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“Minha língua é um ponteiro que lambe o tempo”, a poesia de Roberto Andreoni

revista toró
toroeditorial
3 min readNov 6, 2020

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pânico: o relógio em crise

às vezes pressagio algo próximo.
na calçada de lá, os transeuntes perambulam
em passos tóxicos.
confiro no pulso o relógio,
mas o tempo não corresponde e uma falha cisma meu instante;
uma rachadura profunda — na pele da consciência –
personifica-se em sombra e convida-me ao vil degredo.
viro o rosto, dissimulo,
mas é o cão e seu olhar pede passagem.
ele não é cálido, é antes frio; e seu olhar um horror álgido.
freme-me as entranhas e faz do coração dodecafônico.
o pensamento enleia-se em vertigem e decomponho-me
como o rio que leva de si as próprias margens.
não mais eu nem mais o mundo; somente o suor, o gelo
e o absurdo.

encanto performático

quando chegou, mal notei, mas sua essência era magnífica
e, humilde, alimentava-se dos resíduos triturados, pó da minha consciência.

do descaso, duro grão, macerava ávido e sôfrego o que podia
com seu bico subtraído do chão.

até que um dia senti um cisco n´algum canto encanto de mim.
era um olho de pardalzin. bico aberto, corpo sem penas, luz e tristeza.

passei a dar-lhe esporádicas migalhas que distraídas caíam
do cheiro do pó de café, do tabaco perfumado, dos raios das luzes matinais,
do beijo da namorada, do banho quente no inverno.

suas penas começaram a crescer aceleradas, e elas eram espelhos
através dos quais eu via lindas fotos coloridas:
todas as vezes que caía e minha mãe me levantava;
– pegava-me no colo e lançava-me feito ave.

eu mergulhei nas nuvens e bebi os sonhos das chuvas
e, em meio aos raios e trovões, senti o poder das alturas.

eu voava junto à fênix, nossos olhos feito brasas,
e juntos éramos o fogo consumindo o mundo todo.

devir em mundo literário

escrevo em ares novos,
mas também em lembranças,
como se revivesse
o primeiro contato
com um livro fantástico.

foi na rua do ouvidor,
em meio a um simulacro
de corpo machadiano,
que maravilhei-me
em profunda bruxaria.

ali, em meio a tantos corpos
coloridos e vexados
– próximo à colombo –,
reconheci as minhas
pernas como canetas,
a traçar espontâneas
palavras nas ruas
que eram vivas páginas;

e a cada passo louco
dos meus pés psicológicos
tintas negras e oníricas
jorravam em signos
nos prédios e nas paredes
das travessas cariocas.

caos de folhas em rostos
ventos, levantamentos,
espirais, coletâneas
e bibliografias diversas.

celulares destinavam
micro-contos e poemas
incertos percorriam
ponto a ponto ocultas
linhas codificadas.

numa bancada reles
rente ao muro, em pernas
de exclamação, um homem
papel de anotação
lançava vocábulos
que eram doces à venda.

guloseimas, amendoins
açucarados — topei
com ele e um verso seu
colou em minha estrofe.

foi assim que me descobri
caligrafia espelhada
de mim e do livro mundo
conectado — miscelâneas
em tenaz construção;

era o real, reais, o grande
acervo, não mais estático,
inerte, destro instrumento,
mas gente em letras vivas,
palavras, semânticas,
e eternos cruzamentos.

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