Imagem retirada do behance de Seva “FINCH” Ziablov

Reunião para paliar o Carlos, um conto de Carlos Henri

revista toró
toroeditorial
4 min readOct 7, 2020

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-Boa tarde! Eu me chamo Amanda. Sou médica do Hospital das Clínicas. Estou ligando, pois gostaria de falar com o Carlos.

- Sou eu, doutora. Pode falar.

-Será que podemos fazer uma videochamada? Pra gente poder ver o rosto um do outro.

-Pode ser, doutora.

-Pode ser nesse número mesmo, Carlos?

-Pode sim.

-Muito bom, Carlos. Já te ligo, então.

-Carlos? Consegue me ver e ouvir? É a doutora Amanda. Eu que pedi pra fazer uma videochamada com você.

-Oi, doutora. Tô te vendo. Mas o áudio tá ruim.

-E se eu falar mais perto do celular assim, Carlos, fica melhor pra me ouvir?

-Fica sim, doutora. Agora tô ouvindo

-Queria falar sobre uma coisa importante. Queria conversar sobre a situação da Morte. Você é filho dela, certo?

-Sou, sim. A Morte é minha mãe. Aconteceu alguma coisa com ela? Meu deus, doutora, o que foi que aconteceu?

-Eu já te falo como ela tá, Carlos. Mas peço que fique calmo. Primeiro eu gostaria de saber um pouco mais sobre como é a Morte, fora do hospital. Queria saber dela no seu dia a dia. Queria que você contasse um pouco da história da Morte e sua relação com ela.

-Vou contar então, doutora. Nossa relação é complicada. Sei que ela se importa comigo e eu me importo com ela, mas, às vezes, a vida afasta as pessoas. Por muitos anos ficamos distantes. No entanto, há algum tempo a Morte ficou doente e precisei me mudar pra perto dela pra ajudar a cuidar. No começo da doença ela só tinha alguns esquecimentos. Esquecia de levar as almas pro além. Depois começou a ficar confusa. Ceifou vidas que não estavam no fim. Deixou outras viverem além do tempo. Foi parando de conseguir fazer as coisas sozinha. Não conseguia mais se vestir. Depois ficou ainda mais dependente. Precisando de ajuda pra andar, comer e tomar banho. Há alguns meses ficou totalmente acamada. Tem sido muito difícil cuidar da Morte.

-E o que você sabe sobre o estado atual da Morte, agora que ela tá internada no hospital? Como tem sido a conversa com os médicos?

-Eu sei que a situação dela é grave, doutora. Os médicos têm conversado muito comigo e eles me explicam tudinho. Me falaram que ela tá tomando antibiótico e tá precisando de oxigênio pra respirar.

-E como você se sente com tudo isso, Carlos?

-Me sinto muito triste, viu, doutora. Sei que ela já tá bem doente há algum tempo. Mas tá difícil ver ela assim tão mal. Tô sofrendo muito com essa internação.

-Eu nem imagino o quanto isso tá difícil pra você, Carlos. Infelizmente a situação é bem delicada mesmo. A Morte realmente tá muito grave. Como você mesmo contou, ela já tava bastante debilitada pela doença. Já tinha um organismo frágil. Em cima disso veio a Covid. Uma doença nova sobre a qual ainda conhecemos muito pouco e para a qual não temos cura. A Morte pegou uma doença grave em cima de um corpo já frágil e doente. Esses problemas se somam para tornar a situação dela bem ruim. E nós temos uma preocupação. Estamos preocupados em relação a como será a melhor forma de cuidar dela nos próximos dias.

-Entendi, doutora. Ela já tava fraquinha. E agora essa Covid, meu deus. É muita tristeza.

-Nós estamos acompanhando a Morte e sabemos que nessa fase da doença existe uma chance, que não podemos ignorar, de ela piorar muito. Por mais que nossa vontade seja devolver a morte pra você, Carlos, precisamos ser muito honestos. É possível que as coisas tomem um caminho ruim. E precisamos pensar no que faremos se as coisas seguirem por esse caminho.

-Se a Morte começar a piorar, teremos que pensar na melhor forma de cuidar dela, respeitando os limites do que o corpo dela é capaz de suportar. Alguns tratamentos da medicina podem até dar mais tempo de vida, mas seria num contexto de prolongar a dor e o sofrimento. Não consideremos que a Morte tenha benefício de ter sua vida sustentada por meio de máquinas, pois isso pode machucá-la muito e, nessa fase da doença, não trará mais benefício.

-Eu não sei o que dizer, doutora. Tenho medo do que pode acontecer, mas realmente, não quero que ela sofra.

-Nós também não queremos que a morte sofra, Carlos. Iremos fazer o máximo possível pra cuidar dela e devolvê-la pra você. Porém, se o pior acontecer, daremos todo o conforto pra que ela não sofra e tenha sua dignidade respeitada. Iremos tratar a dor. Iremos tratar a falta de ar.

-Eu agradeço muito a vocês por isso, doutora. É Amanda, né? Muito obrigado pela atenção. Estou com muito medo, mas, pelo menos, posso ser grato pelo fato de a Morte estar nas mãos de pessoas tão dedicadas e competentes.

-Para nós é uma honra cuidar da Morte, Carlos.

-Muito obrigado, doutora Amanda. A você e a toda equipe de Cuidados Paliativos. Obrigado por cuidar de nossas Mortes.

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