Shirkers: cicatrização em forma de memórias e cinema, de Eduardo Cabanas

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4 min readMay 18, 2020

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Grandes prêmios e investimentos na carreira de um filme têm o peso de imortalizá-los na história, assim como a ausência deles pode jogar no esquecimento até as melhores obras-primas. Claro que lembramos de Moonlight ou La La Land, as grandes estrelas do Oscar em 2017, vencedores de Melhor Filme e Melhor Diretor, respectivamente. Em compensação, o fascinante A Qualquer Custo já não teve tanta sorte, hoje se limitando à admiração entre cinéfilos e talvez pessoas da classe, apesar de ter estado presente na mesma cerimônia com 4 indicações.

O fato é que por uma mistura complexa de baixo orçamento, poucos prêmios, nacionalidade e azar, muitas pequenas pérolas do cinema independente se perdem no mar de lançamentos das salas comerciais e nos extensos acervos mal explorados dos serviços de streaming. Esse é o caso de Shirkers — O Filme Roubado, lançado na Meca do cinema indie, o Sundance Film Festival, que acontece anualmente em Park City, nos Estados Unidos.

Na edição 2018, mesmo ano em que Pantera Negra, Bohemian Rhapsody e Green Book dominaram as manchetes de cultura, essa pequena joia quase anônima saía de Sundance com o Prêmio de Melhor Direção de Documentário Estrangeiro. O contexto em si é simples: uma estudante de audiovisual de Singapura se junta com duas colegas e o professor delas para fazer um road-movie pelo país, até que ele some com todo o material de gravação. Dezenove anos depois, após a morte do ladrão, a sua viúva devolve as películas originais para a estudante, agora crítica de cinema e realizadora.

Shirkers, nome do filme perdido e desse documentário que o investiga, é tanto uma produção cinematográfica quanto uma terapia coletiva. Sandi Tan, criadora de ambos, desenvolve quase que uma experimentação em torno de si mesma, suas parceiras e colaboradores, tentando analisar as relações afetivas entre o filme e todos os envolvidos, especialmente seu professor e mentor, um sujeito chamado Georges Cardona, que acaba por roubar as filmagens para si. Dessa maneira, ela abraça uma narrativa extremamente pessoal, dando-se liberdades para quebrar o formato de cabeças falantes ao inserir sua própria voz de entrevistadora e, assim, extrair reações espontâneas durante os depoimentos. O que num projeto mais tradicional poderia parecer amadorismo, nesse soa não só natural, como necessário.

As entrevistas são sempre intercaladas com grafismos, remetendo à infância de “fanzines” da diretora e de suas amigas, e às tomadas do próprio filme perdido. Mais do que servir de meras ilustrações, essas imagens recuperadas comentam decisões passadas e tudo que estava atrás da câmera, vindo da cabeça sonhadora de jovens estudantes. Shirkers era afinal um produto de sonhos e de cinefilia, nascido da paixão por cinema e da vontade de criar. Portanto, não tem como não se emocionar com o impulso vibrante de Sandi e de suas parceiras SOPHIE Siddique Harvey e Jasmine Ng. Estão ali as motivações mais puras para se ligar uma câmera e contar histórias.

É justamente nesse viés que o projeto ganha mais força, ao enfocar as trajetórias do trio principal e seus parceiros, tanto de onde começaram até onde chegaram. Não à toa, as legendas de apresentação de cada entrevistado, algo tão banal em documentários, aqui ganha uma nova conotação, afinal elas mudam de acordo com o tempo em que o relato está sendo contado. Então, se no início Sophia é identificada como “Ex-estudante de Cinema”, mais para o final ela recebe seu título atual, como num fechamento de arco, de “Chefe do Departamento de Cinema na Vassar College”. Muito além de procurar respostas para a trama fantasma do professor misterioso ou do filme perdido, o novo Shirkers busca um olhar humano sobre as pessoas que se juntaram em 1992 para fazer cinema.

Um momento particularmente emocionante é quando o compositor Ben Harrison toca para Sandi a trilha que ele havia criado, mas nunca tinha sido ouvida. A sobreposição da música com as imagens é bela, sem dúvida, entretanto, a grande sutileza na narrativa é dar impacto, não necessariamente às obras em si, mas ao fechamento de ciclo que representa para os dois concluir a colaboração iniciada 20 anos antes. O mesmo vale para o que os entrevistados falam nos depoimentos: mais do que informações, vemos segredos, desabafos, broncas e trocas de carinho.

E nesse caminho Shirkers chega ao fim, observando a beleza de um trauma que vira cicatrização em forma de reencontro. Ainda que as duas décadas de espera nunca sejam recuperadas, o verdadeiro filme não estava exatamente nas películas roubadas, mas nas memórias de cada um que deu a vida por aquilo e que agora pode contar essa história. E juntos, através da câmera de Sandi, conseguem terminar aquilo que haviam começado no verão de 1992.

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