O chão do supermercado é a ruína de uma senzala

revista toró
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2 min readNov 20, 2020

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É do meu túmulo que escrevo a dor do corpo partido.

Do peito dilacerado do meu avô, sinto a náusea que é o meu sangue em encontro infinito com o de muitos outros iguais a mim: esmagados contra um asfalto esculpido de sangue. Enquanto morria, eu via um quilombo, eu via parte de que fui outrora através do plasma da minha bisavó e sei que a luta moldou meu sorriso.

Até a morte. Até o tênue fio que me separava do instante de vida em um dia qualquer em um supermercado de senhoras respeitáveis, senti o peso de ser a maioria deslocada nesse país, eu senti o trilhão sutil que mastiga minha existência: a câmera, o segurança, a farda, o presidente. De ter o peso bruto da História em cada parte do meu corpo, dos braços, pescoço, mãos — e ter a voz trancafiada em mares que engolem a minha sede, sal que invade os meus olhos todos os dias, sem o filtro da tranquilidade da paz de espírito, essa mesma paz que te faz um cidadão de bem junto com os teus.

Do cárcere de um navio, cárcere de favelas, itinerários vazios de trabalhos mastigados, a fome, o cárcere perene de pretos e pretas. Jovens mortos em vielas, da cidade em falta de rumo como os porões torturados em favelas. Oh, virão, sim, cidadãos passar pano no meu sangue porque sujou o piso do mercado. A culpa talvez seja minha por estar no país errado, nesse tão vasto país de bondosos e cordeiros. Do alto da minha morte, declaro, tão-solenemente, que a culpa é minha, do meu avô, da minha avó, por lhes tolher a paisagem pura de uma quinta-feira qualquer, de um respeitável supermercado.

Em todos os meus ossos cabem as faces das diferentes negritudes, em tantas partes que nos dilaceram. O que flui da natureza e nos torna parte consagrada com o todo deve valer mais do que o preço na mídia e no mercado.

Mas eu sonhei que amanhecia
Amanheceu o dia
A casca que cobre o mundo
O corpo se desfaz à noite
Junto com nuvens e vozes
de um breu desconhecido
O silêncio de todas as estações
se desfazem
mãos em socos
Em traços sem vestígios
O corpo humano decanta
O princípio dos vivos, a morte
O ponteiro que sabe o rumo
O preciso ponto da paragem
Então quando amanhece?
Quando o sol estala a vida
Na ponta dos meus olhos
Ou quando em meus olhos
mergulham a mata do não-dito
A treva?
Bruma molhada de horror
Do próprio sumo da vida
Aquela porção diminuta e fugidia
O instante.

Paula Albuquerque é editora e curadora da Revista Toró.

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