Por que precisamos cada vez mais do Dia Internacional da Mulher?

Muito já foi conquistado, mas, para avançar, precisamos olhar para o que nos difere

Camila Nishimoto
TODXS
8 min readMar 8, 2020

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Ato 8M 2019 — Rio de Janeiro (Créditos: Mídia Ninja)

Quando se pesquisa o termo ‘dia internacional da mulher’ em buscadores na internet, os resultados obtidos são majoritariamente relacionados a como surgiu este dia.

vários registros de protestos e passeatas de mulheres operárias no início do século 20, nos Estados Unidos e na Europa. O grande consenso é que a partir deles foi estabelecido o marco do dia 8 de março.

Hoje um movimento global com tema, hashtag e símbolo gestual, o Dia Internacional da Mulher representa os avanços conquistados.

Mas não se pode esquecer do caminho que ainda é preciso trilhar, considerando que a data marcada muitas vezes ainda recai em retratar apenas a história de luta da mulher branca, cis e heterossexual sob uma perspectiva colonizadora.

A equidade de gênero está longe de ser uma realidade, ainda que tenha se tornado objetivo em muitas frentes.

No Brasil, o feminicídio possui taxa de 4,8 para cada 100 mil mulheres, o que nos coloca como o quinto país que mais mata mulheres no mundo, segundo a OMS.

A TODXS conversou com algumas mulheres inspiradoras para entender o que mantém cada vez mais necessário o 8M e a importância do reconhecimento do impacto das interseccionalidades no avanços femininos.

As barreiras do gênero não são iguais para todas

Para Brenda Safra, criadora de conteúdo no Muito Interessante, negra e mulher trans, “as barreiras que nós, mulheres, temos que quebrar socialmente para sermos reconhecidas, admiradas e referenciadas são enormes e estão longe de diminuírem”.

Em 2019, o número de transfeminicídios confirmados foi de 124. Apenas 11 dos quais tiveram suspeitos identificados, segundo Dossiê Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras.

Sua identidade de gênero afeta diretamente a forma como ela é reconhecida pela sociedade. “Eu, enquanto mulher trans, falo que esse espaço de respeito é muito mais difícil de ser alcançado. Os degraus do sucesso para nós, mulheres trans e travestis, sobretudo negras, ainda nem foram construídos direito”, complementa Brenda.

Ato Dia Nacional da Visibilidade Trans 2018 — Brasília (Créditos: Mídia Ninja)

“Os motivos que nos impedem de avançar em nossos direitos são vários, passaria dias escrevendo”, comenta Alina Durso, branca, cantora e travesti.

Mas o bloqueio hostil do acesso a locais femininos por outras mulheres é uma das situações mais difíceis para ela. “Somos negadas a estar em espaços que também são nossos, por outras que poderiam estar estendendo suas mãos, nos acolhendo e tornando nossa luta menos árdua”, explica Alina.

“É difícil conseguirmos avanços enquanto corpo marginal e ‘fora da norma’, com as nossas nos expulsando de espaços que também são nossos por direito.” — Alina Durso

A cantora, natural de Bauru/SP, ainda explica como a transfobia velada desempenha um papel de manutenção da lógica preconceituosa direcionada a mulheres trans e travestis.

“É difícil adquirirmos direitos enquanto mulheres cis ainda continuem zombando da aparência de mulheres trans e travestis, com aqueles clássicos: ‘acordei com uma voz rouca hoje, estou parecendo uma travesti’”, afirma ela.

Racismo estrutural afeta como mulheres são percebidas

Mesmo dentro do movimento feminista, onde deveriam ser acolhidas, mulheres não-brancas enfrentam dificuldades de ter suas pautas e necessidades consideradas.

Isso se dá porque as camadas do privilégio hegemônico (cis, branco, heterossexual e capacitista) não ficam de fora nem mesmo de movimentações em prol da equidade de gênero.

Ingrid Lee, mulher cis, artista e ilustradora explica mais sobre essa dificuldade de identificação. “Enquanto uma mulher amarela, com deficiência e bissexual, não apenas sigo acompanhando discussões que tensionam esses recortes, como também vivencio em minha própria pele diversas questões que partem disso”.

“Por muito tempo, mesmo dentro do feminismo, tinha dificuldades de me identificar plenamente com os debates vigentes, porque não se encaixavam completamente em minha experiência”. — Ingrid Lee

Segundo o Atlas da Violência 2018, mulheres negras têm 78% mais chances de serem vítimas de feminicídio. “O Brasil é, atualmente, o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. As maiores vítimas são negras. No entanto, não é como se morrer fosse a única forma de nos silenciar”, afirma Brenda.

A produtora de conteúdo comenta que a falta de representatividade negra é um dos motivos pelos quais ela acredita que o 8M se faz cada vez mais importante. “A data internacionalmente conhecida para valorizar e visibilizar mulheres ainda se faz necessária, principalmente quando se observa a ausência de mulheres negras em cargos de liderança”.

Segundo levantamento realizado pela Talenses e Insper, das 415 empresas analisadas, 95% da presidência é ocupada por homens ou mulheres brancas. Nas companhias com mulheres no cargo, nenhuma mulher negra ocupa a vice-presidência e apenas 1% é diretora.

Mulheres indígenas, além de enfrentar o aspecto étnico-racial somado ao de gênero, também encontram dificuldades de acesso geográfico, cultural e linguístico a políticas afirmativas.

Em entrevista à revista AzMina, Léia do Vale Rodrigues, do povo Wapichana, comenta que mulheres indígenas encontram-se mais vulneráveis à violência doméstica por falta de conhecimento da legislação em suas comunidades.

Para realizar uma denúncia, a grande maioria das mulheres indígenas habitantes de aldeias precisa percorrer longas distâncias, usando variados e precários meios de transporte.

O racismo estrutural precisa ser levado em consideração ao discutir equidade de gênero. “Ao meu ver, creio que, para se discutir racialidade e feminismo, deve levar-se em conta a experiência de não somente o que nos aflige, mas para além disso, reconhecer opressões estruturais contra mulheres negras, indígenas e de outras ascendências asiáticas para além do leste (mulheres marrons, do oriente médio e sul/sudeste asiático)”, elenca Ingrid.

O corpo feminino não-padrão

Quanto mais afastada uma mulher ou travesti se encontra do padrão estabelecido, maiores as chances de ser vítima de múltiplas violências.

A existência fora do padrão pode acarretar inúmeras situações de opressão, sendo uma delas a gordofobia. Para a UX Researcher Rafaela Souza, mulher cis, parda e gorda, “o que mais impede as mulheres gordas de ter plenos direitos atualmente é o acesso. Toda a estrutura física é planejada para corpos menores”, elucida ela.

As barreiras para existir em diferentes espaços e ter acesso a coisas básicas do dia a dia estão entre as dificuldades elencadas por Rafaela. “Eu falo sobre não conseguir acessar transporte público, tratamento de saúde, entretenimento, trabalho, educação. Todos os âmbitos são negados quando você não consegue caber, entrar, sentar e ter o mínimo de conforto nos lugares”.

O viés gordofóbico de consultórios médicos é uma realidade hostil que, segundo ela, leva mulheres gordas a negligenciar sua saúde para evitar sofrer violência. “Eu consigo fazer uma comparação clara. Já fui uma gorda maior, fiz cirurgia bariátrica e hoje sou uma gorda menor”, explica ela.

“Somente após o meu emagrecimento foi que recebi diagnósticos corretos de doenças que já tinha, além de ter de lidar para sempre com as consequências de uma cirurgia que trouxe apenas prejuízos para a minha saúde”, completa Rafaela.

Ingrid Lee, como PcD, elucida que mulheres com deficiência encontram-se mais vulneráveis ao machismo e à estrutura patriarcal. “Da população PcD, as mulheres correspondem à maioria e, destas mulheres com deficiência, elas têm cerca de 4 vezes mais chances de sofrerem violência do que mulheres sem deficiência”, explica ela.

“A violência (doméstica e sexual, principalmente) sofrida por mulheres PcD têm mais chances de ser recorrente, justamente pela dificuldade em fazer denúncias e ter acesso à órgãos que possam acolhê-las plenamente”, comenta a ilustradora.

Muito disso se respalda na fetichização de corpos fora do padrão normativo. Ingrid comenta sobre esse aspecto. “Mulheres asiáticas sofrem constante fetichização, como ficou claro no último ranking da palavra-chave ‘japonesa’ ser a mais buscada no portal pornográfico PornHub, que se reflete na realidade de também liderar os índices mais altos de assédio sexual (seguido de mulheres negras e pardas, segundo DataFolha de 2017)”.

A falta de acesso ao mercado de trabalho formal e a consequente iniciação na prostituição como uma das poucas alternativas à subsistência é um dos principais mecanismos de marginalização da população de mulheres trans e travestis.

A humanização de mulheres cis, trans e travestis é outro ponto de necessidade urgente levantado por Alina Durso. “Que os homens consigam nos ver como uma figura que eles possam ter admiração, por sermos quem somos, por fazermos o que fazemos. Que parem de nos ver apenas como pessoas que estão ali para satisfazer seus desejos sexuais”.

Organização feminina e representatividade

Muito tem se falado sobre o poder da representatividade nos últimos anos. Ter mais mulheres em posição de destaque é um importante avanço.

Mas, mais do que isso, é necessário que estas sejam mulheres comprometidas em construir degraus para que outras subam depois delas. Sendo as outras não apenas mulheres brancas, cis, heterossexuais e de classe alta (o padrão mais visto hoje em posições de liderança).

(Créditos: © Libby VanderPloeg)

Para a diretora de projetos na TODXS, Jaqueline Venturim, mulher cis, branca e lésbica, “para qualquer tipo de avanço ser feito, é preciso que pessoas com algum tipo de poder acreditem e encorajem mulheres”.

Ela elenca alguns exemplos positivos dessa representatividade. “Para que exista um grupo de diversidade dentro de uma empresa, a diretoria precisa apoiar e acreditar que uma iniciativa dessas seja necessária”.

Jaqueline ainda aponta o poder midiático de influência como chave para conquista de novos avanços. “Enquanto o poder público e a grande mídia não apoiar esses avanços, eles não vão ocorrer”.

O padrão hegemônico também perpassa o Orientalismo e a colonização. Para Ingrid Lee, contar as próprias histórias e ver-se representada é essencial para descaracterizar esse padrão. “Para subverter e ir contra o Orientalismo, temos que criar nossas próprias narrativas. Apoderar-se e reapropriar o que nos diz respeito, a fim de desmantelar o monopólio discursivo da branquitude”, explica ela.

A arte foi a maneira que encontrou de colocar-se em movimento para destacar histórias até então invizibilizadas. “Há várias formas de ação. Mas, no meu caso, optei justamente pela a arte e as histórias em quadrinhos, trazendo narrativas que não somente dizem a respeito de corpos asiáticos, mas também outros também tidos como dissidentes, de forma que também a centralidade não seja sempre sobre resistência, mas tendo sua presença em minhas histórias de maneira orgânica e natural”.

Os debates sobre equidade de gênero ainda se encontram em diferentes níveis, uma vez que a desconstrução é um processo absorvido de formas diferentes por cada pessoa.

Entretanto, é importante pontuar que o feminismo não é a única forma de luta pelos direitos das mulheres e pessoas alinhadas a gêneros femininos. Outras movimentações de mulheres, sob perspectivas não-europeias e colonizadas, existem e não devem ser invalidadas por não se rotularem feministas.

O mulherismo africana é uma delas. Do inglês Womanist Afrikana, o movimento “é uma forma de pensamento matriarcal afrocêntrico cunhado por Cleonora Hudson, em 1987”, como explica Aza Njeri, em texto publicado no Alma Preta.

Seu principal objetivo é “segundo Cleonora Hudson, ‘criar critérios próprios (das mulheres africanas) para avaliar suas realidades tanto no pensamento quanto nas ações’”, completa Aza.

Em agosto de 2019 foi organizada a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas no Brasil, levando à Brasília mais de três mil mulheres indígenas de todo o país. O tema central era “Território: nosso corpo, nosso espírito”, colocando em destaque a posição da mulher em comunidades indígenas nos dias atuais.

Em entrevista ao HuffPost, Célia Xakriabá, a primeira de seu povo a ter um mestrado, explicou que a questão do feminismo é mais complexa para mulheres indígenas. “Eu digo que a nossa luta é antes do conceito e vai ser pós-conceito. Mas, enquanto mulher que está nesse coletivo, dizer que nós nos definimos em um conceito… Eu ecoo a voz da outra e posso dizer que não existe um único jeito de chamar. Existem vários outros jeitos de se unir na luta.”, afirma ela.

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