A biblinha, um conto de Jacqueline Araujo

revista toró
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4 min readMar 16, 2023

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Eu sempre ia pra cama antes de todos chegarem. Naquele dia, já quase dormindo, senti minhas narinas arderem e coçarem até que os mais finos vasinhos lá de dentro finalmente estouraram. O ar que entrava no apartamento era seco e poluído, típico do verão em uma cidade grande. Primeiro veio o gosto de metal e depois o sangue, grosso, quente e rápido, descendo pela bochecha até meu travesseiro. Me sentei e a corrente mudou de sentido, escorrendo por entre meus dedos até o queixo. Tentei me limpar na fronha, esfregando a cara no travesseiro, mantendo-me afastada do lençol porque aquele era o único cujo elástico ainda era bom.

Com o nariz entre o indicador e o polegar, cabeça inclinada pra trás, me levantei correndo e cambaleei até o banheiro, no fim do corredor. Me debrucei sobre a pia e abri a torneira. Lavei primeiro as mãos e então o nariz. Enchi a boca de água gelada e cuspi líquido rosa. Sabia que ainda levaria um tempo até o sangue parar então encostei a porta, me sentei na tampa verde da privada, segurei um punhado de papel higiênico delicadamente contra as narinas.

Eu podia ouvir o barulho abafado que vinha da sala. Os sons pareciam de festa: música, gente falando animadamente. Mas eu sabia que era algo menos excitante, mais perturbador. Um grupo de oração. Uns vinte fiéis, sem faixa etária definida, jovens e velhos misturados, iam toda semana à minha casa pedir saúde, dinheiro, sucesso, forças, mais dinheiro, e o que quer que fosse a vontade de Deus.

Enquanto esperava o estancamento, encarei meu anjo na parede. Tinha reparado nele há algumas semanas e já não conseguia mais desver sua silhueta desenhada nos veios verdes do azulejo jaspeado. Encontrei um, dois, três anjos voadores.

Uma vez tinha visto um gato também, mas esse acabei perdendo e agora não achava mais.

Estava assim bocó quando alguém empurrou a porta e foi entrando. Em momentos como esse o instinto deve ser berrar “ôu, ôu! Tem gente!”, mas nunca fui rápida o suficiente e a moça entrou. Digo moça porque lembro de ter pensado “bonita moça” na hora, embora soubesse que não era realmente uma moça, era meio velha. Naquela época eu não sabia precisar com certeza a idade de um adulto.

Ela não pediu desculpa por ter me interrompido, só parou pra me olhar.

— Quer ajuda?

Fiz que não. Tinha tudo sob controle.

Assisti enquanto ela abria a torneira, ensaboava as duas mãos e enxaguava.

— Me apoiei na janela suja de vocês — explicou.

Fiz que sim com a cabeça pra mostrar que entendia. Minha mãe nunca limpou uma janela na vida.

— Quem limpava era meu pai.

— Sua mãe não limpa nada desde que ele morreu?

— Não limpa, não.

Agora quem abanou a cabeça foi ela. Um gesto de pena e desprezo ao mesmo tempo. Enxugou as mãos na toalha de rosto encardida e as enfiou nos bolsos da saia longa. Fechou a porta atrás de si e parou pra me olhar direito.

— Você parece só com ele, dela não tem nada.

Dei de ombros.

— Os dois são feios.

Isso a fez se dobrar de rir. Encostou na porta fechada para manter o equilíbrio, continuou rindo por alguns segundos até que lágrimas escorressem dos olhos que ela apertava com força. Seu sorriso arreganhou-se em uma careta.

Fiquei olhando o rosto vermelho da moça, que agora soluçava. Reparei no seu cabelo partido ao meio, nas sobrancelhas escuras. Ela usava uma camisa rosinha, de botões, e a peça tinha corte modesto como era costume na congregação, mas o tecido fino deixava que a gente visse a silhueta branca do sutiã por baixo…

Sem pensar, estendi o papel do meu nariz, que ela aceitou e levou imediatamente ao rosto.

— Ele sempre disse que você era uma figura… — murmurou enquanto dava batidinhas na cara com meu papel sangrento. Por fim, assoou o próprio nariz e me devolveu todo embolado. — Ele te amava demais, sabia?

Joguei o bolinho nojento no lixo. Sangue, catarro, lágrimas. Todas as coisas sujas ficam no banheiro.

— Minha mãe quer morrer também — contei.

— Ela te disse isso?

— Não, mas eu ouvi.

— Criança não devia ter que ouvir essas coisas.

Dei de ombros.

Ela me olhou desnorteada por mais um momento, decidindo. Então puxou um quadradinho do bolso e me entregou. Uma bíblia. Na verdade, uma biblinha, daquelas em miniatura, que quase não se consegue ler sem lupa.

— Era dele, mas pode ficar. Não aguento mais olhar pra ela.

Não me ocorreu perguntar como essa irmã tinha conseguido uma biblinha do meu pai e porque andava com ela no bolso, assim como não pensei em perguntar o motivo do choro de antes. Revirei a biblinha nas mãos, folheei e em um segundo todas as escrituras passaram por meus olhos, de Gênesis a Apocalipse. Na última página, finíssima, meu pai havia deixado um apócrifo: “Para meu amor, F” e desenhado um coração.

Jacqueline Araujo nasceu em Jacareí, São Paulo, em junho de 1997. Formada em jornalismo, publica textos e ilustrações na internet desde a adolescência. Seu plano é ir escrevendo até um dia finalmente acreditar que sua opinião importa tanto quanto a dos outros.
Medium:
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Instagram: @bigjumpsart

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