Vitor Garcia de Oliveira
TODXS
Published in
13 min readNov 25, 2019

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Quando Kássio Rosa era adolescente, ele se sentia ansioso para poder doar sangue e, até mesmo, medula óssea. Logo que completou 18 anos*, Kássio foi doar pela primeira vez, e doou diversas vezes até que iniciou sua vida sexual.

Kássio é gay. Por isso, foi barrado por uma portaria do Ministério da Saúde que regulamenta a doação de sangue e considera temporariamente inapto o doador homem que teve relação sexual com outro homem nos últimos 12 meses. Não importa o tipo de relação, não importa os cuidados durante a relação. Qualquer forma de relação sexual entre dois homens torna os dois impróprios para serem doadores.

Depois de ser impedido de doar, Kássio até chegou a mentir uma vez dizendo que não tinha tido relações sexuais, mas chegou a conclusão: “se não querem meu sangue, não vou doar mais”.

A origem da restrição

O cenário nunca foi fácil para homens que fazem sexo com outros homens (HSH) e querem doar sangue no Brasil. A portaria que barrou Kássio veio apenas em 2002, junto com uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre o tema. Antes disso, as regras eram ainda mais fortes: uma portaria de 1993 excluía permanentemente essas pessoas por terem a “história de pertencer ou ter pertencido a grupos de risco para SIDA/Aids, e/ou que seja ou tenha sido parceiro sexual de indivíduos que se incluam naquele grupo”.

Essa restrição está diretamente relacionada com a primeira manifestação do vírus HIV, causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), e o surto da doença nos anos 70 e 80. Naquele período, os homossexuais foram um dos grupos mais afetados e a doença foi inclusive considerada como o “câncer gay”. Disso, surgiu uma forte associação entre Aids e orientação sexual.

Com o surgimento dos primeiros testes de detectação, os cientistas notaram também um ponto importante: a janela imunológica, isto é, o período compreendido entre a infecção e o início da formação de anticorpos específicos contra o agente causador da doença, que passam a ser detectáveis pelos testes. Nesse intervalo de tempo, que geralmente dura algumas semanas, o paciente, apesar de ter o agente infeccioso presente em quantidade suficiente para infectar outras pessoas, apresenta resultados negativos nos testes para detecção de anticorpos.

Naquele contexto inicial da Aids, que pouco se sabia sobre a doença e medidas efetivas de combate, fica um pouco mais fácil de entender então porque houve um boom de leis pelo mundo que barravam a doação de sangue de pessoas que faziam parte dos chamados “grupos de risco”, que incluíam os HSH.

Mas em pleno 2019?

Em uma matéria deste ano, o portal “Aos Fatos” trouxe que “um dos principais argumentos a favor do tratamento diferenciado de homens que fazem sexo com homens ainda é que a taxa de infecção por HIV é significativamente maior nessa parcela da população.” Segundo um estudo da OMS (Organização Mundial da Saúde), esse grupo tem 19,3 vezes mais chances de ser infectado com o vírus do que o resto da população. Porém, como a matéria aponta, “o que não está claro é como esses dados impactam o risco de doação de sangue.”

Mesmo com esses dados, o Brasil adotou uma nova regra em 2002 porque, após o surto inicial da doença, houve uma difusão de métodos de prevenção, como a camisinha e a diminuição da janela imunológica dos testes. O teste de ácido nucleico (NAT), obrigatório em todas as bolsas de sangue coletadas no Brasil desde 2013, agiliza a identificação dos vírus HIV e HCV, causador da Hepatite tipo C, fazendo com que a janela imunológica passe a ser em média de apenas 6 a 20 dias.

Apesar dos avanços, porém, o Ministério da Saúde e a Anvisa optaram por manter a abstinência sexual de HSH por 12 meses como uma “precaução necessária”. Os órgãos afirmam que a orientação sexual não é usada como critério para seleção de doadores por não constituir risco em si, mas que a restrição está fundamentada em evidências epidemiológicas e técnico-científicas com o objetivo de garantir qualidade e segurança na transfusão de sangue. Por isso, segundo esses órgãos, é errado dizer que essa restrição possui caráter discriminatório (leia a Nota Técnica da Anvisa sobre o assunto aqui).

Do lado de cá, parece bem discriminatório sim

Mesmo com essa flexibilização na restrição, que antes restringia permanentemente a doação de homens que fazem sexo com outros homens, os resultados acabam permanecendo quase os mesmos na prática. Isso porque, para doar sangue o homem precisa ficar um ano sem relações sexuais com outro homem, independente de o parceiro ser fixo ou não.

Sem contar que o preconceito geralmente também está presente nos locais de doação. “Sempre me disseram para eu não falar que sou gay quando vou doar porque isso influencia inclusive na forma como você é tratado, dependendo do lugar”, conta Gustavo Salles, que é homossexual e doou sangue em um reconhecido hospital de São Paulo.

Por esses problemas, defensores de mudanças nas regras entendem que a entrevista de triagem para doações deveria levar em conta somente o comportamentos de risco e não a prevalência da doença em todo um grupo. Isso porque homens que fazem sexo com outros homens, mas tem comportamento sexual seguro, acabariam sendo classificados como grupo de risco, termo ultrapassado e que não deve ser mais usado.

Esse é o caso de André**, que mesmo sabendo da restrição, tentou fazer a doação de sangue. Ele conta que na época estava em relacionamento estável e havia feito exames há pouco tempo. “Eu não tinha nada. Era super jovem, saudável, mal ficava gripado, nem tomava antibiótico pra nada. Então eu imaginei que não fosse ter problema”. De acordo com André, a sua intenção era explicar que tinha relações protegidas com somente um parceiro e realizava exames periodicamente. Mesmo assim não deu certo. “No questionário, eu achei estranho que a pergunta não era se eu tinha feito sexo desprotegido, mas se eu tinha feito sexo com outros homens. Na minha entrevista, não teve qualquer pergunta questionando sobre sexo desprotegido com mulheres. Então entendi que a questão era fazer sexo com outros homens e não fazer sexo desprotegido.”

E como fica a realidade no Brasil então?

Por as restrições serem vistas como discriminatórias, muitos homens que fazem sexo com outros homens optam por mentir ao doar sangue. “Eu nunca tinha doado antes porque eu sabia que teria que mentir sobre quem eu sou. Mas uma amiga me chamou e eu aceitei, já que sempre tive vontade de doar”, conta Flávio Henrique. “Uma das perguntas era se eu havia feito sexo com outro homem nos últimos 12 meses. Eu parei por um momento para tomar a decisão e então menti, dizendo que não”. Ele relata que foi uma sensação muito ruim ser obrigado a mentir para exercer esse papel como cidadão. “Eu estava casado há quase 5 anos e mesmo os resultados dos meus exames periódicos sendo negativos, meu sangue seria descartado”. Gustavo Salles desabafa o mesmo: “É uma sensação de impotência, onde você não pode ser você mesmo. É difícil e machuca muito.”

Outros homens optam por nunca mais doar. Guilherme Ferreira conta que doou pela primeira vez porque a avó de uma amiga estava internada. Quando entrou na faculdade, doou novamente no trote solidário e omitiu pela primeira vez sobre sua orientação sexual, por ter acabado de se assumir. “Depois disso, eu estava passando por um estágio com paciente onco-hematológicos e vi que muita gente precisa de sangue. Eu fui doar de novo e, na entrevista, a moça perguntou minha sexualidade e falei que era homossexual.”

Ele conta que a profissional questionou sobre o número de homens que havia se relacionado e, mesmo dizendo que havia tido um único parceiro, ela disse que não poderia doar porque homossexual era um grupo de risco, que não era aceito. Guilherme conta que alguns colegas o questionaram porque ele não havia mentido. “Eu não achei que era certo. Depois disso, nunca mais. Fiquei desconfortável.”

Vários amigos de André, citado anteriormente, falaram também para ele mentir para que conseguisse doar, mas ele nunca quis. “Fiquei pensando qual a confiabilidade disso, porque se eu estou mentindo que eu não sou gay, que eu não faço sexo com outros homens, as pessoas também poderiam mentir dizendo que não fizeram sexo desprotegido com sabe se lá com quantas pessoa. Então qual é o sentido de se excluir de antemão pessoas gays, sendo que as pessoas podem mentir em qualquer pergunta?”.

Histórias como essas ilustram a constatação trazida por uma reportagem da revista Superinteressante que aponta que são desperdiçados 18,9 milhões de litros de sangue por ano, por conta da restrição atual.

E como estão as coisas no resto do mundo?

Levando essa discussão para outros países, percebemos que não há um padrão seguido para lidar com a questão. Mas, no geral, os países se dividem em três grupos distintos.

No primeiro, homens que fazem sexo com homens não podem doar sangue de forma alguma (Dinamarca, Áustria e Croácia, por exemplo). Um segundo grupo estabelece um período mínimo sem relações sexuais, que pode variar entre os países (seguindo a regra de 12 meses do Brasil, podemos citar Austrália, Canadá, Finlândia, França, Holanda e EUA). E, por fim, há países que usam critérios baseados somente em comportamentos sexuais de risco, sem criar distinções relacionadas a grupos (como Argentina, Chile, Peru, Uruguai, Portugal, Espanha e Itália).

No segundo grupo, o que vem se percebendo, no geral, é uma diminuição no período de abstinência sexual exigido. Alguns pesquisadores fazem questão de sempre lembrar que, atualmente, o período de um ano ou mais extrapola o que seria necessário para se manter uma segurança na transfusão sanguínea. O Reino Unido, por exemplo, reduziu esse período para três meses.

Há possibilidade de mudança no Brasil?

Um fato recente reacendeu a esperança dos HSH que querem ser doadores. Em outubro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, liberou para julgamento uma ação que contesta a restrição imposta pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa. A ação ficou dois anos paralisada após o ministro ter pedido, em outubro de 2017, vista do caso, isto é, quando se solicita mais tempo para análise. Naquela época, a ação já tinha quatro votos favoráveis pela inconstitucionalidade da restrição: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Hoje, o que falta para dar continuidade ao julgamento é o atual presidente do STF, Dias Toffoli, pautar a sua retomada do julgamento, que ainda não tem qualquer previsão.

Ao mesmo tempo, uma pesquisa está sendo realizada na Universidade de São Paulo com o objetivo de avaliar as percepções, atitudes e práticas da população LGBTQ em relação à doação de sangue e suas atuais regras. O estudo busca trazer informações para as futuras pesquisas sobre a elegibilidade de grupos específicos da população para a doação de sangue e para embasar as discussões atuais. O estudo é importante para reclamações como a do André**, que enxerga uma falta de evidências científicas que deem sustentação às restrições. “Ou isso ou pelo menos elas não são apresentadas para nós quando a gente questiona. Então, a gente se sente simplesmente discriminado.”

Guilherme Galdino, que estuda Psicologia e trabalha com Miriane Zucoloto e Edson Zangiacomi na pesquisa, conta que a sua motivação inicial para se envolver com a pesquisa aconteceu por uma questão interna: ele se assumiu bissexual em 2015 e passou a pesquisar mais sobre sexualidade, gênero e todas as discussões relacionadas aos assuntos. “Foi a partir daí que eu descobri que na teoria homens gays, bi e panssexuais não podem doar sangue, mas na prática o que ocorre é que a população LGBTI+ inteira acaba não podendo doar. Quando eu descobri isso, eu fiquei chocado e achei um absurdo. Existem inclusive relatos de profissionais e médicos que afirmam que alguns bancos de sangue recusam sangue de mulheres lésbicas ou descartam. Pela legislação, isso não deveria acontecer.”

O jovem Ivo Júnior, por exemplo, diz que vê a proibição como uma forte influência por nunca ter doado sangue. “Eu nunca pensei em doar justamente porque sei que a gente não pode. Se fosse possível, é provável que essa ideia estaria mais ‘impregnada’ na minha cabeça e eu acabasse doando, ainda que eu morra de medo de agulha”.

A pesquisa da USP já vinha sendo realizado por Edson e Miriane, quando Guilherme recebeu um convite para integrá-la. “Eles me chamaram porque entenderam que é muito mais rico uma pessoa da comunidade estar dentro do meio científico podendo contribuir, trazer a própria vivência, ajudar na construção da metodologia e dos instrumento que íamos utilizar. Principalmente, porque sabemos que dentro da comunidade a gente entende essa política de deferimento de uma forma bem preconceituosa”.

Com o convite, veio a ampliação da pesquisa: antes voltada somente para homens que fazem sexo com homens, ela passou a abranger toda a comunidade LGBTI+, buscando entender a percepção dessa população como um todo. Pesquisas como essa já vêm sendo desenvolvidas ao redor do mundo, como na Universidade da Califórnia, onde Miriane fez seu doutorado. “Decidimos trazer isso para o contexto brasileiro para tentar atualizar os dados científicos que temos sobre o assunto, que são bem antigos”, explica Guilherme.

Uma das motivações da pesquisa é entender se hoje em dia o conceito de “grupo de risco”, adotado no Brasil e em outros países, ainda faz sentido ou se o foco deveria estar em comportamentos de risco. Além disso, os pesquisadores consideraram importante trazer no questionário questões sobre religião, já que entendem que elas interferem nos processos de doação de sangue, de relações sexuais e no próprio entendimento da sexualidade. Richard Dantas, por exemplo, que é homossexual e antes era Testemunha de Jeová, diz que nunca quis doar sangue por motivos religiosos. “Mesmo não seguindo mais a religião, ainda acredito nessa questão”.

Se interessou pela pesquisa? Clique aqui e contribua para ela!

* Em 2012, o Ministério da Saúde reduziu a idade mínima de 18 para 16 anos (com autorização do responsável) e ampliou a idade máxima de 67 para 69 anos.
** Os nomes de algumas pessoas foram preservados a pedido dos entrevistados.

A TODXS entende que a legislação atual brasileira que impede homens que tenham feito sexo com outros homens nos últimos 12 meses de doarem sangue não se sustenta no contexto atual.

Dado aos avanços dos testes de diagnósticos, entendemos que, hoje, a restrição é discriminatória com pessoas LGBTI+ que se sentem indiretamente afetadas ou desencorajadas a doarem. Apoiamos a realização de estudos mais aprofundados sobre o tema, como o que está sendo realizado na USP, mas, desde já, defendemos que as restrições deveriam estar baseadas em comportamentos de risco e não em supostos grupos de risco, que na prática acaba mirando a orientação sexual das pessoas doadoras.

Nós reunimos alguns depoimentos de pessoas que acompanham o nosso perfil no Instagram que tentaram doar sangue

Eu tentei doar em duas situações. A primeira foi aos 21 anos quando uma amiga esta precisando de doações. Nessa época eu estava começado minha vida sexual, e não fazia ideia dessa “regra”. Durante a triagem a enfermeira me perguntou se eu fiz sexo com alguém do mesmo sexo que eu, e quando eu respondi que sim ela me perguntou se eu já havia feito o teste do HIV. Eu disse que não, mas que havia feito sexo com camisinha. Ela me respondeu: “Infelizmente não podemos aceitar a doação porque se eu colocar na ficha que você é gay, eles irão descartar”. A segunda vez aconteceu na minha empresa, em uma doação coletiva. Durante a triagem perguntaram se havia algum LGBT, eu e mais dois amigos levantamos as mãos e fomos orientados a mentir para conseguir doar. Eu me recusei”.

- Antônio Valente (Duque de Caxias — RJ)

“Eu tentei uma vez mas foi o suficiente para não querer passar pelo que passei de novo. Eu fui ao Hemorio e a triagem começou normal, perguntas como sexo, idade, etc, até que chegou a pergunta sobre relações sexuais. Ela olhou para mim e perguntou se eu tinha relações com pessoas do mesmo sexo, eu disse que sim e ela abaixou a cabeça e encerrou o questionário dizendo que eu não posso ser doador e que essa informação ia estar no meu registro e mesmo se eu tentasse de novo, não conseguiria pois já sabem que sou gay, eu estava “marcado”. Não me perguntaram sobre meus exames, quando foi a última relação ou se eu tinha um parceiro fixo. Foi um dos momentos que eu mais senti vergonha de ser quem eu sou.”

Rafael Melo

“Eu costumava doar sempre que podia, e sempre ficava um pouco apreensivo na hora da entrevista. Em uma das triagens, a enfermeira me perguntou se eu era usuário de drogas, se havia feito sexo com prostitutas ou com pessoas do mesmo sexo. Só menti na última, dizendo que não havia transado com outro homem. Ela fez outras perguntas, e voltou a pergunta sobre sexo com outro homem, e novamente eu disse que não. Ela me olhou e disse “Tem certeza?. Tudo que consegui foi sorrir e acenar concordando, doei sangue me sentindo bem por fazer a coisa certa e mal porque preciso mentir sobre quem eu sou para fazer isso”.

Valdir M (Fortaleza-CE)

Sou doadora assídua e nunca fui impedida de doar, mas fico com medo de dizer que sou lésbica e ter que passar por isso.

Amanda Pina (Rio de Janeiro-RJ)

Eu sempre fui alguém que gosta de ajudar, desde sempre quis ser doador de sangue, medula e me declarar como doador de órgãos. A primeira vez que eu tentei doar sangue fui impedido logo na triagem quando disse que tive dois parceiros sexuais nos últimos 12 meses. Anos depois eu tentei mais uma vez, porque um conhecido estava precisando, e fui pronto para mentir. Desde do modo como eu iria agir até as roupas que eu ia usar, foi tudo pensado para deixar claro que eu não era gay e até disse que era casado com uma mulher. Se passar por heterossexual para ajudar outra pessoa é algo que dói muito na gente, mas que a gente faz por algo maior.

Eduardo (São Luís-MA)

Eu e meu marido estamos juntos há 6 anos. Desde o começo da nossa relação, quando ele se mudou para Floripa, ele doa sangue, eu não posso,pois tenho eu tenho diabetes. Ele disse que toda vez que vai doar, mesmo que seja a segunda, terceira, quarta… você faz os mesmos testes e responde os mesmos questionários sobre sua vida. Eles até comparam as respostas anteriores para saber se você está mentindo ou não. Sempre que ele vai, ele retira a aliança e diz que é hétero. Nunca teve problema. É chato né? Você ter que “esconder” sua vida para DOAR SANGUE!! Quantos litros de sangue são ignorados que poderiam salvar muito mais vidas?

Ricardo Cavalli (Florianópolis-SC)

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