Imagem retirada do Behance de Vishnu M. Nair — @xishnu

Os quadrinhos vão acabar, seu Edgar?

revista toró
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5 min readJun 10, 2020

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Nos últimos dez anos, algumas pessoas dizem que as Histórias em Quadrinhos (HQs) têm perdido a sua relevância perante outras formas de entretenimento mais dinâmicas e de maior apelo estético, como os videogames (principalmente os mobiles), por exemplo. Se formos observar apenas o aspecto lúdico dessa forma de Arte, principalmente o hipergênero de Super Heróis, que tem uma contraparte no cinema, realmente podemos ver um certo declínio no número de vendas e no interesse da nova geração por esse tipo de histórias. Mas as HQs, como forma de expressão artística e narrativa, continuam sendo tão importantes (talvez mais) quanto no momento do seu surgimento como indústria.

Contar histórias através de imagens é uma característica humana, podendo ser observada nas pinturas do período neolítico, que é quando temos os primeiros registros de desenhos em paredes, numa possível tentativa de transmitir alguma mensagem. Segundo Scott McCloud, em seu livro Desvendando os Quadrinhos (1993), “de acordo com a história, as figuras antecedem em muito a palavra escrita.” Podemos observar isso não apenas nas pinturas rupestres, mas também em culturas como a egípcia e com os povos pré-colombianos, para citarmos apenas dois exemplos. Avançando um pouco mais no tempo, no período conhecido como Idade Média, e já com a escrita estabelecida, temos os afrescos pintados nos interiores de igrejas e os vitrais, localizados nas janelas. Esses recursos eram de extrema importância, pois como a grande maioria das pessoas não eram alfabetizadas, bem como elas precisavam conhecer os santos católicos e as passagens da Bíblia, as imagens auxiliavam nesse processo de evangelização.

Os quadrinhos como mídia de grandes massas surgem no final do século XIX, através das empresas jornalísticas estadunidenses, que buscavam ampliar o número de vendas dos seus jornais. Nas palavras da pesquisadora Beatriz Carvalho

É nesse contexto de criação, ou seja, inseridas como produto das empresas jornalísticas norte-americanas, e posteriormente vendidas em bancas em formato de revista –funcionando assim como uma forma alternativa e mais barata de entretenimento -, que se atribui à história em quadrinhos sua característica de comunicação de massa. (CARVALHO, 2018, p. 07)

Com o passar dos tempo, as HQs deixam de ser veiculadas como suplemento dentro dos jornais e passam a ser publicadas como revistas independentes, em bancas de jornal. Esse modelo estadunidense, impresso como parte do jornal e depois como material próprio, foi copiado em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, sendo importado para cá pelo jornalista Adolfo Aizen nos anos 1930. Nesse momento, as HQs vendiam, em várias partes do mundo, milhares de exemplares, sendo que algumas publicações chegavam à casa dos milhões. Eram consumidas não apenas por crianças (seu público-alvo primário), mas também por adolescentes e por adultos. Com isso, podemos dizer que os quadrinhos iniciam o que será chamado mais tarde, no século 20, de Cultura de Massas.

Segundo Edgar Morin, pode-se definir Cultura de Massa como:

as normas maciças de fabricação industrial; propagada pelas técnicas de difusão maciças […] destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, família, etc). (MORIN, 2011, p.25)

Conforme a tecnologia foi avançando, a Cultura de Massa expandiu e ultrapassou as suas barreiras e acaba por influenciar a imprensa, o cinema, o rádio e a literatura, cuja característica principal é a de se dirigir a todos (MORIN, 2011, p. 04). As Histórias em Quadrinhos contribuíram para moldar a cultura pop no século XX, pois influenciaram (e foram influenciadas por) outras formas de Arte, como o Cinema, a Música e as Artes Plásticas. Além disso, ajudaram a retratar alguns acontecimentos mundiais, narrando-os de forma direta ou indireta.

Entretanto, no final do século passado, os quadrinhos começaram a ter concorrência no quesito entretenimento. Com o avanço das tecnologias eletrônicas, computacional e da Internet, a maneira como consumimos entretenimento foi se alterando e passamos a ter acesso a elas em qualquer local que fossemos, não apenas dentro de casa. Vamos trabalhar com o cenário musical para compreendermos melhor essa ideia: até a metade dos anos 80, para apreciarmos música fora de casa, éramos obrigados a ter um aparelho chamado Walkman para tocar uma coisinha chamada Fita Cassete, na qual as músicas eram gravadas para que as ouvíssemos em qualquer lugar. Da mesma forma que o disco de vinil, essa fita tinha dois lados que poderiam ser utilizados para gravar música. E precisava de pilhas para funcionar. Muitas pilhas. Nos anos 1990, tivemos o surgimento do Discman, que levava um CD no lugar da fita e, mesmo que a qualidade de som tivesse melhorado, ainda era um objeto grande para ser transportado. Fora que tanto o CD era bem maior que a fita quanto esse aparelho consumia mais pilhas do que seu antecessor. Já no começo dos anos 2000, surgem os tocadores de MP3*: aparelhos leves, com bateria interna e com a vantagem de poder colocar uma quantidade gigantesca de música, sem necessidade de mídia física. O Ipod, um tocador da Apple, popularizou o aparelho e revolucionou o mercado de música (pelo menos nos EUA).

Outro exemplo que podemos citar são os videogames, que eram objetos que ficavam estáticos dentro das casas e que hoje cabem na palma da mão. Os quadrinhos, como forma de entretenimento, realmente competem com outras formas de diversão, mais dinâmicas e interativas, mas é um equívoco muito grande afirmar que as HQs perderam relevância e que vão sumir, mesmo os quadrinhos destinados ao universo de Super Heróis. Afirmar que eles vão desaparecer é o mesmo que dizer que a arte do Teatro sucumbiria perante o Cinema; que a Fotografia acabaria com a Pintura e por aí vai. As HQs são mais do que uma forma de ludicidade; essa é apenas uma de suas possíveis facetas. Como toda expressão artística, podemos trabalhar com os quadrinhos das mais variadas maneiras, desde o puro e simples escapismo; como ferramenta pedagógica ou, até mesmo, como um modo de gerar reflexões mais profundas sobre temas que permeiam a vida humana.

Os quadrinhos não vão acabar. Eles ainda serão lidos no meio impresso, em telas de tablets e de smartphones; servirão de inspiração para outras formas de Arte e serão influenciados por elas, mas nunca chegarão ao fim. Sempre que alguém se sentir tocado por uma HQ e isso inspirar essa pessoa a produzir a sua própria história, os quadrinhos terão um novo capítulo.

Referências

CARVALHO, Beatriz Sequeira de. O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos — SP. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação — Escola de Comunicação e Artes / Universidade de São Paulo.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: espírito do tempo I: neurose. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha. 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

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