“Da janela do meu quarto”, um poema em três partes de Camila Nobiling

revista toró
toroeditorial
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4 min readMay 12, 2021

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I.

Da janela do meu quarto
vejo luzes
vejo sombras
palavras correndo pensamentos
afundo a cabeça no
travesseiro não movo
o corpo para aquietá-las
concebo um sorriso e
mergulho no sono
certa que na manhã seguinte
estarão apagadas.

Da janela do meu quarto
consumo a raiva
que me consome
ouvindo profanações
que não proferi
solto a mente
presa dia adentro
enquanto escrevo à lua
palavras incertas
que já esqueci.

Da janela do meu quarto
vejo cores vejo noite
o grito do açoite
o berro da foice
luz que não atravessa
a nuvem
que encobre
a minha visão.

Da janela do meu quarto
vejo o velho de olhar torto
com o cão no colo à espera
do osso para ser
mordido lambido enterrado
como os sonhos
nos cantos escuros das
nuvens pesadas de dragões.

Da janela do meu quarto
vejo a janela do quarto do vizinho
que não vejo direito
longe das imagens
que carrego do sufocamento
do aprisionamento voluntário
que me afasta do corpo
próximo ao véu de luto
que se debruçou sobre todos
os quartos.

Da janela do meu quarto
vejo a manhã
vejo a água
vejo o lago
cheio de peixes cheios de vida
contornando a luz do sol
no confronto com a superfície fria do fluido
líquido
todos parados na profundidade gelada
que os aprisiona.

Da janela do meu quarto
vejo o batente batendo
no cotovelo da mente e
adentrando o fora que ficou
do outro lado da parede.

II.

Da janela do meu quarto
ouço barulhos aquietados
no ruído dos filmes gravados na
pupila dos olhos.
A TV da outra parede fala.

Da janela do meu quarto escuto o menino
que sussurra palavras através
das paredes de pedra
trancafiado atrás da porta rosada
com o ouvido colado
na madeira dura.

Da janela do meu quarto
observo o bater de asas desesperado
do passarinho com o bico
colado no vidro fechado
desprendendo um piado em canção
que compreendo de asas fechadas.

Da janela do meu quarto
vejo as folhas
tremerem de medo da rajada súbita
da frieza do breu.

Da janela do meu quarto
se enche seminua
a cratera exposta a
buracos da noite
escondida entre cúmulus de sofreguidão
embalando o velho de nariz talhado olhar tarado cachimbo parco
com o seu cão.

Da janela do meu quarto
vejo a lua cheia de mim
no vazio de olhos
cheios de luz.

Da janela do meu quarto
vejo o pato farto do pão
e da pequenez do lago
que o abriga.
Ele voa.

Da janela do meu quarto
vejo a luz trançada nas folhas trancadas
no verde agora negro
como o céu da noite
cheia de lua.

III.

Da janela do meu quarto
penso em ti e em todos os outros
em ti e em tudo
em ti e em nenhum
penso em te tirar de todos os tudos
que considerei demais.

Da janela do meu quarto
seguro a xícara de café
pela alça da caneca e
bebendo em goles longos
sorvo o líquido até que
a língua queime
e pare de contar palavra.

Da janela do meu quarto
sou vista pela surpresa vizinha
que abre as cortinas
de sua janela deparando-se
com a crueza
da vida alheia.

Da janela do meu quarto
escuto a vontade do medo de sair
do quarto e descobrir
que a vida que ficou
lá fora já deixou de ser.

Da janela do meu quarto
deixo o mundo entrar
para dentro daquilo
que vinha esquecendo
todos os dias
dentro dele.

Da janela do meu quarto
ouço o cão que ladra
o gato que mia
o pássaro que pia
o peixe que borbulha
e descubro
que sei escutar.

Da janela do meu quarto
choro pelos números que aumentam
pela vida que não sustenta
pela dor que não aguenta
explodindo em cacos que correm pelas veias.

Da janela do meu quarto
vejo a nuvem desmanchada
na superfície do lago formando
círculos que giram
enquanto abraçam
gotas que
os engolem.

Da janela do meu quarto
vejo últimas folhas presas
aos galhos das árvores
se desprendendo
do outono que se foi
do inverno que já passou
da primavera que logo acaba
tocam o lago
adornam a água e
não sabem de nada.

Da janela do meu quarto
escuto o canto constante
do pássaro chamando
a estação em curso
enquanto me tranco
no meu.

Da janela do meu quarto
espelha-se o lago no céu
inclinado sobre
o fio de vida
que brota no colo
do chão.

Da janela do meu quarto
sou janela para o quarto
da janela do outro
que não vejo
não percebo
mas enxergo.

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