“essa é uma história de paixão
e febre”, a poesia de Edmon Neto

revista toró
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era sempre sobre o espetáculo

contar como naquele sábado
as ruas da praça estariam
cheias das gentes, e nós desceríamos
para nos pegar em uma construção
da rua nova. os policiais ririam
para mim quando fôssemos surpreendidos
– já seria a cumplicidade que aprendemos
desde cedo com nossos pais homens –
enquanto você seria levada para casa
no banco traseiro da viatura.
era sempre sobre eu
subindo a rua ouvindo os berros
da pequena vitória de ter sido
transformado em homem
e na semana seguinte a secretária
da escola viria me perguntar
se você estava nua mesmo
quando eles chegaram. e mesmo
que eu tivesse me assustado com aquela
pergunta, ela era a minha forma mais covarde
de autoproteção. eu nunca mais falei
com você sobre nada. nossa história é
esse fosso cavado entre os tijolos,
porque era sempre sobre eu
nunca ter pensado no pânico
que você sentiu quando sentou
naquele banco. levada embora
por dois homens policiais e entregue
humilhada ao ordenamento da casa.
talvez o seu pai tenha chorado.
talvez a sua mãe tenha feito a coisa certa.
você com certeza chorou por motivos
muito mais justos. eu não vi, bárbara,
o seu desespero de voltar à escola
nem a reação de seus colegas de turma.
não senti as suas amigas se afastarem
nem as mães lhe proibirem de frequentar
as suas casas. não pensei em nenhum momento em você
aguentando calada o dono do restaurante
lhe assediando, propondo que vocês um dia saíssem,
enquanto a sua esposa percebesse o ocorrido
e lhe desse um tapa na cara no banheiro.
principalmente eu não frequentei
a sua dor, não fui simpático com seus fantasmas
cotidianos, não convivi com as suas vozes
sabotadoras e moralistas, nem com aquelas
que nunca aprenderão a falar a palavra
necessária. eu entenderia se soubesse que você
se sentiu vingada quando ficou sabendo.

interpretar é opção

tentadora dos adolescentes sem um puto
no bolso, vindos do interior, que jamais
aceitariam belchior imediatamente.
há situações em que podemos
ser convincentes se se levar
em conta o grau da macheza
operante. atores treinados
pelas casas de arte
podiam
até outro dia
levar uma vida inteira
sem serem descobertos,
caso contrário seriam
privados das benesses
dos protagonistas globais –
todos devidamente entregues
à feição eunuca
dos beijos sem língua.
as casas de interpretação garantem
louros aos incautos. o teatro pode
ser a vida de todo mundo
desde que não se saiba o que é
fazer teatro, enquanto guris sonham
misericordiosamente
poder vestirem
a pele ocasional
que não lhes cabe.
essa é uma história de paixão
e febre. sobre as costas os incensos
de domingos de ramos. no corpo
a última restilha de história
construída no âmbito
das ditas fraquezas.
eu poderia não ter costurado
a sua gola da commedia dell’arte,
nem ter ido cedo para a coxia.
eu teria ficado insone e sentado
na última carteira no dia seguinte.
ainda bem que me lembro
de que era uma peça
infantil. e de que você não podia
se lembrar nem da voz, nem
da fotografia, nem ouvir falar
da existência dele, que você
partia — e agora estou aos beijos
com sua amiga no muzik — e a parte
em que o persigo pelo orkut
não se conta.

carta inútil para anderson

juiz de fora, 26 de novembro de 2021
eu sei falar com fantasmas
às vezes. nem sempre eles estão
inteligíveis e com isso luto,
porque sei que nem sempre estou
suficientemente disposto
a escutá-los. eu não saberia
me reportar a você.
fico interessado em saber como seria
a sua narrativa póstuma, ou também,
a sua póstuma narrativa, conhecida
a sua verve tão alegre e inventiva.
claro que hoje você teria que se explicar
muito, e talvez isso o importunasse.
mas sua retórica já havia perdido
espaço e eu soube muito bem surfar
na sua praia. no momento que fui
embora, irresponsavelmente como muitas
vezes, a isso algumas pessoas chamariam
anjo da guarda; eu, sorte de principiante.

Edmon Neto é professor de literatura na Universidade Federal do Pará (UFPA), músico no projeto Los românticos experience e poeta, autor do livro O desportista na cama (Urutau, 2022). Os poemas aqui selecionados fazem parte da plaquete Liturgia, ainda em preparação.

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