenda e respeite as nossas realizações. Ação para que possamos existir.

E todos estes entendimentos de necessidade de ação geraram uma certa tristeza, porque a nossa família deveria ser o nosso porto seguro, um espaço de acolhida e conforto de todas as adversidade e desafios que uma pessoa LGBTI+ enfrenta na sociedade. Mas constantemente é o primeiro espaço onde experimentamos LGBTIfobia. Muites de nós crescem convivendo e resistindo, física e psicologicamente, a pais, mães, irmãos e irmãs que violentam repetidas vezes a nossa existência, os nossos corpos as nossas identidades. Somos, desde muito cedo, violentades moralmente, psicologicamente e muitas vezes fisicamente.

É um caminho árduo e solitário resistir ao preconceito e às diversas fobias dentro de sua própria família, dentro de casa. E toda essa força para seguir existindo deixa cicatrizes que não somem com o tempo. Cicatrizes no corpo, na mente e na alma. Mas, ainda assim, seguimos existindo e resistindo, nos reinventando para podermos viver, para podermos ser.

Minha gratidão ao Thomas, por ter compartilhado conosco seu conhecimento e a sua visão do processo familiar para pessoas negras e LGBTI+, e por ter me proporcionado momentos tão agradáveis. Minha gratidão também ao Nathan Simões, que topou dividir comigo a responsabilidade que foi fazer essa entrevista, e à maravilhosa Ana Flávia Magalhães pinto, que trouxe o Thomas para o Brasil e fez a ponte para que pudéssemos (eu e o Nathan) entrevistá-lo.

Leandro de Carvalho é baiano, morador de Brasília, um internacionalista e quase economista. Regido por Omolu e Oxum. Guardião da Ei! Comunidade de Aprendizagem para Empreendedores, atua na TODXS Brasil como analista no time de Mensuração de Impacto.

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