revista toró
toroeditorial
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3 min readJul 28, 2020

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A gente quase nunca para pra falar disso, mas eu gosto de pensar que os lugares têm espíritos. Esses espíritos, na maioria das vezes, são pessoas que contribuíram de alguma maneira pra formação da identidade dos espaços. E, ao contrário do que o senso comum imagina, não são pessoas extraordinárias. São algo muito maior e mais importante que isso. São pessoas comuns. Pessoas tão irremediavelmente comuns que dão bom dia a todos os que passam, tomam café com bolo na hora do intervalo e sentam pra conversar entre uma e outra página de leitura. Escondidas embaixo da escada ou bem ali no cantinho do corredor, fazem isso por tantos anos que ninguém percebe que nesses lugares está se instalando um espírito guardador.

Carvalho é um desses espíritos.

Da mesma maneira que o contrarregra faz ao teatro, que o vendedor de tintas faz ao quadro e que o vendedor de lanches faz à calçada, Carvalho sempre tornou possível que cada dia na faculdade de letras existisse. Todas as manhãs, o guardador de textos era sempre o primeiro a trazê-los. Sem ele, muitos não teriam acesso a Augusto dos Anjos, a Clarice Lispector e a Lima Barreto, tampouco beberiam doses perigosíssimas de Benjamin, Nietzsche e Derrida. Com livros a 14 reais, mas “pra você, com um desconto especial, sai por 10”, Carvalho garantiu que muita gente pudesse avançar pelos períodos com um texto pra ler no ônibus, no metrô, no sofá de casa ou lá no final do corredor.

Por isso, digo sem qualquer vestígio de hesitação que, se uma faculdade de letras é, em algum universo, a casa da palavra, então o livreiro é seu maior zelador. E o zelador, como bem se sabe por aí, é aquele que cuida com amor. Aquele que, de manhã bem cedinho, abre as portas do armário e tira, um por um, esses objetos tímidos que parecem não ter o menor valor. Muitos são velhos, empoeirados, as páginas amarelas e amassadas. Mas todos eles têm aquele cheirinho gostoso que tanto combina com um dedo de prosa e uma xícara de café. O guardador então os empilha como quem empilha tijolos. E o faz porque sabe que são tijolos. Sozinhos, não servem de nada. Juntos, formam as paredes de cada sala, de cada auditório e, sem dúvida nenhuma, de cada coração.

Eu digo isso tudo porque desde que recebi a notícia hoje, enquanto voltava do mercado, minha namorada era toda uma interjeição. Daí eu pergunto o que houve e ela diz que eu não vou querer saber. Eu digo isso tudo porque minhas mãos começaram a tremer no volante quando entendi que 90km/h não te levam a lugar algum. Eu digo isso tudo porque a boca seca fez os olhos de uma hora pra outra virarem terra molhada. Eu digo isso tudo porque desde que aquelas mãos escuras e calejadas tocaram-me os dedos pela primeira vez, ou desde que, com o indicador, ele ajeitou os óculos frouxos e me estendeu o último livro dizendo que eu não tinha que pagar porque era um presente. Eu digo isso tudo porque desde que ele armou a lojinha e se sentou na cadeira preta de escritório bem de frente para o corredor, o guardador de livros plantou uma semente. E essa semente desabrochou em raiz. E essa raiz se estendeu como um caule. E esse caule se abriu em galho, em folha, em flor. E, aos poucos, foi mostrando, para quem quisesse ver, que o espírito da faculdade de letras é, afinal de contas, um imenso pé de Carvalho.

Que seguirá plantado dentro de cada um de nós.

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