Sem olhar para trás?, um conto de Lizandra Silveira

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A história da humanidade é povoada de grandes roubos. Páris roubou Helena e a levou para Tróia. Prometeu roubou o fogo e o entregou aos homens. O fogo foi roubado em quase todas as mitologias… Já foi levado por Maui de Mahui-iki, e os Guaranis também o tiraram dos urubus. Jasão roubou o velocino de ouro… Por que haveria de apenas um roubo provocar tanto arrependimento?

Não tinha saída. Malu sempre se arrependia. De todos os roubos que ela já tinha feito em sua vida, de cada furto (e olha que foram muitos!), — uma vez que roubar era sua profissão —, por que se arrepender só desse? Ser chamada de ladra não a abatia, mas a memória daquele roubo pesava como um elefante em sua consciência.

Assim, ela havia decidido devolver o que havia roubado há tantos anos. Já tinha tanto tempo, que ela, às vezes, conseguia até esquecer. Quando algum projeto novo surgia; quando estudava novas estratégias, ela ficava tão focada, que nada mais importava. Talvez por isso tenha continuado naquele ramo. Nada no mundo proporcionava este tipo de emoção que ela sentia. A adrenalina, o coração batendo forte, a sensação de flow

Ela passou seus primeiros anos de profissão emendando um trabalho no outro, para não ter que pensar e nem olhar para trás. Apesar de seus esforços, ela sempre voltava ao peso no peito. Tecnicamente, ela não tinha exatamente roubado. Ela havia pegado emprestado. Sua intenção inicial era devolver. Porém, afeiçoou-se tanto aquilo que acabou preferindo sumir no mundo antes que lhe fosse pedido de volta.

Aos poucos, ela começou a perceber que, por causa desse “empréstimo” forçado, a sua vida tinha sido uma grande farsa, em que tudo se resumia àquele divisor de águas que a levara para o mundo do crime. Não seria ela já uma criminosa por tomar como seu aquilo que não lhe pertencia?

Após tantos anos, ela sentia que deveria retornar. Tinha que encontrar uma forma de devolver. E devolver significava voltar. Ela fugia desses pensamentos há semanas. Tentava se ocupar com alguma outra coisa. Escapar das lembranças como sempre fizera. Teria sua existência desde então sido apenas uma fuga?

Para devolver ela teria que voltar ao ponto de partida. Ao lugar onde tudo começou. Aquele lugar onde ela havia crescido. Teria que voltar para casa. As lembranças de lá ainda a aterrorizavam. As imagens daquele dia estavam vívidas em sua mente. Elas andavam pelo jardim, que também era um quintal. Um imenso jardim, em que corriam brincando de pique esconde. Só as duas.

Começava a escurecer, sua irmã queria ir embora; queria que ela saísse de seu esconderijo e subissem juntas de volta. A irmã gritava seu nome, mas ela não respondia. Malu achava que o medo da irmã era uma grande bobagem. Já estavam crescidas, não havia razão para não continuarem a brincadeira.

A irmã que era sempre tão corajosa e esperta estava com medo do quê? Foi aí que ela ouviu o grito. Um berro longo e apavorado, que ficava cada vez mais distante. Era muito assustador para ser apenas uma brincadeira. Decidiu sair de seu esconderijo e voltou correndo. Quando chegou ao local do grito, a irmã esperava por ela, ao lado do poço, com um sorriso no rosto. Ela tinha sido enganada. A irmã vencera novamente.

Em meio à sua fúria, correu na direção da irmã e a empurrou. Não queria que ela caísse. Queria apenas causar algum pequeno dano na irmã tão esperta. Mas ela desequilibrou e caiu dentro do poço. Malu não conseguiu segurá-la.

No dia do velório, seu coração pesava com tudo que aconteceu. Foi então que Malu fugiu. Pegou emprestado o nome da irmã gêmea, Malu, e decidiu que viveria a vida por ela, lhe daria a vida que lhe foi tirada. Roubou sua identidade e decidiu que seria esperta como ela. Achava que assim a irmã poderia perdoá-la e, quem sabe, ela perdoaria a si mesma. Mas nada disso foi capaz de diminuir seu pesar. Seu peito ainda doía quando pensava na irmã. E, agora, em frente à sua lápide, não sabia mais como devolver o que havia pegado emprestado.

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Lizandra é apaixonada por boas histórias, sejam elas contadas em uma roda de conversa, sejam escritas em um livro. Escreve desde criança, mas só agora decidiu voltar a se enveredar no mundo das palavras. É louca por livros e suas leituras prediletas incluem obras de ficção, fantasia, ficção científica, romances históricos, contos de fadas e mitologias. Já teve dois artigos publicados na Revista Aberta de Mitologia e participou da antologia Casa Nua publicada em ebook pelo Coletivo Escreviventes.

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