Retirada do Behance de Mariana Sguilla

Uma conversa com Danieli Balbi (entrevista)

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12 min readMay 15, 2020

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Organizada por Priscila Branco, Ralph Duccini e Paula Albuquerque

Revista Toró: Dani, muito obrigada por aceitar nosso convite. Nesse momento, precisamos manter a arte e a cultura circulando como forma de reinvenção do mundo. Você é um símbolo de resistência e de empoderamento, além de ser um exemplo para a nossa geração, pois é a primeira professora universitária trans da UFRJ. Sendo uma mulher, negra e educadora, como foi a sua trajetória dentro da educação, dos movimentos sociais e dos movimentos de combate às opressões, tais quais o racismo, a transfobia e o machismo?

Dani Balbi: Olá. A honra é toda minha. A educação formal, apesar de muito opressora em termos de trato da diversidade, sempre foi o espaço que possibilitava a pessoas como eu alguma forma de inserção social, de encontro com o conhecimento e o coletivo. Me formei em uma escola pública no ensino fundamental e, de lá, parti para uma outra escola pública, fora do Bairro, em que a presença do movimento estudantil pautava e movimentava a organização discente. Foi lá que conheci o PCdoB, me integrei e parti para a UFRJ, Faculdade de Letras, onde atuei, quase que exclusivamente, no movimento estudantil. O movimento social começa através do contato com os movimentos dentro do PCdoB. No início da minha militância, há 16 anos, não havia tanta força dos movimentos sociais fora do PT. A força que a pauta vai adquirindo vai me forjando e eu vou indo, então, ao encontro dos movimentos LGBT e do Movimento de Mulheres. O impacto disso, contudo, foi tão grande que alterou radicalmente minha relação com a academia, os temas de interesse de pesquisa e a minha relação com o próprio partido.

Revista Toró: A trajetória de luta se faz presente na vida de todo/toda/tode aquele/aquela/aquelu que não se encaixa no padrão. Há uma tentativa de combate à discriminação racial ao longo de algumas décadas por parte dos movimentos sociais. Recentemente, presenciamos alguns casos óbvios de racismo, em que os agressores foram, inclusive, levados a prestar depoimento. Bolsonaro, em sua campanha presidencial, prometeu rever a questão das reservas indígenas e quilombolas. Seu vice, Hamilton Mourão, chegou a dizer que o brasileiro herdou a “indolência” do indígena e a “malandragem” do africano. Você é uma mulher negra e professora universitária que desmente a fala racista do presidente e dos seus apoiadores. No entanto, ainda sabemos que o racismo institucional é estrutural, legado de uma sociedade patriarcal e escravocrata. Gostaríamos que você discorresse sobre racismo institucional e falasse da sua própria experiência.

Dani Balbi: O racismo é uma engenharia de organização social extremamente refinada e tão bem armada a longo de séculos de exploração, que se impõe parte das bases, modelos e esquemas de raciocínio, tornando hábito as práticas racistas e levando a inferências que organizam, de forma sutil e também violenta, toda a atuação pública, civil e cidadã. É o primeiro e talvez um dos mais antigos mecanismos de “organização” e “seleção” dos que vivem e morrem em um regime de regulação de escassez ou de atuação para a escassez — no caso deste, o capitalismo e suas formas embrionárias. Nas fases de desenvolvimento agressivo da exploração — imperialismo, expropriação etc. –, o racismo é a ferramenta que os dirigentes do processo, enquanto classe, usam para exterminar, perseguir, capturar e angariar aliados e cúmplices fora de sua classe, de seus interesses. No caso particular do Brasil, o regime escravocrata foi legalmente eficaz em interceptar qualquer forma de acesso à perspectiva de vida para negros cativos, editando proibições e permissões de toda ordem. Imediatamente após a abolição da escravatura, o projeto era exterminar pessoas negras em massa, interditando acesso a projecções, a determinados territórios, recrudescendo a orientação racista do aparato policial e implementando um processo de substituição da mão de obra negra escravizada pela mão de obra branca com evidente intuito eugenista, amparado por “teóricos” raciais, “naturalistas”, “médicos” nacionais e estrangeiros que se ocupavam em “provar” a inferioridade negra. Além de estarmos “livres” sem qualquer auxílio ou reparação pecuniária, ainda inviabilizavam nosso acesso aos campos de trabalho que, outrora forçados, eram abertos ao estrato europeu. Empurravam-nos para fora da malha urbana, do acesso a saneamento e reformavam os layouts das grandes cidades para que, impedidos de transitar em espaços de comércios de artigos, de trânsito oficial ou, por outras razões, como pelo reduzido poder aquisitivo, a incipiente classe trabalhadora e média fosse automaticamente treinada para observar a nossa presença e “detectá-la” como ameaça, autorizando o abuso policial às vistas. A virada da chave, a partir da década de 1930, ocorre com um processo de mascaramento da orientação racista sobre a qual o estado-território nacional havia se erguido, muito por conta da escassez de mão de obra e do crescimento populacional negro, a despeito das incursões públicas e privadas que tinham como intuito nos exterminar. As teses Freyrianas e o Governo Vargas se encarregam de operar, sustentar e garantir esse novo momento. Sem que, na prática, essa virada de chave significasse algo substantivo, a formação de estereótipos, sua remarcação e outros processos de alijamento foram se consolidando, entregando, além de quase nenhuma perspectiva de emancipação cidadã, como recolocação no mercado de trabalho formal e acesso à educação, reforço de ideias como “indolência”, “agressividade/perigo”, “animalização” e “hipersexualização”, o que culminava na construção da marginalidade em todos os sentidos, apropriação cultural, infantilização e racismo explícito. A força dos movimentos negros organizados só se observa no contexto da virada do século XX, quando se garante a tipificação de racismo enquanto crime, da inscrição de injúria racial no sistema penal e a adoção do sistema de reserva de vagas em universidades e concursos públicos. Tudo ainda bastante incipiente e desigual ao longo do país, devido a muitas medidas não terem se consolidado enquanto política pública de estado, e sim de governos; tudo ameaçado pelo ressurgimento de um fascismo de orientação classista, misógina e racista que, com facilidade e rapidez, usa esses esquemas e mitos sobre os contingentes historicamente marginalizados a seu favor.

Revista Toró: Diante do avanço do coronavírus, as diferenças de classe se acentuam ainda mais. Temos assistido ao presidente se negar a garantir a quarentena como um direito de todos e não propondo medidas emergenciais para amparar os trabalhadores a se manterem nesse momento de crise, enquanto os ricos e banqueiros continuam a proteger o lucro acima da vida do povo. No entanto, não foi o vírus que nos levou à situação de caos econômico e social em que nos encontramos agora. Bolsonaro vem atacando os direitos trabalhistas e previdenciários, a educação, a saúde e a produção cultural de nosso país desde que foi eleito. Você tem uma trajetória política de muitos anos, começando no movimento estudantil e sempre organizando os estudantes e trabalhadores a lutarem por seus direitos. Diante da situação atual, quais seriam os próximos passos da esquerda para resistir aos ataques impostos por Bolsonaro? Quais são as possibilidades de organização e de luta oferecidas aos trabalhadores hoje pela esquerda organizada?

Dani Balbi: Acho, honestamente, que, em relação a essa pergunta, a resposta, conquanto complexa, não é difícil: reorganizar a esquerda, orientada à unidade, com protagonismo dos movimentos sociais, em torno de bandeiras amplas que impactem o conjunto da classe trabalhadora e, para tanto, encontrar mecanismos de acesso e interlocução novos, uma vez que os sindicatos e os partidos políticos foram descredibilizados e objetivamente cerrados com as reformas trabalhista/sindical, a reforma da previdência e a reforma política/partidária. Os problemas, no entanto, começam nas próprias soluções acima apontadas. Hoje, por exemplo, está em curso uma marcha pelo impeachment de Bolsonaro que não encontra adesão integral da esquerda no Congresso. Figuras políticas e organizações que perderam força, crédito ou foram golpeadas lutam mais para não morrerem e perderem protagonismo do que para organizar os trabalhadores. E aqui, levanto uma tese que acho que pode ajudar a rastrear os motivos pelos quais há hiatos e bolhas: a esquerda, seus dirigentes homens, brancos e de classe média nunca estiveram preocupados em organizar-se diretamente com o povo, em penetrar nos rincões do Brasil, nas periferias e subúrbios e fincar um trabalho organizado de construção — e não conscientização proselitista — política, de estabelecimento de unidade. Pesquisando a atuação dos organismos de esquerda das décadas de 1950 e 1960, quando houve maior aproximação de uma base popular de partidos de esquerda e sindicatos, teses eugenistas, de um “romantismo” racista, machista e classicistas sobre auto-organização e capacidade dirigente infiltravam os cadernos de teses dos seminários e congressos desses organismos, justamente quando a orientação deveria ser expandir, basificar, criar condições para o curso de uma luta de classes que fosse susbstantivada por questões brasileiras, como o racismo histórico, por exemplo. Depois do golpe, na abertura, não houve momento, tempo e esforços suficientes; as tentativas e os erros da coalizão que governou o país de 2012 a 2016, a despeito dos avanços observados, não aprofundou a consciência, a autonomia, a elaboração, a criatividade do povo trabalhador. Cá estamos, enquanto, infelizmente, a reação eficaz ao fascismo vem do monstro astuto que o criou: a direita patriarcal, patrimonialista e preconceituosa de sempre. O que fazer? Trabalho de base, astuto, intenso, despretensioso, aprender, fincar raízes, disputar as formas de religiosidade no seu próprio campo: aprender a achar o ponto de unidade. Eu acho que é por aí. Infelizmente, os confortos antigos da classe dirigente progressista e os confortos virtuais da nossa Era, que fraturam a presença, o corpo a corpo e a comunicação, acentuam as distâncias.

Revista Toró: Você se candidatou a deputada estadual do Rio de Janeiro em 2018 pelo PCdoB, recebendo 10.349 votos. Gostaríamos que você falasse sobre a montagem dessa plataforma eleitoral, sobre o programa da campanha e sobre sua experiência enquanto mulher, negra e trans dentro de um partido de esquerda. Quais os desafios que você enfrentou enquanto candidata e figura pública?

Dani Balbi: A plataforma surgiu de minhas intensas trocas com as mulheres do partido, sobretudo as mulheres que atuavam na rede do movimento estudantil e se apresentavam frustradas com o baixo alcance e impacto da própria rede. A Gabrielle Paullanti, coordenadora do projeto, foi crucial para alinharmos eixo, perspectiva, forma, trocando nossas experiências, vivências e formas de entender o desafio que era conversar com um eleitorado amplo. A campanha, que no início fora pensada e proposta pelo partido para se restringir à intelectualidade carioca, ganhou adesão, se expandiu e, para nossa surpresa, tivemos penetração em todos os setores, camadas e macrorregiões do Estado do Rio. Foi uma experiência valorosa, bonita, principalmente para as pessoas negras, as mulheres e LGBTI’s do partido. Acho que fica o aprendizado de que o corpo a corpo, a escuta, o trabalho de base pode levar uma mulher preta e comunista a ser entendida com seriedade, pelas pautas que apresentamos, pela honestidade do que propusemos, pelo esforço que fizemos. A imagem que me chega é de um corpo a corpo com candidatos em que eu e as coordenadoras da nossa campanha éramos umas das poucas que abordavam, seguiam, olhavam nos olhos do eleitorado, trocavam contato, falavam, incluíamos no material, aprendíamos. Construímos uma rede, não uma figura. Talvez o caminho seja esse.

Revista Toró: O movimento feminista vem ganhando força na internet, principalmente depois do levante de lutas que vivenciamos no ano de 2013 no Brasil. Porém, ele está bastante dividido em questões teóricas, gerando, em alguns momentos, atritos dentro do próprio movimento. Há uma vertente denominada “feminismo radical”, que discute bastante a questão da transexualidade, levantando, muitas vezes, posicionamentos contrários à identificação de gênero. Como você enxerga o debate sobre o gênero? É o gênero uma construção social? Está Simone de Beauvoir correta quando afirma que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher"?

Dani Balbi: O gênero, tanto quanto a raça, é um mecanismo de exploração das mulheres. No caso do gênero, anterior a qualquer outro. Ele pode ser atribuído a mulheres trans pela força dos mecanismos de identificação e inculcamento. Nascer mulher se completa, nesse sentido, com a adesão do gênero em uma sociedade patriarcal, misógina, machista. O estofo teórico do feminismo radical ajuda muito na hora de entendermos as correlações consubstanciais entre classe, raça e gênero, mas não pode se limitar ao gênero enquanto atribuído apenas a mulheres cisgêneros, uma vez que o ritual de atribuição de gênero transcende e transborda conformações biológicas. Não é razoável que qualquer mulher que sofra silenciamentos, assédio, violações e toda ordem de rupturas seja deixada de lado de um movimento emancipacionista. É evidente que pautas específicas como direito reprodutivo, intersecções entre raça, classe e lgbtifobia devem ser protagonizados especificamente. Contudo, são pautas de todas e, de modo geral, um avanço para uma é um avanço de todas.

Revista Toró: Partindo do questionamento acima, gostaríamos que você pontuasse essa questão em relação ao feminismo negro, na medida em que, na história brasileira, as mulheres negras sempre estiveram alijadas de identificação humana. Mulheres eram as brancas, e as negras, objeto de troca e de lucro. Na literatura, por exemplo, as mulheres negras são destituídas de condição humana e política. Não podemos falar de feminismo sem articular essa questão étnica, já que as mulheres negras não possuíam participação política. É fundamental articularmos gênero, raça e classe, afinal, as mulheres negras ainda são a base da pirâmide econômica do país. Você poderia falar sobre esse tema?

Dani Balbi: O feminismo negro é urgente e necessário na medida em que pontua as opressões que passamos por sermos mulheres que sofrem de uma forma característica. Há pouco tempo, se me perguntassem qual a opressão vem primeiro, eu responderia a de ser transexual; depois, de ser mulher. Hoje, talvez, eu responda que, antes de tudo, eu sou uma mulher negra em uma sociedade racista-patriarcal. Evidentemente, as opressões não se acumulam, elas se consubstanciam, por isso é impossível escalonar o que vem primeiro. No entanto, formas específicas de tratamento, de apontamento, de acesso, de propostas são as mesmas que eu identifico compartilhadas por outras companheiras, familiares. Nós somos a base do sistema racista patriarcal, operando o trabalho não remunerado que sustenta a extração da mais-valia, seja como esposas, filhas ou empregadas domésticas. Percebemos os menores rendimentos do trabalho, morremos abandonadas e não pontuamos nas estatísticas de mobilidade social. Feminismo negro é urgente, é a primeira palavra dentro do movimento de organizações emancipacionistas de classe, gênero e raça.

Revista Toró: Vivemos uma situação que, de tão absurda, mais parece ficcional. Pensamos no teatro épico brechtiano, em que a diminuição da distância com o público incentivava que este pudesse ver as situações de opressão que vivenciava no dia a dia, pensando a arte, e nesse caso específico, o teatro, não como entretenimento de uma massa entediada, pronta para esquecer seus problemas, mas, ao contrário, como fonte de questionamento político e social. Na sua tese de doutorado, você trabalhou questões históricas presentes na dramaturgia brasileira, que continuam a se repetir. Você poderia nos falar sobre como as categorias históricas de opressão ao trabalhador e às populações periféricas vêm sendo subtraídas das discussões dramatúrgicas e literárias ao longo da história brasileira? Como você pensa nesse sistema de subtração e de adequação de corpos e vivências históricas em prol de uma aceitação na indústria da arte, que atenda às demandas de um público específico, em sua maioria branco e privilegiado?

Dani Balbi: A ideia de unidade de classe foi, engenhosamente, sendo substituída pelo fraturamento das formas de opressão que, se demandam análise cuidadosa, podem ajudar na pulverização da unidade de ação e luta tão cara àqueles que entendem a necessidade de reformas estruturais. O Modernismo crítico enquanto postura — diferente da tendência didática –, foi uma forma de fazer literatura, teatro, cinema que, em geral, seguiu amadurecendo até o contexto da década de 1950, com resultados densos que apontam, inclusive, ótimas resoluções em termos de composição de caracteres, universos e questões que alinhavam as bases problemáticas do país; isso como fratura estética, como resultado preciso da passagem da mímese para a diegese. Contudo, o movimento de desmantelamento da cultura, ligado à ofensiva ideológica que começa com o fortalecimento dos conglomerados de comunicação de massas e entretenimento e termina na censura oficial do golpe burguês-militar, teve como orientação vedar obras que tratassem diretamente e em profundidade questões como classe, pobreza explícita e racismo, alinhavadas e com penetração. A orientação do gosto, inclusive, foi sendo forçada à prestigiar obras que se detém na superfície, provocando a classe média letrada para colocá-las em primeiro plano. Foi essa a orientação que a crítica oficial, acadêmica, jornalística, as produtoras e todo aparato nacional de cultura, em resumo, pretendeu quando foi expurgando, abafando e lateralizando as produções que tratavam de constituintes estéticos de estruturantes que recortavam mimeticamente elementos como classe, trabalho e história, tão caros a nós. A sedução da pobreza, o fetiche da violência, a crueza pornográfica foram dando conta dos cinismos do termo de relação entre a captura da produção pela crítica. Coletivos próprios podem ser a resposta para testagem estética de uma arte do e para o povo, política, mas não panfletária.

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