Imagem do filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha.

Explicando (um pouco) o AI-5

Giovanni Arceno
Explicando
Published in
7 min readJun 7, 2016

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Em 2008, a Folha de São Paulo divulgou uma pesquisa do Datafolha mostrando que 82% dos brasileiros acima de 16 anos desconheciam o AI-5. Dos 18% que ouviram falar sobre, apenas 32% (um terço) respondeu que a sigla se referia ao Ato Institucional Nº 5. Mas vamos lá, estamos muito diferentes? Embora haja um grande esforço em plantar um debate sobre a ditadura militar, as ideias acabam se dissolvendo no viés ideológico ou na simplificação moral - o que torna a oportunidade de um debate franco sobre o tema, sempre empurrada pra debaixo do tapete mesmo findado o período, uma novela do bem contra o mal sem consentimento de quem é quem.

A ditadura militar é o novo tema-fetiche das redes sociais, estimulado pela dicotomia esquerda-direita que parece mais pungente do que nunca, pelo menos no campo do debate. Até o Nostalgia, famoso canal da “geração youtuber”, preocupado antes só em passar conteúdos de entretenimento, produziu um vídeo sobre o assunto numa tentativa de apresentá-lo à galera sub15, público majoritário do canal (eu acho). Com mais de 1,2 milhões de visualizações, o vídeo gerou uma série de retaliações por parte de usuários e outros youtubers, entre eles o oportunista direitão Nando Moura e o filósofo Maro, o qual a própria manifestação é uma contradição, já que a filosofia, sua disciplina de estudo, foi abolida das grades curriculares em tempos de ditadura e substituída por ‘Educação Moral e Cívica’.

As reclamações se estenderam para o Facebook e nos comentários do próprio vídeo de Felipe Castanhari. A maioria feita por jovens, os mesmos que costumam assistir os vídeos do canal Nostalgia. Jovens defendendo a ditadura com unhas e dentes, sem a consciência de que a própria plataforma de sua indignação, a internet, seria inviável ou extremamente restrita em tempos ditatoriais.

Pensei durante um tempo como provar a indecência do Governo militar no Brasil, pra dialogar com essa galera mais nova e quem sabe propor algo aos mais velhos (e mal intencionados). A resposta veio fácil: o AI-5, gangrena da democracia, documento mais marcante do período ditatorial.

O Ato Institucional 5 (AI-5) foi uma medida baixada pelo presidente (e general) Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, quatro anos depois do início da ditadura. Nesta ocasião, outros quatro atos já haviam sido baixados (AI-1, AI-2, AI-3 e AI-4). Como desejo focar no AI-5, vocês podem ver o conteúdo dos atos anteriores neste levantamento bacaninha que o Terra fez, mas é importante registrar que nestes textos já estava clara a investida do Governo militar contra os direitos legislativos dos deputados, a pluralidade política e o voto popular, por exemplo:

  • (AI-1) Art . 10 — No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.
  • (AI-2) Art . 18 — Ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos registros.
  • (AI-3) Art . 1º — A eleição de Governador e Vice-Governador dos Estados far-se-á pela maioria absoluta dos membros da Assembleia Legislativa, em sessão pública e votação nominal.
  • Por meio do (AI-4), o regime militar implementou a ideia no governo de formar uma nova Constituição para o Brasil. Em 15 de março de 1967, a Constituição Brasileira de 1967 entrou em vigor, a qual seria alterada um ano depois pelo AI-5 e pela Emenda Constitucional Nº 1.

Com estes quatro nós na corda que segurava o pescoço da população e dos políticos, os militares achavam que haviam dominado de vez qualquer contraposição possível.

Mas não foi bem assim…

Documentário de Paulo Markun sobre o AI-5, já já falo dele, guenta aí.

O ano de 1968 foi marcado por manifestações em todo o mundo. Alemanha, México, Grécia e França estavam nas ruas. Era o mundo entrando em colapso (ou resistindo a ele). No 39º Congresso Eucarístico (68), o próprio papa, na época Paulo VI, clamou por justiça social, se fazendo entender como apoiador das manifestações. Parte da igreja católica já se opunha à ditadura. O mesmo Paulo VI manifestou publicamente apoio aos bispos brasileiros que criticavam o governo militar (recomendo Batismo de Sangue, filmão baseado no livro de Frei Betto, que conta sua própria história e a de Frei Tito de Alencar Lima no período ditatorial).

Inspirados também pela história da revolução cubana e por Che Guevara, a juventude brasileira foi às ruas. É nesta época que surgem algumas organizações clandestinas, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8, retratado no filme O que é isso companheiro?). O entusiasmo foi respondido, é óbvio!, com truculência militar. Tão cega esta que acabou, em 28 de março de 1968, atingindo o estudante Édson Luís de Lima, no Rio de Janeiro, por suspeita de envolvimento em grupos ilegais de oposição. Chocada, a ‘sociedade-classe-média’, outrora a favor da ditadura, mas já desconfiada com o prolongamento do poder de um regime de exceção, se uniu aos jovens e toda essa galera tava lá, participando da famosa passeata dos 100 mil.

Se foi fácil para o Governo repelir os ataques de fora, catalogando tudo (com estratégia midiática) de ‘terrorismo’, quando ele veio de dentro, ficou impossível o sossego. Em 2 e 3 de setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves (do Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição) discursou na Câmara, pedindo, entre outras coisas, que as pessoas boicotassem o desfile da Independência em 7 de setembro e “que as mulheres, ardentes de liberdade”, não namorassem oficiais das
Forças Armadas (neste mesmo mês aconteceria outro famoso episódio da época: a prisão de 700 estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna, São Paulo).

No baita documentário do Paulo Makun, da imagem ali de cima, tem as reconstituições dos discursos dos parlamentares momentos antes da criação do AI-5, entre eles dois memoráveis: o do deputado Mario Covas (MDB) e o de Márcio Moreira Alves, que encontrei num vídeo único (mas pra quem quiser assistir o documentário inteiro, tá aqui ó):

Claro que o Governo não curtiu o discurso efervescente de Márcio Moreira Alves, julgando-o “ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis”. Foi solicitada então sua cassação, que foi recusada por 75 votos de diferença (com colaboração inclusive da Arena, partido da ditadura) graças a um receio consensual do executivo tornar-se cada vez mais poderoso e pisar em cima de qualquer instância. E bem, foi o que aconteceu.

No dia seguinte, foi baixado o AI-5.

O Congresso foi dissolvido por tempo indeterminado. E somado ao Conselho Superior de Censura, o AI-5 agrediu fortemente a liberdade de expressão. Em seus 10 anos de exercício (até 13 de outubro de 1978) cassou 97 deputados e proibiu 500 filmes, 500 letras de música, 450 peças de teatro, 200 livros, 100 revistas, dezenas de telenovelas, além de, claro, ter motivado a tortura e a morte. O documento ainda autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a:

  • decretar o recesso do Congresso Nacional (medida que o Bolsonaro é a favor, por exemplo);
  • cassar mandatos parlamentadores;
  • suspender, por dez anos, direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícios;
  • suspender a garantia do habeas-corpus (assim não haveria mais obstrução rápida e eficaz de eventuais legalidades por parte do STF. Pra entender melhor, encontrei esta monografia, de autoria de Bruno Ramos Pereira, que fala sobre o impacto desta medida);
  • proibir qualquer atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política (foi daí que o Caetanão tirou É proibido proibir).

Houveram 17 atos institucionais, mais doze após o AI-5, mas nenhum tão rigoroso. Para compor essa explicação, selecionei os textos essenciais pra entender a desgraça que foi esse Ato. Creio que fiz um trabalho honesto de seleção. Afinal, não há nada que se salve no meio de tudo. Mas antes que acusem de ‘recorte maldoso’, aqui está o texto integral do AI-5 para leitura. Ao fim de tudo, expus os nomes de quem assinou o documento, para que vocês nunca esqueçam. Do mesmo jeito que a história absolve, ela também condena.

Art. 2º — O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º — Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

Art. 3º — O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.

Art. 4º — No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Art. 5º — A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:

I — cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

II — suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III — proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;

IV — aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;

b) proibição de freqüentar determinados lugares;

c) domicílio determinado,

Art. 10 — Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Art. 12 — O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.

Assinaturas do AI-5.

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