Retirado do Behance de Aleksandra Czudżak — @aleksandra_czudzak

Organizada por Priscila Branco e Paula Albuquerque.

Revista Toró: Agradecemos sua participação na primeira edição da Toró, principalmente nesse momento de caos que estamos vivenciando em nosso país. É fundamental que continuemos produzindo crítica e arte como forma de resistência à situação atual. Tivemos acesso a alguns dos seus textos, mas sabemos que a atividade literária começa sempre em um antes. Gostaríamos que você falasse um pouco sobre o seu percurso na literatura e na crítica, e sobre como sua pesquisa se entrelaçou com a mística.

Eduardo Guerreiro B. Losso: Fico feliz de estar participando do primeiro número de vocês. Uma nova revista de literatura feita por jovens escritores pensantes é a melhor iniciativa que pode existir.

Iniciei minha vida artística estudando violão clássico desde os 10 anos. Aos 13, comecei a me apresentar e, no período entre os 14 e os 17 anos (1989–1992), eu tinha um duo de violão com um amigo, Breno Gradel. Fizemos várias apresentações, tanto em salas de concerto quanto em lugares mais livres, como, por exemplo, o CEP 20000. Nós nos apresentamos nos primeiros eventos do CEP, junto com a banda Boato. Investi bastante no estudo musical até entrar na universidade, cursar um período e descobrir que estava mais interessado em mergulhar no mundo da literatura. Saí da faculdade de música e entrei na faculdade de Letras.

Mais adiante, entre 1998–1999, organizei alguns eventos de poesia com meu amigo André Luiz Pinto e com um grupo chamado Os descaravelados, com o recém-falecido Cairo Trindade, que foi um grande amigo e poeta, Thereza Christina Roque da Motta, hoje à frente da editora Ibis Libris, entre outros. Quando entrei no mestrado, em 2000, resolvi estudar um de nossos maiores poetas da geração 60: Armando Freitas Filho. Ao mesmo tempo, comecei a editar a Revista.doc com André Luiz Pinto. O conceito de sublime, dentro de uma leitura pós-moderna, estava no auge da discussão e estudei o sublime na obra de Armando. Foi o primeiro trabalho de pós-graduação sobre a obra dele, hoje existem dezenas.

Mesmo não sendo muito comum numa pós-graduação de teoria literária ler livros de filosofia mais duros, estudei bastante a primeira e a terceira crítica kantiana. Se, nos anos 90, ainda antes de entrar para o mestrado, eu havia descoberto, com grande fascínio, a teoria francesa (Foucault, Deleuze, Derrida e especialmente Baudrillard, além de nomes da teoria pós-moderna, como a Francis Jameson), nos anos 2000 eu queria entender as bases da modernidade. Esse desejo de recuar na história e relacionar com os debates do presente foi indo cada vez mais longe.

Há um trecho da terceira crítica em que Kant afirma que não há passagem mais sublime do “código civil dos judeus” (o Antigo Testamento) que o mandamento da proibição de imagens de Deus. Por sua vez, todo o livro da Dialética negativa de Theodor Adorno relaciona a negatividade teológica com a negatividade da obra de arte e da teoria crítica. Foi isso que me fez estudar a relação entre a teologia negativa e a obra de Adorno no doutorado. O que chamamos de teologia apofática está na raiz da negação de atributos positivos para a literatura moderna (veja, por exemplo, a forma como Blanchot e depois Foucault concebem uma ontologia negativa da literatura). A busca de Deus não através de seus atributos positivos, mas através da negação de todo e qualquer atributo, foi iniciada claramente por um teólogo chamado Pseudo-Dionísio Areopagita (obras escritas entre 485 e 528), num curto livro, traduzido em 2005 pelo grande poeta Marco Lucchesi, chamado Teologia mística.

Como vê, o caminho de remissões de um texto a outro foi tortuoso. Ao longo desse percurso, percebi claramente que as ciências humanas em geral e a teoria literária em particular demonstravam uma verdadeira dificuldade de relacionamento com o fenômeno religioso em geral e, especificamente, com a mística. Coisa estranha, porque a fina flor das obras chamadas místicas é o que há de melhor na literatura medieval e mesmo moderna. Obras místicas são obras literárias. João da Cruz é um dos maiores poetas da língua espanhola, a Divina comédia de Dante narra um itinerário espiritual.

Revista Toró: Lendo seu artigo intitulado Mística e antimística, simbolismo e crítica literária, e compreendendo que a mística, assim como qualquer vertente do pensamento humano, é uma construção social e cultural, e que pode, portanto, ser fonte de criação ficcional ou poética, por que existe, ainda hoje, um distanciamento da crítica literária, pelo menos a que se encontra dentro da academia, em relação aos estudos de mística e literatura?

Eduardo Guerreiro B. Losso: Sem dúvida, isso mesmo. Percebi aí uma contradição que não foi bem pensada: por um lado, muitos motivos de pensamento da filosofia moderna bebem diretamente de fontes teológicas; por outro, há uma grande ruptura entre filosofia moderna e teologia, que se reflete numa separação de espaços públicos mais geral entre instituição acadêmica e Igreja, ou ainda, entre meio artístico-universitário e meios religiosos e espiritualizantes.

Nunca fui religioso, sempre me senti ou artista ou crítico, e com o tempo meu ateísmo só se fortaleceu. Ao contrário da maioria das pessoas, a consolidação de meu ateísmo não me levou a abandonar o interesse intelectual pela religião. Ao longo do tempo fui percebendo que a maioria de professores e pesquisadores preferem sempre evitar tematizar questões difíceis. Como sou um sujeito teimoso, vi na dificuldade de enfrentamento dessa problemática um campo imenso, pouco ou nada explorado, para examinar, deslindar e discernir demoradamente elementos confusos. É um terreno onde normalmente, nos meios não religiosos, só encontrei evitações, descartes, recusas, conflitos, silenciamentos e reações irritadas.

Por outro lado, em meios teológicos e de ciência da religião, evidentemente que há todo o interesse. Ainda assim, espanta que pesquisadores da religião estudem questões modernas e laicas e estudiosos de literatura laicos não estudem nada de questões religiosas e dimensões de espiritualidade na literatura moderna. Outra coisa que muito me ajudou foi que Christoph Türcke, meu orientador de doutorado na Alemanha, que se tornou um grande amigo, é um dos maiores atualizadores da teoria crítica e escreveu vários livros sobre a relação entre laicidade e religião. Organizei várias vindas dele para o Brasil, escrevi sobre sua obra e traduzi um artigo e um livro. Na verdade, na Alemanha, na França e mesmo nos EUA, o interesse de filósofos por questões teológicas têm sido cada vez mais comum, vide os livros de Badiou, Agamben, Nancy e Eagleton sobre teologia e cristianismo em geral. Nesse sentido, é o Brasil que está atrasado.

Por isso que encontrei, no difícil lugar que ocupo, um horizonte inexplorado e interminável de problemas a serem tratados com esmero e cuidado.

A palavra “mística” provoca imenso fascínio em meios espiritualizantes e imensa repulsa em meios acadêmicos. Geralmente, nem um nem outro conhecem o longo percurso que o vocábulo percorreu ao longo dos séculos, o que explica suas reações apaixonadas. Michel de Certeau e Wouter Hanegraaff são os melhores pesquisadores para entender o trajeto da noção. Há historiadores, como Kurt Ruh na Alemanha e Bernard Mcginn nos EUA, que escreveram vários tomos de história da mística ocidental. Costumo dizer aos irritados e aos siderados que a mística foi uma das temáticas mais estudadas pela universidade. Há uma teoria da mística, evidentemente interdisciplinar, que envolveu o nascimento das áreas de psicologia, sociologia, antropologia e, last but not least, história e teoria literária. Eu defendo que diferentes dimensões da mística são imprescindíveis para entender elementos essenciais da literatura moderna, não só de autores assumidamente cristãos, como Murilo Mendes e Jorge de Lima, ou assumidamente ‘místicos’, como se dizia Guimarães Rosa, mas também toda a literatura que lida com uma experiência negativa, ou uma experiência cósmica, ou um topos que já chamei de eternidade no instante. Sabemos que, indo por esse caminho, a lista de obras e autores aumenta muito. Tudo aquilo que está permeado daquilo que Octavio Paz denominou de analogia da poesia moderna inevitavelmente toca nesse terreno.

Quem recusa a palavra como mero sinônimo de superstição, crendice, alienação e manipulação eclesiástica desconhece completamente todo esse campo de estudo e toda a história por trás. Forma-se um tabu laico em torno de qualquer coisa que cheire religião, porque, no nível raso da mera repulsa, tudo o que é religioso se resume a evangélicos querendo te converter. Se você fala muito sobre isso, é porque provavelmente é um pastor. O melhor é não mencionar a palavra. Mística é uma espécie de Voldemort: quem a pronuncia, está contaminado pelo vírus da alienação. Nesse caso, a mística é vista como uma espécie de coronavírus das especulações que tocam o inefável. Intelectuais desencantados entram em pânico com ela: não param de se descontaminar.

Eu sei muito bem o lado alienante da religião, o perigo de seitas suicidas e a ameaça à democracia representada pela bancada evangélica. Mas João da Cruz, Teresa de Ávila e Eckhart são uma coisa (são autores místicos tradicionais); Baudelaire leitor de Swedenborg e Novalis leitor de Paracelso são outra coisa (são fundadores da poesia moderna essencialmente influenciados pela prática renascentista das correspondências); esoterismo e teosofia são uma terceira coisa (influenciaram o simbolismo e vanguardas literárias); Jim Jones é uma quarta coisa e evangélicos são uma quinta coisa completamente diferente. Se você quer apontar o perigo de ilusão da mística, é preciso estudar história e teoria da mística. Se você quer defender a abertura das portas da percepção, é preciso estudar história e teoria da mística. Se você quer afirmar ou negar a ligação entre mística e literatura, é preciso estudar história e teoria da mística. O problema dos intelectuais ateus (meus colegas) que não querem saber da mística é que em vez de eles abrirem uma possibilidade de estudo, eles a evitam com medo da contaminação generalizada do encantamento. Costumo dizer que estudar uma coisa não é e não deveria ser defendê-la. Eu não defendo a mística, mas defendo, sim, o estudo da mística. Bem, eu compreendo a reação pouco ou nada consciente deles: tal banimento do estudo de mística na academia também tem uma história, já contada em detalhes por Wouter Hanegraaff e que não vou mencionar aqui.

Podemos dizer que a mística é um veneno-remédio, um phármakon, nos termos que o grandioso ensaísta José Miguel Wisnik colocou para o futebol. Não cabe aos intelectuais recusar um phármakon como veneno (assim como Platão o fez com a escrita e mesmo com a própria poesia), cabe examiná-lo demoradamente em seu laboratório epistemológico e observar quando ele se comporta como veneno, quando ele se comporta como remédio e quando sequer é possível distinguir uma coisa da outra (o que é dialeticamente mais instigante).

Revista Toró: Apesar de, socialmente, a mística cristã ter cumprido ao longo da história da humanidade um papel reacionário, ou seja, escapando apenas de um conceito religioso para se tornar um agente influenciador de manipulação do povo, sabemos que a literatura e a arte podem transformar e ressignificar as experiências do mundo através de rompimentos questionadores com o sistema vigente. A partir deste pensamento, qual o potencial transgressor que a mística, não só a cristã, possui dentro do campo literário?

Eduardo Guerreiro B. Losso: Depende do que você quer dizer com “mística cristã”. É imprescindível pensar em termos históricos. Marguerite Porete (1250–1310) é a escritora beguina mais ousada: foi queimada viva. Meister Eckhart (1260–1327) sofreu um processo de condenação no final da vida e, logo depois de morto, foi condenado. Livros foram queimados e proibidos de circular. Citei só dois exemplos, mas existem muitos. No auge da mística medieval e renascentista (XII a XVI), místicos foram vistos como uma ameaça à mediação tradicional que o clero fazia de Deus, pois declaravam ter tido um contato imediato com o princípio supremo. Na querela dos antigos e modernos, do final do século XVII, foram explicitamente intitulados de modernos. Por quê? Por serem ousados e extravagantes. Se foram queimados, presos, banidos e calados, concluo que quem mais sofreu por ter sido moderno foram eles. Nossos poetas modernos encontraram resistências, raramente, contudo, esse tipo de perseguição. Mas não precisamos comparar tormentos: na verdade, eu vejo uma ligação intrínseca entre os dois, pois ambos foram qualificados pelos conservadores de empregar linguagem extravagante. Ambos foram acusados de delirar com estranhos modos de dizer e perturbar os bons costumes.

De qualquer forma, há uma mística católica, há outra mística protestante (é o caso do pietismo) e há uma mística fora das Igrejas, que podemos colocar dentro do termo esoterismo. Muitos românticos e todos os primeiros simbolistas estavam impregnados de uma crítica ferrenha a Igrejas e se colocavam como anti-clericais, na Europa e no Brasil (aqui o centro desse movimento foi o Paraná). No simbolismo, anti-clericalismo geralmente estava ligado a esoterismo. Essa é uma história muito interessante e cheia de minúcias. O papel do esoterismo na formação de uma oposição intelectual à Igreja é considerável, e de um modo de vida libertário, mais ainda. Não é à toa que, mais tarde, o movimento hippie da contracultura esteve imbuído de espiritualismo. A presença do esoterismo na imaginação literária e artística dos séc. XIX e XX em geral é imensa. Mas esotéricos não são figuras iludidas? Sim, claro que são. Veneno-remédio.

Revista Toró: Uma tradição nasce porque questionou a existência de outra forma tradicional, tornando-a, em sua concepção, obsoleta. No entanto, apenas por nascer, uma tradição está fadada a também sofrer dessa mesma obsolescência. Justamente por isso, uma tradição não pode ser linear. Partimos da literatura grega, em que observamos a experiência humana ficcionalizada, a dor e o desespero no centro do tema como verdade estética, por exemplo. Passamos pela Idade Média, Renascimento, Barroco e por diversas modernidades até a concepção das “Correspondências” de Baudelaire, a poesia que se desdobra sobre si e se torna outra de Rimbaud, os símbolos religiosos utilizados por Cruz e Sousa para também “delirar” sobre a tradição religiosa. Com esta pequena introdução, gostaríamos que você falasse dos atributos delirantes da poética contemporânea e se é possível a existência de qualquer tradição que não seja delirante.

Eduardo Guerreiro B. Losso: Obrigado por esse interessante resumo. Engraçado que eu tive um grande trabalho tentando justificar a ideia de uma tradição delirante e agora me deparo com alguém que considera toda tradição necessariamente delirante! É verdade: se toda tradição é imaginada, se toda tradição contém uma fantasia de sua própria história, então, há sempre algum “delírio” numa tradição. Faz sentido. Então, há uma tradição que manifesta procedimentos de escrita transgressivos e assume produzir delírios criativos, como é especialmente o caso do simbolismo: aí temos uma tradição delirante autoconsciente.

Não precisamos acreditar numa tradição que ostenta sua verdade para constatar transmissões históricas em que um sentimento de pertencimento ao passado potencializa a criação. O ataque do modernismo à tradição literária é hoje tão caduco quanto a obediência a ela. Na verdade, há um ranço modernista de só acreditar na validade de algo absolutamente novo e inédito e descartar qualquer coisa que se insira em tradições e eu acho que isso prejudicou muito a possibilidade de transmissão de aprendizados históricos na busca libertária. Acho hoje bem mais instigante quem busca conhecer os tesouros escondidos do passado do que quem só dialoga com passados reconhecidos pelo presente. Dito isso, acho essencial observar a linhagem libertária internacional que vai do romantismo, simbolismo, surrealismo, beats e contracultura, que, no Brasil, tem nomes específicos. Cito alguns: Cruz e Sousa, Dario Vellozo, Gilka Machado, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Roberto Piva, Afonso Henriques Neto, revista Azougue. É especialmente essa linhagem que me interessa e na qual eu identifico a tradição delirante. O crítico que mais explorou essas conexões foi Claudio Willer, amigo de Piva, inclusive.

Revista Toró: Além de crítico literário e professor de teoria literária da UFRJ, você também atua no campo editorial, seja como editor da revista acadêmica Terceira Margem seja como colunista da revista de poesia e arte contemporânea — mallarmargens. Quais são os desafios que a academia tem hoje de acessar um público maior para além dela mesma, uma vez que as revistas devem ser um instrumento de comunicação? Em relação às revistas online independentes, você acha que elas cumprem um papel de expandir a acessibilidade à arte e de resistir ao poder de ditar o que deve ser consumido enquanto literatura que as grandes editoras impõem?

Eduardo Guerreiro B. Losso: Costumo dizer em sala de aula que se a educação fosse realmente levada a sério, cada escola ou universidade deveria ter equipamento e pessoal técnico do nível que redes de TV possuem para atrair seus espectadores. A dificuldade da academia de atingir mais público vem primeiramente do fato de não haver investimento estatal na difusão do conhecimento. As revistas acadêmicas fazem um trabalho que considero heróico e louvável, sabendo que a maioria não tem nenhum tipo de fomento e é feita por professores que já estão sobrecarregados de compromissos. De fato, tais revistas viraram depositórios de artigos não lidos. Todos querem publicar; porém, muito poucos se dispõem a encontrar tempo para ler o artigo do colega. O papel dos pareceristas evidentemente diminui essa sensação, mas não faz grande diferença. As ciências humanas encontram dificuldade de sair da lógica de leituras viciadas, especialmente as áreas mais especulativas.

Enquanto youtubers viraram experts em comunicação pública, pesquisadores, mesmo aqueles muito ativos na extensão, estão muito atrás nesse quesito e não podem ser acusados de negligência porque, repito, já estão sobrecarregados de trabalho. A linguagem do vídeo e do áudio didáticos vai ser cada vez mais solicitada do que a linguagem técnica do artigo.

De qualquer forma, por uma questão de sobrevivência, será preciso implementar iniciativas nesse sentido, por mais precárias que sejam, e o período de quarentena vai nos impulsionar nessa direção.

Quanto às revistas literárias, como a Mallarmagens e essa aqui, vejo nelas um papel de divulgação da literatura, da crítica, da cultura da política e da política da cultura enorme, indispensável e fundamental. Elas são feitas por pessoas muito organizadas e engajadas, e detalhe: empreendedoras de algo que não dá dinheiro. E, no entanto, é o que dá oxigênio à vida literária. Se vivêssemos num governo de verdade, elas teriam editais específicos para sua inestimável atividade e instrumental para atingir o público de fora dos produtores de cultura e conhecimento. Sem tal fomento, o que devemos fazer é valorizar ao máximo a contribuição de editores e autores e ajudar na sua divulgação.

Revista Toró: Antes mesmo de o coronavírus chegar ao Brasil, o governo de Bolsonaro já estava tomando medidas que atacavam a pesquisa e a cultura de nosso país. Além de a educação ter sofrido com falta de investimento, os cursos de pós-graduação estavam sendo ameaçados com cortes de verba e bolsas para os pesquisadores. Há uma discussão teórica que trata dos possíveis entrelaçamentos entre literatura/crítica e política. A literatura e a crítica devem ter um papel de agentes políticos nos processos sociais? Como essas duas podem influenciar a política e resistir aos ataques que temos sofrido nesses últimos dois anos?

Eduardo Guerreiro B. Losso: Para responder essa pergunta, vou tocar num ponto mais polêmico: as pessoas do mundo da arte e da cultura sempre têm dificuldade de alcançar a população mais pobre. Geralmente, elas chegam e imaginam chegar até eles sempre por via da reivindicação política, denunciando a pobreza e o preconceito. Ótimo. Mas, nesse ponto, os evangélicos estão muito na frente: eles despertam o interesse das pessoas pela via da verdade, da salvação e do sucesso. Em vez do pessoal da cultura ter medo de tocar no veneno-remédio que são esses apelos religiosos, deveriam trabalhá-los a partir de um olhar poético e crítico.

Se os evangélicos estão invadindo a nossa praia (tomando posse de cinemas e teatros), aliás, o que eles fazem de melhor é invadir a praia dos outros (como ocorreu no carnaval, na Enseada de Botafogo), talvez esteja na hora dos produtores de cultura descobrirem o potencial poético e crítico das formas de expressão da espiritualidade. O que eu digo não é novo: a teologia da libertação explorou esse caminho com muita antecedência e intelectuais como Zizek e Michael Löwy reconhecem sua força. O que falta são os produtores de cultura abrirem seus horizontes e entrarem em contato com camadas mais progressistas da religião e da espiritualidade. Meu trabalho em torno da mística pressupõe essa necessidade política. A mística é nada menos que o lado poético da religião, dando centralidade à experiência.

A poesia e muito especialmente a crítica não devem ter nojinho de tocar no mundo da fé (dentro e fora da religião oficial, pois sabemos que a prática política é baseada em estruturas de conversão e convicção; como dizia Octavio Paz, a política é a religião moderna), ao mesmo tempo que também não devem recuar nem um pouco em sua radicalidade crítica. A demanda de salvação não vai parar, e agora, em tempos de pandemia, certamente vai se alastrar.

A antropologia tem pensado bastante ultimamente a validade do pensamento animista ameríndio como visão de mundo crítica à racionalidade técnica desencantada. Logo, a velha oposição de encantamento ingênuo e desencantamento esclarecido está sendo completamente repensada. Também há ingenuidade no desencantamento e esclarecimento no encantamento. Ao mesmo tempo, terraplanistas e outras teorias da conspiração reacionárias estão, sim, levando ao extremo o perigo totalitário do encantamento. Assim como há a manipulação extrema das grandes Igrejas evangélicas, desde o início do século XX, pelo menos, houve um esoterismo de extrema-direita racista, xenófobo, homofóbico. A tarefa da teoria hoje é examinar, refletir, distinguir e discernir (krinein) o emaranhado confuso dessa complexidade e abrir seus horizontes para novas modalidades de intervenção política na indistinção confusa dos espaços estéticos, políticos e religiosos.

Revista Toró: Alguns cientistas políticos e historiadores já estão comentando que, após a vivência atual perante o surto do coronavírus no mundo (e as quarentenas), nossa forma de funcionamento da sociedade irá se transformar. Partindo da questão da “tradição delirante”, como você enxerga os processos de mudança culturais, políticos e sociais, a partir desse momento?

Eduardo Guerreiro B. Losso: Acho que antes da sociedade se transformar vamos viver um doloroso processo de transformação, com o impacto de duas experiências muito difíceis: o confinamento prolongado, que, em breve, ao que tudo indica, se tornará obrigatório, e, se ainda não é, as pessoas já vivem como se fosse, e o número crescente de mortes. É uma experiência de guerra. Dilemas éticos vão se apresentar em alto grau de dramaticidade e é bom não brincarmos inventando artificialmente outros tantos dentro da rede.

Desde o início da revolução industrial e especialmente desde o início do século XX, a população cresceu exponencialmente e de forma desordenada, é evidente. Extrativismo e monocultura dominaram toda a extensão do planeta e não pararam de destruir florestas, poluir oceanos e aumentar a temperatura da Terra, tudo isso basicamente para centralizar a riqueza do 1% mais rico e diminuir progressivamente a qualidade de vida da maioria mais pobre, precisamente desde o surgimento do neoliberalismo.

Todos esses fatores de crescimento nos levaram inelutavelmente à pandemia. Pela primeira vez na história do capitalismo estamos fazendo uma relativa pausa nesse progresso e surge uma grande contradição: a situação de calamidade de nossa espécie significará uma redução da poluição e do produtivismo desenfreado, adiando cataclismas ambientais. Uns não vão ter o que comer, não terão como se proteger, outros serão obrigados a parar sua atividade incessante e poderão ficar em casa. A fissura de megaempresários pelo desmonte do Estado nunca precisou recuar tanto: é imprescindível fornecer renda básica para todos, e não há melhor notícia que essa, mas, mesmo assim, os danos serão graves. A renda pode não chegar a tempo, ou pode simplesmente não chegar, ou pode não adiantar.

Será bom para o planeta e será uma hecatombe para numerosas vidas precárias; será uma interrupção inédita no desmonte do Estado e uma aceleração ainda maior dos fluxos de informação, das atividades virtuais e possivelmente também vão querer aproveitar a oportunidade para o aprofundamento da precarização do trabalho.

Em suma: vê-se uma série de fenômenos contraditórios em curso ao mesmo tempo. Muitas medidas inéditas vão surgir: economia de emergência, trabalho de emergência, cultura de emergência.

Se precisamos pressionar para os agentes da destruição do bem estar recuarem, também precisamos defender e disseminar a importância terapêutica, formativa e autorealizadora da experiência estética.

A sede espiritual vai crescer; a poesia pode fornecer novos sabores, néctares desconhecidos, paisagens nunca vistas. O ar estará mais limpo: um convite para voos mais ousados, alçando altitudes excelsas, excepcionais, magníficas.

(Se me empolguei, confesso que estava ouvindo o disco Amazônia Subterrânea, de Thiago Thiago de Mello, enquanto escrevia esse final. Obra prima de um jovem compositor de MPB, ao lado dos maravilhosos músicos Bernardo Aguiar e Diogo Silli. Eles me fazem acreditar na ressurreição de Orfeu em meio a onças, suçuaranas, “bichos lá fora a ronronar”; eles me levam a sentir “certezas inacreditáveis”.)

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