TODXS
TODXS
Published in
11 min readAug 18, 2020

--

Tudo o que você, LGBTI+, precisa saber para doar sangue no Brasil hoje

Por Camila Nishimoto e Vitor Garcia de Oliveira

Há mais 3 meses, no dia 8 de maio de 2020, uma votação histórica no Supremo Tribunal Federal (STF) tornou possível que várias pessoas LGBTI+ tivessem o direito de exercer a sua cidadania.

Por 7 votos a 4, foi decidido que é inconstitucional proibir homens que tiveram relações sexuais com homens (HSH) nos últimos 12 meses de doar sangue. Apesar de a restrição ser, no papel, apenas para estes, por transfobia, mulheres trans e travestis também eram incluídas neste grupo. Além disso, indiretamente, até mulheres lésbicas e bissexuais tinham seu sangue descartado, por conta do preconceito, como alguns relatos comprovam.

Essa restrição possui um histórico antigo, relacionado à epidemia de HIV nos anos 80. A portaria que vigorava até alguns meses atrás data de 2002 e era uma atualização que “flexibilizava” outra decisão de 1993, que excluía permanentemente essas pessoas por terem a “história de pertencer ou ter pertencido a grupos de risco para SIDA/Aids, e/ou que seja ou tenha sido parceiro sexual de indivíduos que se incluam naquele grupo”.

Para saber mais sobre o contexto histórico da restrição de doação de sangue de pessoas LGBTI+, falamos sobre esse contexto:

Um dos argumentos levantados para defender o fim da proibição veio do relator e ministro Edson Fachin. Ele destacou que não se pode negar a uma pessoa que deseja doar sangue um tratamento não igualitário, com base em critérios que ofendam a dignidade da pessoa humana.

O dia da votação foi um dia de celebração para a população LGBTI+. Afinal, a derrubada dessa medida significava o fim do tratamento discriminatório nos hemocentros. Ou será que não?

Após um mês da decisão do STF, ainda havia hemocentros rejeitando essas doações. Esse não cumprimento da medida levou, inclusive, à criação de uma campanha da qual a TODXS fez parte. Nosso objetivo era pressionar a Anvisa e o Ministério da Saúde a fazer uma recomendação oficial que validasse a decisão do STF.

Fomos bem sucedidos e angariamos mais de 15 mil assinaturas. Mas ainda assim persistem os relatos de pessoas LGBTI+ que foram impedidas ou desencorajadas a doar.

Duas histórias em meio a tantas

Em São José do Rio Preto, cidade do interior de São Paulo com quase 400 mil habitantes, Thiago Gonzaga tentou doar sangue no início de julho. Ainda que sua vontade viesse de anos atrás, ele nunca havia doado por ser contrário à ideia de mentir para conseguir isso.

Após saber da liminar do STF, Thiago achou que finalmente conseguiria realizar esse ato de cidadania. Ele foi a um dos hemocentros da cidade e foi bem recepcionado na entrevista antes do procedimento. Porém, ao responder sim para a questão sobre ter tido relações sexuais com outro homem nos últimos 12 meses, ele se surpreendeu com a resposta.

“Ela falou que eu poderia doar sangue normalmente, mas que, provavelmente, a minha amostra seria descartada, por causa de prática insegura de sexo ou prática sexual perigosa. Eu não lembro exatamente o termo que ela usou”, conta.

Thiago chegou a questionar a funcionária sobre a liminar do Ministério da Saúde, mas ela afirmou que a nova portaria derrubava apenas o impedimento de doar e que continuava cabendo ao hemocentro aceitar ou não as amostras de sangue.

Mesmo assim, ele não se deu por vencido. Por fazer parte do Rotary, Thiago sugeriu uma campanha de doação de sangue, iniciativa comum da organização. Porém com uma diferença: a iniciativa seria focada em pessoas LGBTI+. “Com a campanha rodando, eu fui no local para doar de novo, em meados de julho. A partir daí, a postura deles mudou completamente. Foi outra moça que me atendeu, passei pelo questionário sem problemas, ela recolheu a amostra. Tudo muito normal.”

Ele deixa claro, porém, que ainda está cético com a mudança. “A bateria de testes que precisa ser feita no sangue para que ele realmente possa ser usado é grande. Então, ao meu ver, é mais fácil descartar porque a mentalidade retrógrada diz que as chances de ter HIV e outras doenças é maior em gay. Se os hospitais não estão testando nem covid, imagina amostra de sangue de viado. Mas eu estou realmente torcendo para estar errado.”

Dando um pulo para o Nordeste, o jovem João Victor Guimarães também foi impedido de doar sangue após a decisão do STF. Em Natal, Rio Grande do Norte, ele decidiu fazer a doação por conta da situação do COVID-19 que fez com que os hemocentros ficassem com estoques baixíssimos.

Na entrevista, a pessoa responsável fez uma série de perguntas, como de praxe. Todas permitiam que ele prosseguisse com a doação, até que ela questionou: você teve relações sexuais nos últimos 12 meses? “E eu falei que sim. Ai ela perguntou quantas eram e se havia sido com um parceiro fixo. No caso até teve, mas foi um tempo muito curto e eu não achei que teria tanta importância destacar um parceiro fixo durante 1 mês ou 2 num período de 12 meses”, conta.

Com isso, a pessoa responsável disse que ele não poderia doar. “Ela só me deu um papel pra eu assinar e embaixo tinha ‘motivo 14’, eu acho. Alguma coisa do tipo. Ela não me explicou nada, não me falou nada, não me deu nenhuma justificativa além de que por eu ter tido relações sexuais nos últimos 12 meses, eu não poderia.”

João Victor enxerga no episódio um claro caso de homofobia porque a responsável usava constantemente a palavra parceiro, no masculino. “Eu procurei uma pessoa no Instagram que tinha postado sobre isso, pra tentar tirar dúvidas em relação ao procedimento. Ele me explicou que foi a mesma coisa que aconteceu com ele: que eles não poderiam perguntar se a pessoa teve relações com homem, mas que poderiam perguntar se tinha tido relações sexuais nos últimos 12 meses. Eu fiquei sem entender no que isso interferia, já que para uma pessoa heterossexual está ok ela ter relações sexuais com diversas parceiras nos últimos 12 meses e ainda assim ser apto a doar. E com um LGBT não ser possível. Então pra mim não mudou nada e não teve avanço nenhum nesta lei.”

Após esse episódio, João Victor decidiu não tentar doar em outro lugar porque, para ele, foi uma situação muito humilhante. “Eu fiquei muito envergonhado. Quando eu saí da sala, as moças que ficam lá na recepção perguntaram se tinha dado certo. Elas perguntaram o motivo e eu nem soube responder. Pelo que eu tinha entendido era por conta de ter tido relações sexuais nos últimos 12 meses, porém eu não quis dizer isso porque é muito escroto e ridículo eu ter que expor minha vida sexual pras pessoas dessa forma, para justificar o motivo de eu não ter sido permitido de doar sangue.”

Iniciativas que estimulam a doação LGBTI+

Muitas pessoas LGBTI+ têm vontade de doar sangue e ajudar outras pessoas. Mas os anos de discriminação institucionalizada ainda reverberam. Especialmente se pensarmos que, mesmo com a decisão do Supremo, alguns hemocentros continuam a descartar nosso sangue.

Por isso, várias campanhas surgiram para estimular a nossa comunidade a doar, tendo a garantia de um espaço seguro e apoio da comunidade ao fazê-lo.

Separamos algumas aqui embaixo para dar aquele quentinho no coração e, quem sabe, inspirar mais pessoas LGBTI+ a encherem os bancos de sangue brasileiros — sempre lembrando das medidas de segurança para proteger-se do COVID-19.

João Pessoa (PB)

No dia 29 de junho, o movimento LGBTQ+ da Paraíba realizou uma doação de sangue coletiva em João Pessoa. A ação foi realizada no Hemocentro da Paraíba como forma de comemorar o Dia do Orgulho LGBTI+, composta por diversas organizações.

Rio de Janeiro (RJ)

O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) realizou a primeira doação de sangue com pessoas LGBTI+ da história da instituição. Além do hospital universitário, outras duas unidades participaram da campanha: a Santa Casa de Barra Mansa e o Hospital São João Batista de Volta Redonda.

A ação foi parte da Semana do Orgulho LGBTI+, em junho, promovida pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH).

Ampliada, a campanha gerou uma parceria para capacitar funcionários do banco de sangue a atenderem essa nova parcela da população que começou a doar agora.

Mas e se, hoje, eu for impedido de doar?

Tentou doar e ainda não conseguiu que seu sangue fosse coletado e utilizado? Saiba o que fazer para que seu direito de doar seja respeitado!

Explique no posto de coleta que não há mais impedimento legal para a doação:

  • O STF, na ADI nº 5543, decidiu que homens que tiveram relação sexual com outros homens dentro do prazo de 12 meses podem doar sangue. A decisão, proferida em 8/5/2020, tem eficácia para todos os cidadãos brasileiros e vincula todos os órgãos da administração pública
  • A ANVISA, em cumprimento à decisão do STF, revogou o trecho da RDC nº 34, de 11/6/2014, que impunha esse impedimento. Com a revogação em 7/7/2020, não existe mais impedimento legal para a coleta e uso do sangue doado por homens que tiveram relação sexual com outros homens dentro do prazo de 12 meses

Insista que a negativa é ilegal e contraria expressa decisão judicial, e procure documentar tudo: Nome do atendente e do posto de coleta, foto da ficha de cadastro e da justificativa para a negativa, vídeo e outros elementos que possam comprovar o ocorrido.

Denuncie a situação ao Ministério Público e aos Centros de Referência no Combate à Homofobia.

Confira os canais de denúncia do MP em seu Estado aqui.

Mesmo após a mudança, nem tudo é tão simples

Ainda que muitos de nós, pessoas LGBTI+, tenhamos comemorado a mudança no cenário para doação de sangue, alguns estranharam a rapidez como tudo aconteceu e a falta de clareza sobre os novos critérios de doação. Alguns pontos também acabaram não sendo discutidos com a população para essa tomada de decisão.

Por conta disso, conversamos com Guilherme Galdino que integra uma pesquisa realizada na Universidade de São Paulo com o objetivo de avaliar as percepções, atitudes e práticas da população LGBTQ em relação à doação de sangue.

Você entende que a portaria do Ministério da Saúde que regulamentava a doação de sangue era preconceituosa?

Com certeza. Principalmente quando se tem em mente os conhecimentos científicos que foram adquiridos nos últimos anos. A restrição de 12 meses para HSH vai em contramão das medidas que outros países têm tomado nos últimos anos. Países como a França e a Dinamarca alteraram este período de inaptidão para 4 meses a partir da última relação sexual. Além disso, eles consideram que se um HSH está em relacionamento monogâmico, este pode doar sangue sem problemas. Já no Reino Unido, o tempo a ser considerado a partir da última relação sexual é de 3 meses.

Com as novas tecnologias que a ciência tem proporcionado para a testagem da sorologia do sangue, se torna possível que o tempo de deferimento seja consideravelmente menor. Atualmente, o NAT é um teste que, em estudos laboratoriais e controlado, foi capaz de identificar a presença do vírus do HIV no corpo humano em torno de 11 dias a partir da data da infecção. Mas, tendo em vista que estes estudos foram controlados, entende-se que este tempo pode variar. É por isso que os países têm adotado a política dos 3 meses, por exemplo.

A decisão do STF pode ser considerado um avanço para o cenário de doação de sangue por pessoas LGBTI+ no Brasil?

Acredito que esta pergunta é bem complexa de ser respondida. Por um lado, podemos entender que a decisão do STF representa que a voz e as demandas da comunidade LGBTQIA+ têm sido ouvidas. Mas, ao mesmo tempo, penso que a decisão do STF acabou ocorrendo de uma forma em que não foram oferecidos os embasamentos científicos que fomentaram a decisão. Além disso, a decisão não foi discutida com a ANVISA, então surgiram alguns relatos de homens gays e bissexuais que foram doar sangue mas não conseguiram. Então entendo que faltou uma comunicação entre estes órgãos para discutir como seria o novo procedimento de doação de sangue: como seria realizada a entrevista pré-doação, quais seriam os novos critérios de deferimento, como o período de janela imunológica seria contemplado nesta decisão.

Quais são as consequências de se derrubar uma resolução sem se estabelecer regras claras no lugar?

Devemos pensar que a saúde envolve não apenas questões biológicas mas, também, questões sociais. Pesquisas recentes mostram que, embora se esperasse o contrário, a incidência do HIV têm crescido dentro da população de homens gays, bi e pansexuais no Brasil. Em um artigo da Ligia Kerr, que é uma pesquisadora referência na área de hemoterapia e HSH, aponta-se que o estigma, preconceito e discriminação podem contribuir para o crescimento da epidemia de HIV e AIDS. Então, quando temos em mente estas questões, entendemos que é extremamente necessário que as políticas de doação de sangue sejam muito bem construídas e embasadas, com instruções claras e objetivas a fim de explicar para toda a população, não somente para os doadores e receptores, a importância de se proteger durante as relações sexuais bem como a fim de elucidar questões sobre quem está apto ou não para doar.

É muito importante olharmos para o que a ciência tem produzido e nos mostrado, pois se não o fizermos podemos cair em um discurso vazio e que não se mostra efetivo na prática.

Eu penso que os dados apresentados pela ciência nos convoca a pensar alternativas para fazermos com que a incidência de HIV entre os HSH diminuam e, dessa forma, no futuro, que esta população possa doar de forma tranquila e segura para todos os lados envolvidos. Lutar contra o preconceito, discriminação e exclusão da população LGBTQIA+ vai além de questões sociais mas é, também, questão de saúde pública.

Estão são questões impossíveis de se responder em poucas linhas, porque são extremamente complexas. Mas o que fica é que, infelizmente a realidade é um pouco diferente do que gostaríamos que fosse e é por isso que nós, LGBTs devemos nos mobilizar (seja na ciência, no seu círculo social, na sua escola, etc.) para que possamos mudar a realidade e fazer com que esta incidência de HIV caia dentro dos HSH. Assim, será possível construir políticas de doação de sangue que sejam responsáveis com toda a população.

Países como Argentina, Portugal e Itália usam critérios baseados somente em comportamentos sexuais de risco, sem criar distinções relacionadas a grupos, como ocorria no Brasil. Já países como o Reino Unido reduziram o período mínimo sem relações sexuais para três meses. Qual você acha a alternativa que mais se encaixa com o perfil brasileiro?

Existe uma pesquisa que foi realizada aqui no Brasil que diz que poucas pessoas estariam dispostas a responderem questões específicas sobre suas práticas sexuais na hora de doar sangue. Então, penso que neste momento a possibilidade de usar os comportamentos de risco como deferimento para a doação de sangue não seria possível. Em contexto brasileiro, talvez diminuir o período de abstinência seja a melhor solução, mas ressalto que as pesquisas nessa área ainda são escassas em solo brasileiro e é por isso que convoco a todos para fazerem parte da ciência. A minha pesquisa que está se concluindo agora é a primeira no Brasil que pretende ouvir da própria comunidade LGBTQIA+ o que eles pensam sobre sua saúde, suas práticas sexuais e sobre o procedimento de doação de sangue. Esperamos que com os resultados possamos contribuir cientificamente com a discussão acerca do tema.

--

--