“O meu senhor é agora senhora”, a poesia de Janaina Sales

revista toró
toroeditorial
3 min readApr 19, 2023

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Lanço a mão
no seu peito, futuro
Abro a cova, o leito,
o véu,
e furo
com faca
afiada
o osso duro

E roo
as pontas
de seus dedos
E finco
a lâmina
da língua
– Eva
violando
o falso
fruto

Rompo
fibra por fibra
as caixas
torácicas
de teus irmãos

medo e ânsia

O meu olhar
petrifica
seus modos
O meu sonhar
mitifica
seus rumos
O meu senhor
é agora
senhora

Para onde
pensava que ia,
futuro?
Quero antes
o beijo
amargo
que me deve

Se puder,
recomponha
as fotografias
reveladas
no fundo de
minhas retinas
Não apague
o rastro
torto de
sua trilha

Mude seus
planos


antevi
seus
passos
bêbados
no abismo

Não há
mais
surpresa
sobre
a face
esférica
do espelho

Futuro

Seria capaz de esperar dez anos
até que as coisas fossem encontradas
até que aquele livro de capa vermelha fosse
atravessado por um bonde
e a banana fizesse digestão no estômago
e a planta com vaso de fotografia fosse
estilhaçada na garagem
por um carro vindo do além.
Me disse que queria ter mais paladar
para poesia
mas tem paladar para outras frutas
por balanço de árvores
folhagens comuns
Esperaria dez mil horas até
a hora de abrir o livro
ensinar uma língua
treinar as línguas jovens no formato
de outra coisa
Seria capaz de distribuir brotos
chamar cada um de um nome
e espetar o dedo para doer
esperar a morte ali sentada, querida
vendo o vão de quinze centímetros
que a veneziana abriu entre meu
olho esquerdo e o
infinito

Perto da noite

No meu cavalo
céu
cavalgo na
crina
harmônica

No meu reino
invento
nosso tempo
que é pão e vinho
e pastagens

A minha fala
em sol
arada
te recebe
no musgo
E as árvores
cantam sua
canção antiga

Acendo seu olho
lamparina

a noite não tarda

Animal marinho

Era uma vez a suavidade do peixe
na língua do mar
O mar se descobre fêmea
lábios, corpo semovente
o pensamento era o
mesmo líquido
contrário-abismo

cabeça
tronco
cauda

O corpo de um peixe
é também a
cabeça
e a
cabeça
é também o
peixe

Não será possível saber
se foi colocado lá
ou se o mar
se deitou sobre ele

A primeira vez que eu vi um cavalo

Foi na parede da caverna onde eu morava
Foi uma vez que o meu avô desenhou um animal na palma da minha mão
Foi há alguns segundos quando vi um boi debaixo das árvores
e o imaginei
besta domada, pelo brilhante, reflexo do sol, pura beleza.
Mais macho e mais fêmea.

Não pude nunca deixar de vê-lo na lua, quando se pensa sobre sua nudez.
Durante a noite, não posso me desfazer de sua imagem.

Um cavalo está parado no meio da casa
e só existe um bico de luz aceso para ele.

Um cavalo se deita para dormir
ora a um deus centauro
que também não ouve.

Janaina Sales nasceu em Piedade-SP, em 1991. É doutoranda em Letras pela Unesp (Assis-SP) e professora do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas da UEL. Gosta de poesia desde antes de se entender por gente. Olho de boca é seu livro de estreia, publicado em 2022 pela Editora Patuá.

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