o êxtase na grafia de um suspiro”, a poesia de João Ricardo Dias

revista toró
toroeditorial
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4 min readDec 10, 2021

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[a peste]

imóvel
o tempo derrama sua língua de trevas
pelos bosques emudecidos

enquanto a alma fria do cemitério vagueia
murmurando sermões por entre velas e lágrimas brancas
um vento assustado canta a maldição tenebrosa dos calvários

os corcéis da meia-noite
expelem à humanidade
uma oração escura
⠀⠀⠀⠀⠀entorpecida de melancolia
⠀⠀⠀⠀⠀e desespero

as lágrimas púrpuras de deus clamam ao silêncio
de uma poesia pálida

mas da densidade das sombras
escorre um sangue póstumo e obscuro

abençoados
os arcanjos sorriem em deleite de ferro
e enxofre

cadáveres apodrecidos aglomeram-se nas ruínas
de um santuário
cultuando pedras em decomposição

um império marrom sorri só
soturno
no limbo, lúgubre, de um beijo

os lábios amarelados de um vulto escarram um esquálido colosso

[meus olhos interpenetrados pela respiração escura da noite]

meus olhos interpenetrados pela respiração escura da noite
cederam ao silêncio
na leitura de um livro estava o teu amor
dores e lágrimas
não saberei⠀⠀⠀ desculpe-me pelo incerto
talvez seja o tempo das palavras
talvez não
a razão
a angústia⠀⠀⠀ o encanto
as cores infinitas
A moldura de teu beijo
jaz deitada na sombra tranquila da madrugada
teu mundo de cicatrizes profundas
chega aos meus lábios como uma música ou como um animal
que se lança numa investida sobre a presa rasgando
comendo desossando
deixando sua saliva na raiz da carne
é inútil o vagar da tarde sobre meu peito
se os anjos esculpem com nostalgia e fúria versos cinzas e desarmados
minha companhia?
minha companhia? são fragmentos que o coração não explica
um choro
um sorriso⠀⠀⠀ pedaços de silêncio
violência
incêndio
despedida
esperei o metal atravessar-me enquanto tomava um café mas
só cortou minha garganta os restos de sua língua rabiscados pelo tempo

[uma canção para os que se foram uma garoa que não cessa o ar é quase inverno]

uma canção para os que se foram uma garoa que não cessa o ar é quase inverno
o vento abraça a figueira
e desfaz-se em lágrimas cansadas
canções inaudíveis ressoam das pedras como escadas nos levam aos anjos
as brumas desmanchavam-se em luzes nórdicas e a carruagem — — tão pequena
por vezes
decidiu parar
o sentimento da alma que chega aos olhos como o orvalho chega à grama
na superfície do amanhecer

[os laços translúcidos e lascivos de seus gestos inefáveis como uma recordação áspera]

os laços translúcidos e lascivos de seus gestos inefáveis como uma recordação áspera
des pe da ça da
feito vozes enterradas
alguns cantam e os que os vêm veniais veneram venetas e
suspendem cintilantes ramos
de sussurros
em gestos ginásticos que jamais justificam o que os lábios esses alabastros celestiais
solitários em seus corpos urram
e assim sem sonatas ou acordes sonetos ou versos viscerais
um poema se forma de seus gestos
nada a avançar se não injetar nos pulmões delicados uma nova paisagem
enquanto a timidez da palavra não ultrapassar os limites do corpo
os símbolos e uma infelicidade
surpreendidos pela cegueira
jorrar do coração um líquido que dá forma
nada será mais frio
sem ritmo do que uma textura condensada em palavras e numerais
umverdadeiroconglomeradodesubstânciasestendidas
em versos tremidos na garganta numa desordem de rimas
cantei para a lua uma canção de amor dessas de músicas pura
porém nem uma resposta obtive nem de tristeza
ainda assim algo ocorreu nessa noite inquieta
enquanto dormia em um canto escuro de meu quarto ela me tocou
permaneci calado seu toque entretanto em minha pele
um paradoxo lentamente
eram cobertas de luz eram um texto acompanhado de um som que não dormia
essa desejada companhia
a cama a qual eu me deitava já não mais existia
era tudo noite e luz

[na respiração da alma flutua o sonho que retém um deus]

na respiração da alma flutua o sonho que retém um deus
um sopro repentino
a bênção pútrida do tempo⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ a palavra e seu lugar sagrado
um canto ocupará o destino
um arcanjo⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀um gênio⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ um menino
Gamaliel⠀⠀⠀⠀o rei ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀os querubins
uma chuva de sangue
o êxtase na grafia de um suspiro
um deus que morto se faz vivo

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Nascido em São Paulo, em 1981, João Ricardo Dias é poeta, romancista, diretor de vídeos e artista digital. Em poesia, publicou: Doce Silêncio (2014); Em uma noite escura saí sem ser notado (2018); e Na Raiz Seminal da Manhã (2019). Em 2021, lançou a obra Hóstia Negra, semifinalista do Prêmio ABERST.

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