A Agilidade: campo e núcleo de atuação da ciência ágil

Hitalo Kassios Bittencourt
TOTVS Developers
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10 min readNov 21, 2023

Nas últimas três décadas, o tema da Agilidade vem ganhando destaque nas empresas brasileiras. O que era, inicialmente, um nicho exclusivo da Tecnologia da Informação (TI) cresceu, difundindo-se em diversas organizações e setores.

Diante do advento de novas tecnologias, da aceleração na troca de informações e da crescente complexidade dos problemas, os modelos tradicionais de gestão enfrentam dilemas cruciais para o sucesso dos projetos. Esses desafios abrangem desde questões técnicas, como a escassez de mão de obra qualificada, até problemas sociais, como a conciliação de uma vida saudável e harmoniosa com prazos cada vez mais curtos.

Neste cenário de expansão a agilidade tem se consolidado como um diferencial competitivo para empresas brasileiras que buscam se destacar em um ambiente de negócios dinâmico e desafiador.

Este artigo busca proporcionar uma nova perspectiva sobre o tema, centralizando as práticas ágeis como epicentro do estudo desta ciência em ascensão, ao trazer à tona questões debatidas e enraizadas na rotina dos agilistas.

Ao longo do artigo, serão abordados o campo e o núcleo da Agilidade, com enfoque nos Modelos Ágeis mais utilizados ressaltando os pontos exitosos desses modelos na construção de uma nova cultura empresarial, indicando uma mudança paradigmática no modo como as organizações brasileiras encaram a gestão de projetos. Para compreender essas definições, utilizarei o conhecimento explícito existente na área da saúde, mais precisamente os estudos voltados para a Saúde Coletiva.

Diferença entre Campo e Núcleo

Diferenciar o campo e o núcleo de atuação é uma tarefa desafiadora. Em profissões clássicas, os papéis sociais estão bem definidos, assim como seus limites e fronteiras com outras ocupações.

Campo

O conceito de campo na saúde coletiva está diretamente ligado à compreensão dos determinantes sociais da saúde. Reconhece-se, assim, que a saúde de uma população não é influenciada apenas por fatores biológicos, mas também por aspectos sociais, econômicos e culturais, gerando uma rede complexa de interações. Outro ponto importante neste conceito é a forma como a interdisciplinaridade é estruturada, trazendo à cena questões sociais e psicológicas.

Utilizando este primeiro aporte e, ao direcionar nosso olhar para o campo da agilidade, identificamos as organizações como ponto inicial de nossa análise. Uma organização tem como princípio atingir objetivos específicos por meio da coordenação de recursos humanos, financeiros e materiais. Seu propósito pode variar desde a geração de lucro até a entrega de serviços sociais, sendo moldada por influências internas e externas.

A interconexão entre os campos da Saúde Coletiva e da Agilidade revela uma convergência de abordagens multidisciplinares que levam à otimização tanto da saúde da população quanto do funcionamento eficaz das organizações.

No âmbito da saúde coletiva, a compreensão dos determinantes sociais destaca a complexidade destes, indo além dos fatores biológicos e incorporando questões sociais, econômicas e culturais, contribuindo para uma visão holística.

De forma semelhante, dentro da agilidade, quando dirigimos nosso olhar para as empresas, percebemos a mesma sinergia. Uma organização é um sistema de fatores internos e externos, necessitando de uma coordenação de inúmeros recursos, alinhando-se à interdisciplinaridade proposta na saúde coletiva.

Desta forma, o campo para a agilidade é o local onde trabalharemos a gestão da inovação, através do modelo de criação do conhecimento organizacional. Para que isso ocorra, é importante um ambiente criativo, onde a agilidade é o catalisador de processos, auxiliando a organização a se adaptar rapidamente às mudanças, aprendendo com experiências passadas e promovendo inovações contínuas.

De maneira abrangente, o campo está para a agilidade como a agilidade está para o campo, onde ambas crescerão rapidamente para responder às mudanças externas, incorporando a aprendizagem nos processos de trabalho e gerando uma transição entre o conhecimento tácito e o conhecimento explícito.

Nota: Interação do campo com o ambiente externo e os núcleos formados dentro das organizações.

Núcleo

O núcleo na saúde coletiva pode ser associado às práticas e estratégias centrais que buscam promover a saúde em comunidades. A abordagem centrada no núcleo destaca a importância da integralidade e a participação dos sujeitos na constituição de políticas e ações de saúde.

Dentro deste contexto, o Programa de Saúde da Família (PSF) no Brasil, posteriormente ampliado para a Estratégia Saúde da Família (ESF), exemplifica a implementação do núcleo na saúde coletiva. Essa estratégia prioriza a Atenção Básica (AB), a promoção da saúde e a participação da comunidade, reconhecendo a importância de considerar o contexto social e cultural na prestação de cuidados.

Da mesma forma, na agilidade, o núcleo é o epicentro onde colaboradores, independentemente de seu papel, se unem para criar soluções eficientes e compartilhar conhecimentos. O princípio japonês de “Seiryoku Zenyo” destaca a busca pelo máximo benefício com o mínimo esforço, alinhando-se à otimização de recursos.

Ambos os núcleos compartilham a busca por resultados significativos sem desperdício desnecessário de energia, seja na prestação de cuidados de saúde ou na eficiência dos processos cotidianos.

Portanto, ao explorar o núcleo na agilidade, é fundamental reconhecer não apenas as práticas e métodos específicos, mas também a mentalidade e cultura que sustentam o processo. Empresas ágeis bem-sucedidas entendem que o núcleo é o epicentro da transformação e inovação, onde a colaboração, a eficiência e a adaptabilidade se entrelaçam para impulsionar a empresa em direção a objetivos significativos em um ambiente de negócios em constante evolução.

O emprego de Modelos Ágeis, como o Scrum e o Kanban, reflete a compreensão de que a agilidade não é apenas uma ferramenta de gestão, mas uma filosofia que permeia toda a organização. Nesse contexto, equipes multifuncionais se reúnem em sprints ou ciclos regulares, envolvendo-se em processos iterativos e incrementais para desenvolver soluções que não só atendam, mas excedam as expectativas dos clientes.

Nota: Interação do núcleos organizacionais com o seu campo.

Modelos Ágeis

Os modelos ágeis representam uma revolução nas práticas de desenvolvimento de software e gestão de projetos, proporcionando uma abordagem dinâmica e adaptativa para enfrentar os desafios do mundo empresarial contemporâneo.

Para compreender os modelos ágeis, é essencial estudar seus fundamentos conectando suas estruturas à gestão do conhecimento. No centro dessas estruturas, encontramos princípios que redefinem a maneira como o trabalho é planejado, executado e entregue. O manifesto ágil estabelece valores fundamentais entre indivíduos, processos e ferramentas. Nesse contexto, a gestão do conhecimento, conforme explicitada por Ikujiro Nonaka e Hirotaka Takeuchi, surge como elemento essencial formatando o conceito de criação do conhecimento — socialização, externalização, combinação e interação.

Scrum

O Scrum não é apenas uma estrutura para gerenciar projetos, mas uma filosofia que abraça a adaptabilidade e a melhoria contínua. Olhando de forma profunda a compreensão deste modelo torna-se evidente o alinhamento da gestão do conhecimento proposto por Takeuchi e Nonaka, especialmente no que se refere à externalização do conhecimento.

A externalização, no contexto do Scrum, ocorre em várias fases do ciclo de vida do desenvolvimento ágil. Durante às dailys, por exemplo, cada membro da equipe compartilha suas experiências e conhecimentos recentes, transformando o conhecimento tácito individual em uma compreensão coletiva. As discussões durante essas reuniões não apenas informam sobre o progresso do trabalho, mas também promovem a disseminação ativa do conhecimento entre os membros da equipe. Um ponto a ser ressaltado é que as reuniões diárias não são cerimônias de Status Report, elas necessitam da participação ativa da equipe scrum de forma crítica observando possíveis impedimento nas tarefas.

Fonte: https://www.scrum.org/resources/scrum-framework-poster

As cerimônias de revisão de sprint oferecem um palanque para a externalização sistemática do conhecimento adquirido durante o ciclo de desenvolvimento. Os membros da equipe scrum compartilham não apenas resultados atingidos no trabalho, mas também desafios enfrentados e as possíveis soluções. Essa prática não apenas consolida o conhecimento explícito, mas também estimula a externalização do conhecimento tácito, promovendo uma cultura de aprendizado coletivo.

Ao implementar o Scrum, as empresas não apenas adotam um método eficiente de gerenciamento de projetos, mas também incorporam um mecanismo poderoso de fortalecimento da equipe impulsionando a criação do conhecimento organizacional adaptativo e contínuo.

Kanban

O Kanban, oferece uma abordagem única para a gestão ágil, com ênfase na visualização do fluxo de trabalho oferecendo às equipes uma visão clara e em tempo real do status de cada tarefa. Isso não apenas facilita a identificação de gargalos, mas também serve como um mecanismo eficaz para a combinação de conhecimento.

A visualização do trabalho cria oportunidades para que a equipe se reúna, compartilhe perspectivas e troque informações sobre a melhor maneira de avançar. Para deixar claro, o Kanban tem seu foco nas entregas contínuas, como uma esteira de produção. Diferente do Scrum que trabalha com tempo determinado e pausa nas operações para reabastecimento, o Kanban o faz de forma orgânica e diária, fortalecendo a transparência em cada processo.

Fonte:chttps://www.totvs.com/blog/negocios/kanban/#:~:text=O%20termo%20%E2%80%9CKanban%E2%80%9D%20%C3%A9%20de,ele%20se%20move%20pelo%20processo.

A combinação de conhecimento no contexto do Kanban não é apenas uma consequência orgânica de visualização do trabalho, mas também uma prática deliberada durante as revisões do board. Durante estas revisões, a equipe não apenas atualiza o status das tarefas, mas compartilha experiências e conhecimentos relevantes. Esse processo não só fortalece a compreensão coletiva do trabalho em andamento, mas também promove a combinação ativa do conhecimento sobre melhores práticas, abordagens alternativas e soluções criativas para desafios específicos.

Ao integrar a visualização do trabalho com a combinação ativa de conhecimento, o Kanban não apenas otimiza a eficiência operacional, mas também cria um ambiente propício para a aprendizagem contínua. A gestão do conhecimento, nesse contexto, torna-se um componente intrínseco da prática ágil.

Onde encaixa-se o agilista neste contexto

O Agilista atua como o arquiteto do campo ágil, criando um ambiente para internalização do conhecimento, Ele molda a cultura organizacional, incentivando a colaboração e a busca por aprendizado contínuo. Ao estabelecer esse campo fértil, o agilista prepara o terreno para que o núcleo, representado pela equipe ágil, floresça em termos de internalização do conhecimento.

A internalização do conhecimento, conforme definida por Nonaka e Takeuchi, é um ciclo contínuo que envolve a assimilação do conhecimento explícito e tácito. Nas práticas ágeis, o agilista desempenha um papel vital nesse processo.

Nota: Agilista apoiando institucionalmente toda a organização.

Durante as retrospectivas do Scrum, por exemplo, o agilista facilita não apenas a reflexão da equipe sobre o que foi alcançado e como pode melhorar, mas também orienta a internalização dessas lições aprendidas. Ele atua como um catalisador para transformar as experiências individuais em aprendizados coletivos, promovendo a adaptação contínua e o aprimoramento do processo nas iterações seguintes

O agilista, portanto, não é apenas um líder de equipe ou facilitador de processos; ele é um guardião do ciclo de internalização do conhecimento. Sua habilidade em orientar a equipe na reflexão, aprendizado e adaptação contínua contribui significativamente para a construção de uma cultura organizacional ágil. Ao inspirar a internalização do conhecimento, o agilista desempenha um papel central na promoção da resiliência organizacional e no cultivo de uma mentalidade de inovação e evolução constante.

Conclusão

A ascensão da Agilidade como campo e núcleo de atuação na ciência organizacional brasileira reflete a necessidade urgente de adaptação e inovação em um ambiente de negócios dinâmico. O reconhecimento da interconexão entre os campos da Saúde Coletiva e da Agilidade destaca a convergência de abordagens multidisciplinares, apontando para a otimização tanto da saúde organizacional quanto da eficácia das práticas ágeis.

A analogia do campo e núcleo na Saúde Coletiva encontra eco na Agilidade, onde o campo representa a gestão e inovação, impulsionado pelo modelo de criação do conhecimento organizacional, e o núcleo representa o epicentro de práticas eficientes, colaboração e compartilhamento de conhecimento.

A análise dos Modelos Ágeis, como Scrum e Kanban, revela não apenas abordagens metodológicas, mas filosofias que permeiam toda a organização. A gestão do conhecimento emerge como um elemento vital, conectando as práticas ágeis à criação contínua de conhecimento organizacional.

O papel do agilista como arquiteto do campo ágil e guardião do ciclo de internalização do conhecimento destaca sua importância na construção de uma cultura organizacional ágil. Sua habilidade em orientar a reflexão, aprendizado e adaptação contínua contribui para a resiliência organizacional, promovendo uma mentalidade de inovação e evolução constante.

Assim, a Agilidade transcende os limites da TI, tornando-se um diferencial competitivo essencial para as empresas brasileiras enfrentarem os desafios mercadológicos, econômicos e sociais contemporâneos. A busca por resultados significativos, a eficiência operacional e a aprendizagem contínua são fundamentais para prosperar em um ambiente de negócios em constante evolução.

Referências bibliográficas

Nonaka, I., & Takeuchi, H. (1995). The Knowledge-Creating Company: How Japanese Companies Create the Dynamics of Innovation. Oxford University Press.

Schwaber, K., & Sutherland, J. (2017). The Scrum Guide. Scrum.Org.

Anderson, D. J. (2010). Kanban: Successful Evolutionary Change for Your Technology Business. Blue Hole Press.

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Plata, C. Castellanos. (2006). “Determinantes Sociais da Saúde e a Teoria Social: Uma Articulação Necessária.”

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Morin, Edgar. (1990). “Introdução ao Pensamento Complexo.”

Freire, Paulo. (1968). “Pedagogia do Oprimido.”

Campos, Gastão Wagner de Sousa. (2012). “A Saúde como Direito: Perspectivas Teóricas e Práticas na Saúde Coletiva Brasileira.”

Fals Borda, Orlando. (2002). “Pesquisa Participante: Memórias e Reflexões.”

Agradecimentos aos revisores:

Fabio Chiocca
https://www.linkedin.com/in/fabiochiocca/

Luana Machado
https://www.linkedin.com/in/luana-barbosa-machado-aa7a15134/

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Hitalo Kassios Bittencourt
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