Foto do disco Baile Funk Breaks, de DJ Sandrinho, Daniel Haaksman e DJ Beware.

O funk faz parte da cultura do estupro?

Giovanni Arceno
Explicando
Published in
6 min readJun 1, 2016

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Claro que sim. Resumindo, esta é a minha opinião: sim, seguramente sim. Mas demos um passo pra trás, à pergunta: o que não faz?

Embora dispense contextualização, o que me motivou a escrever este texto foi o caso da menina violentada no Rio de Janeiro por 33 rapazes, um dos crimes mais desumanos e nojentos que já fiquei sabendo sobre. A notícia se globalizou, comovendo em escalas cavalares o país, o mundo, os movimentos feministas, os machistas, a sua mãe e a minha, os veículos de comunicação, os antipetistas, o Fantástico e o Anonymous. Todos num abraço temporário se opondo à barbárie que foi este episódio lamentável de estupro coletivo.

Um acontecimento desses, além de desesperar nós outros, causa uma febre de empatia e revela a parte mais podre de nossas contradições, das vezes que vi amigos compartilhando revenge porn no Whatsapp ou vi parente falando pra esposa que era melhor ela lavar a louça do que dar a opinião, em tom de brincadeira (sem graça), e me mantive em silêncio, por exemplo. Tudo isso, quer haja desdém pelo apelido ou suspeita de exagero, é cultura do estupro, que tá na foto de perfil do coleguinha do Facebook mas dentro de casa também. Pra explicar fundamentalmente como ela [essa cultura] funciona, existem pessoas e projetos muito mais capacitados que eu, que discutem isso diariamente com determinação - Think Olga e Azmina só pra citar dois exemplos. Tem também essa matéria do Nexo, que gostei bastante e que panoramicamente talvez sirva.

Recortando um entre todos os argumentos que surgem naturalmente de um assunto em carne viva, entre homenagens lindíssimas de movimentos sociais e sugestões horrendas de castração química, surgem alguns culpados: os estupradores, o Governo do RJ, o PT, a própria vítima (imperdoável quem pense assim), Bolsonaro etc etc. Uma das acusações que mais vem ganhando força, numa tentativa disfarçada de associar mais uma vez a culpa ao estilo de vida da menina estuprada, é o funk. O funk carioca. Ele mesmo, o culpado. Condenado pelo tribunal do Facebook.

Tem até jornalista da Época pensando assim e essa chamada maldosa e infeliz da Folha de São Paulo, além de um ou outro lunático corajoso do youtube corroborando com a ideia. Isso porque este tipo de análise está comprometida com a consequência e não com a causa, o que é uma forma rigorosa mas não inteligente de olhar para um fenômeno.

Façamos o exercício: pensemos no funk, mas antes de tudo no machismo, que não são necessariamente sinônimos, mas um causa e o outro consequência.

O machismo não está na gênese da criação do funk. A sexualidade sim, embora não só ela, como vocês podem assistir no fabuloso documentário Favela Bolada, do qual vivo fazendo propaganda. No entanto, a sexualidade está subordinada, escravizada, a uma concepção machista-histórica do que ela mesma significa. Admitindo isso, o funk deixa de ser agente exclusivo da cultura do estupro e é apenas uma fração, uma célula que divide espaço dentro de um organismo maior, unido à indústria cinematográfica, à literatura, às novelas, ao futebol, às propagandas de cerveja, à indústria da moda, ao (até ele!) Kama Sutra e, chegando finalmente onde eu queria, a muitos outros gêneros da música:

“Mas que mulher indigesta / Merece um tijolo na testa.” — Noel Rosa

“Everybody trying to tell me/ That you didn’t mean me no good/ I’ve been trying, Lord, let me tell you/ Let me tell you I really did the best I could” — Led Zeppelin

“You better run for your life if you can, little girl/ Hide your head in the sand, little girl/ Catch you with another man/ That’s the end, little girl” — Beatles

“Me dê agora seu telefone, outro dia a gente se liga/ Eu quero te levar pra onde dá um frio na barriga/ Me fala a verdade…quantos anos você tem?/ Eu acho que com a sua idade/ Já dá pra brincar de fazer neném…” — Raimundos

“Antes mal acompanhada do que só/ Você precisa de um homem pra chamar de seu/ Mesmo que esse homem seja eu” — Erasmo Carlos

“Calma a sua insegurança não te leva a nada/ Eu quero ser seu homem te fazer amada/ Amar amar você até você se amar, e me amar” — Jorge e Mateus

“Fique esperto com o mundo e atento com tudo e com nada / Mulheres só querem/preferem o que as favorecem / Dinheiro e posse, te esquecem se não os tiverem” — Racionais MC’s

“Bitches ain’t shit but hoes and tricks / Lick on these nuts and suck the dick.” — Dr. Dre

Demorei três minutos e uma única busca no Google pra reunir estes trechos. Com certeza eu poderia ter encontrado outros exemplos de todos os gêneros possíveis com um pouco mais de esforço. Esses casos são muito similares ao do funk: as letras das músicas estão limitadas às ideias da sociedade, são resultados da influência dela, e naturalmente dentro de cada um destes gêneros existem discursos politizados ou não, que ferem direitos ou não. Nenhum conteúdo, por mais subversivo ou niilista que seja, está livre da influência sócio-política, porque sua existência só é possível a partir dela.

Sem precisar de vista-grossa para as frases, é nítida a figura da mulher representada com traços de insuficiência. Em todos ela está, como num estupro, impotente, submissa. Essa imagem pode estar muito mais latejante na evocação do ato sexual consumado, como em muitos exemplos de letras de funk, é verdade, mas escolhi este tema na tentativa de não discutir apenas acerca do fogo, mas da origem do incêndio. Resumir todo o ideal machista latente na sociedade a algo, àquilo, ao objetivo tal, àquela circunstancia, àquele costume ou gênero de música ou partido político é uma estratégia confortável, porém muito preguiçosa e limitada.

Sabendo que a maioria dos gêneros são machistas pois são formas de expressão social e, ancestralmente ao relacionamento da música com a sociedade existe o relacionamento entre a sociedade e seus próprios valores (neste caso, historicamente legível, valores machistas), é válido perguntar: por que o funk carioca é o único que está no alvo?

Gostaria de pensar que talvez é porque, por trabalhar intimamente com a sexualidade e o desejo, o funk está comprometido com nossos valores sobre o sexo, reproduzindo a submissão da mulher; e que a partir disso haveria uma uma crítica ferrenha e desconstrução de todos os conteúdos das músicas de todos os gêneros e produtos de entretenimento. Mas cabe pensar se não é mais um caso de miopia da sociedade a olhar para os costumes da periferia, aquilo que é desprezível e merece ser reduzido, em toda a sua história, do seu nascimento nas décadas de 70 e 80 até hoje, em “música-sacanagem” e “coisa de bandido e vagabunda”.

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