Diva (2020) de Juliana Notari, Usina das Artes, Água Preta — Pernambuco/BR

Esculpir o pensamento, por Yago Toscano

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7 min readJan 13, 2021

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A todas as cabeças moldadas pelo seu tempo

Diante de uma crítica pouco comprometida com seu tempo e seus artistas, e de tantos comentários abrasivos — palavra esta que acredito ser pertinente ao vocabulário de ações formais que incorporam “Diva” (2020), trabalho que ilustra o momento atual da produção de Juliana Notari — , me atrevi a enviar uma mensagem para a autora, artista a quem este texto se destina, perguntando-a se seu parto teria sido normal. Apesar de incomum, tal dúvida se deve ao fato do que me surgiu à cabeça quando pensei em escrever sobre o seu trabalho. Há algo de especial a ser observado na moldagem das cabeças pelo parto normal e, ao que sucede sua chegada ao mundo, a presença de uma abertura vulnerável que, na medida em que se torna mais resistente, torna-se também mais exposta.

Ilustração do crânio de um récem-nascido. Fontanela frontal e posterior, respectivamente.

Há, a meu ver, um labor escultórico no momento do parto normal, nesse complexo procedimento de exteriorizar vida de um interior vivo, côncavo e pulsante. As fontanelas frontal e posterior, popularmente conhecidas como “moleiras”, são o ponto de encontro entre três suturas que compõem o crânio de um recém-nascido: a coronal, a lambdoide e a sagital. Suas formações losangulares — da frontal maior em relação à posterior — permitem que os ossos se desloquem durante o parto, reduzindo o volume do crânio. Esse processo é chamado de moldação.

Nesse ambiente imagético de beleza poética e, sobretudo metafórica, inerente à natureza das coisas, observar ou apenas imaginar um crânio moldando-se a partir do formato do que o invoca ao mundo, é descobrir a diversidade geográfica de um outro lugar tal qual o anterior, nomeado como abertura, cavidade, fenda, sutura, às vezes ferida, mas sempre vagina. Essa semelhança me faz pensar que dentre todos os potenciais formais, poéticos e sociopolíticos de “Diva”, há um que se destaca essencialmente: o potencial que uma vagina tem de esculpir pensamento, sobretudo crítico.

O trabalho landart realizado na Usina de Arte em Água Preta (PE), com extensão de 33 metros de comprimento, precede de uma série de gestos que acompanham a construção da obra da artista desde 2003, quando a obra “Diva” fez sua primeira aparição, sendo performática, mas sem negar seu potencial escultórico. De todas as suas ações, gestos como cortar, escavar, fissurar, abrir, romper e etc, emanam grande parte do vocabulário formal de Notari, que na medida em que expõe suas próprias feridas, nos fere igualmente o olhar com abrupta força. Força comum a essa que “Diva” desvela, em todo o seu potencial aberto ao mundo, e, diante das implicações à margem da diplomacia de um espectro ideológico obsoleto, dá a ver a atual miséria de um olhar que, na medida em que se compromete com o contemporâneo, atesta a incredulidade do seu tempo, e respectivamente, de suas questões.

Grande parte da crítica, pouco especializada, parece surgir do incômodo que esta inquietante e inerte estranheza particular ao trabalho proporciona, quando diálogos reinterpretativos operam diante da frontalidade de muitos enredos, os quais Diva confronta. Dentre eles, uma dimensão de pensamento crítico e de sentidos que possibilitam reformular a historicidade normativa, patriarcal, extrativista e machista que parecem perpetuar ainda nestas terras do Brasil. Terras essas, como no caso de Pernambuco, marcadas pelos grandes cacetes de Brennand que parecem não incomodar, com tanta comoção, ninguém e nem fazem questionar que suas glandes espinhosas pouco remetem ao mimetismo da cabeça de um pau.

“Diva” transgride, nessa perspectiva estético-política, a centralidade colonialista, dominadora e escravagista presente linearmente na história daquelas terras e ainda bem amparadas pelos domínios privados na contemporaneidade. Tem como estratégia poética a busca por uma profundidade que escarna a planificação como dimensão de uma política delimitadora. Produz, assim, descentralizações que possibilitam reprogramar geopoliticamente outros centros, outras presenças, outras realidades que não aquelas que ainda expressam toda a sua violência.

De mesmo modo, fere paradoxalmente a combalida opinião pública, que, por um lado, parece insatisfeita com a falta de comprometimento mimético da ‘coisa’ e que, por outro lado, já não compreende a ação como algo, mas como lugar. Diva é mais que uma ação, mas um lugar para se inventar — no sentido irrefutavelmente arqueológico da palavra — , uma ontogênese ambiental da forma que, sendo vagina ou ferida, se desloca da tarefa primeira do fazer escultórico para além de produzir objetos ou ações para o espaço, mas sendo em si um ato do lugar.

de um internauta na postagem original de divulgação do trabalho.

Comentários como esses demarcam a sútil passagem entre coisa e lugar, na qual a dialética do substrato, em que o vazio dessa carne a qual escava a artista parece surgir de uma irremediável presença, de ser coberta ou preenchida: quando não pelo clitóris que falta ou pelos pixels da censura, mas pelo ‘banho’ de sémen do suposto encontro ao seu redor. Imagens como a de Diva, da profundidade e da interioridade, se encarregam de externalizar inquietações ontológicas: desejos, perversidades, obsessões e feridas, pois, na medida em que se voltam para dentro, descobrimos a nós mesmos num ato antropófago de nos consumir enquanto também somos consumidos pela imagem, processo no qual sua afasia é irrefutavelmente exterior.

A contra-ação do punhetaço, em resposta ao trabalho, como bem contextualizado pela pesquisadora de arte Ingrid Lemos, incorpora mais uma camada de violência, evidenciando outras nuances que corroboram com leituras que “elogiam”, inclusive, práticas como a da cultura do estupro. Esse motim, mesmo que simbólico, segundo a pesquisadora, reverbera as condições que antecedem qualquer efeito do trabalho: não só sob a ótica das violências universais e suas muitas formas de crueldade, mas também dentro da perspectiva da história da arte.

Foto de divulgação do trabalho Diva (2020) censurado no jornal Britânico Daily Mail.

Esse lugar ferido, o qual desvela a obra de Juliana Notari, desencadeia uma série de discussões acerca das violências históricas, que ainda hoje persistem, como no caso do aumento de 7,2% nos de casos de feminicídio, desde o início do atual governo genocida; ou como no caso da exploração de trabalho, das desigualdades raciais e do racismo estrutural, que compõem grande parte do debate de importante valor em torno da ação, para a qual a mão de obra utilizada foi, majoritariamente, de homens negros.

Parece que, na medida em que a produção cultural, em todos os seus âmbitos — sobretudo os artísticos — parece progredir contra violências à margem das pautas sociais e de classe, os demarcadores do bom-gosto, da utilidade e funcionalidade das coisas contagiam combativamente a progressão de políticas sociais que deveriam ser observadas como aliadas e não o contrário, ainda mais dentro da própria “classe” artística. Isso se deve ao fato de que as apressadas leituras dos registros fotográficos engendram fronteiras entre arte e não-arte, entre o irrepresentável e o obsceno, entre o certo e o errado, o útil e o inútil, revelando muito mais do que uma falta de reconhecimento no que se vê, mas a síntese de um Brasil que não se reconhece perante os seus problemas sociais e políticos. A verdadeira ferida é na cosmogênese de todas as cabeças, cujo pensamento se tornou vulnerável e enfraquecido pelo seu tempo.

Não há dever, compromisso ou pacto figurativo com a arte, de forma a obedecer ao que se espera (e por que se espera?) do que pode ser entendido como uma vagina. Nesse sentido, todas as ações escultóricas de Notari, que antecederam ao landart, propiciam uma armadilha que renuncia a previsibilidade das formas, na mesma medida em que implode expectativas usuais não pactuadas na produção de arte contemporânea. Ter “Diva” atributos visuais de uma vagina, e ter essa leitura reforçada, expõe o território de referencialidade fraco, não apenas da opinião pública, mas também de uma mídia conservadora e culturalmente defasada.

Não tive a resposta de Juliana em tempo hábil da escrita desse texto, mas não importa para mais e nem para menos saber se, de fato, a artista nasceu de parto normal, pois a arte possibilita — dentre tantas outras coisas — moldar, forjar, inventar histórias, outras possibilidades de vida e de figurar o futuro. Imagino que, como o recém-nascido, o artista é destinado a ter suas moleiras sempre abertas; estar sempre vulnerável ao seu tempo e também aos seus cúmplices e avessos. Mas não se pode deixar de dizer que essa abertura às muitas vaginações, que promovem o trabalho, também são aberturas de impacto, muitas vezes irremediáveis, que sempre manterão sangrando a ferida aberta, quando não em Diva, no coração desse país, na cabeça dessa gente.

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