A análise do subjetivismo e egoísmo éticos sob o ponto de vista do universalismo ético de Peter Singer

cauê
Trabalhos de Filosofia
12 min readJan 19, 2024

Texto baseado no livro “Ética prática” (2018) de Peter Singer

Introdução

No primeiro capítulo de seu livro Ética prática (2018), intitulado Sobre a ética, o filósofo Peter Singer (1946-) inicia uma discussão sobre o tema da natureza da ética que se divide em dois pólos opostos: o que a ética não é e o que ela é. A primeira incursão filosófica do autor, nega certas suposições sobre a ética e considera o que se entende, pode-se dizer, cultural e socialmente por ética. Longe de reafirmar tal entendimento, ele o critica em cinco partes. Para ele, a ética não se debruça sobre o tema do sexo e nem é inpraticável. Bem como a ética não se fundamenta na religião, não é relativista e tampouco é subjetiva.

Ao passo que ele faz a sua crítica, ele se aproxima de filósofos e moralistas da antiguidade para embasar a sua tese, a saber, a defesa do universalismo ético. Como veremos, o fundamento de uma ética universal rompe com os juízos morais particulares. Quer dizer, “(…) a ética aponta o curso de ação que acarretará as melhores consequências, no saldo geral, para todos os afetados” (SINGER, 2018, p. 34). Quando se trata de gostos pessoais — ou subjetivos -, as opiniões não vão visar um grupo maior, como a sociedade. Nesse sentido, Singer dirá que essa concepção, chamada de subjetivismo ético, não está no domínio da eticidade. Em contraposição a Singer, o filósofo estadunidense James Rachels (1941–2003) afirma, em um primeiro momento, que o subjetivismo valoriza a diversidade opinativa e fomenta a tolerância sobre visões divergentes, sinalizando um ponto positivo. E em um raciocínio similar, a perspectiva do egoísmo racional e ético, de acordo com Kurt Baier (1917–2010), defende que mostrar que algo satisfaz os próprios interesses é uma justificativa racional para fazê-lo. Vê-se, assim, que o subjetivismo e o egoísmo racional e ético divergem com o universalismo ético de Singer. É possível resolver esse impasse de um ponto de vista universalista?

Antes de analisar os argumentos de Rachels e Baier, é preciso recorrer ao que se entende por universalismo ético, sobretudo na concepção de nosso autor. A premissa básica de Singer para a defesa de seu argumento é sobre o entendimento da natureza ética. Como o filósofo constrói tal premissa? Podemos dividir sua premissa em três passos argumentativos: em primeiro lugar, a exposição de um problema sobre padrões éticos. Em segundo lugar, sobre a justificativa de modos de agir e, por fim, a passagem ao utilitarismo “preferencial”, como ele denomina em seu texto. Feito esse percurso, analisaremos os embates possíveis entre o subjetivismo e o egoísmo sob o universalismo ético de Singer, inclusive com a sua análise sobre o primeiro, previamente considerado como não-ético na primeira parte de seu texto.

O universalismo ético

Para o entendimento de uma ética universal, Singer primeiro busca analisar os padrões éticos. Ele sugere uma situação em que se estuda e, portanto, se conhece, os costumes de vários povos (ibid., p. 30). Diante desse conhecimento, digamos, antropológico, podemos dividir os costumes de tais povos entre aqueles que são éticos daqueles que não os são? Ele formula o procedimento que seria dado nesse caso: dividir a pesquisa em duas formas. Primeiro, aqueles que acreditam ser errado mentir, roubar e trapacear e, assim, não fazem essas coisas, sendo esses os éticos. Segundo, aqueles que não possuem interditos uma vez que não possuem tais convicções, sendo esses os não-éticos. Singer percebe que, nesse procedimento, há duas questões que se misturam. Ao determinar aqueles que são ou não éticos, o fazemos a partir de nossos princípios do que achamos e do que não achamos ser ético, como uma espécie de projeção sobre esses povos. Ademais, viver sob alguns padrões éticos e viver à margem de qualquer padrão ético também são coisas a se considerar. Isso porque pode ser que roubar e trapacear não seja um padrão ético errôneo para um determinado povo, logo, eles “Não estão vivendo de acordo com padrões éticos convencionais, mas podem estar vivendo de acordo com outros tipos de padrões éticos” (ibid., p. 30). Qual a conclusão que se segue desse caso? A de que existem padrões éticos não convencionais, i.e., padrões que destoam de um padrão ético geral, e que mesmo assim são éticos enquanto aqueles que os seguem acreditarem neles.

Além disso, viver em um padrão ético é acreditar que seu modo de agir é correto, de dar uma justificativa para seu modo de agir, de defendê-lo. Até podemos, de acordo com Singer, não acreditar nas justificativas de um certo modo de agir, mas se há tentativa de se justificar, há uma conduta ética. Quando não há nenhuma justificativa para o que se faz, então entendemos que não há nenhuma conduta ética. As premissas apontadas por Singer são relevantes para entender a conclusão em torno da ideia de justificação de uma conduta. Isso porque se reconheceu que existem mais de um padrão ético, e somado a isso, justificativas e princípios próprios e uma relação entre um padrão ético de um tipo e um padrão ético de outro.

Contudo, qualquer justificativa é aceita? Para Singer, não, e aqui ele se orienta para a sua tese. A justificativa deve ser de certo tipo e não deve ser uma justificativa do tipo pessoal, que se baseia em um interesse particular, pois não serviria como uma boa justificativa se for elaborada de forma mais ampla (ibid., p. 31). Se a tese de Singer é o universalismo, então é de se esperar que uma justificativa só será ética quando projetada para um público maior que o indivíduo. Singer, então, traz para seu texto alguns moralistas e filósofos que já tinham uma concepção universalista da ética. Por exemplo, Singer menciona a fórmula do filósofo moderno Immanuel Kant (1724–1804), “Aja somente segundo a máxima através da qual você possa desejar que, ao mesmo tempo, ela se transforme numa lei universal” (ibid., p. 31). Tal filósofo e os outros citados por ele, concordam que a justificativa de um princípio ético não pode se dar em termos parciais ou locais. A ética vai além de uma relação benéfica ou maléfica entre “eu” e “você”. Ela consulta uma lei universal.

Ademais, Singer vê no aspecto universal da ética uma abertura para uma teoria utilitarista da ética. Mas o que é utilitarismo? De acordo com Singer, ele advém de uma outra teoria, a saber, o consequencialismo. A concepção consequencialista não parte de regras morais, mas de objetivos mediante ações que favoreçam esses objetivos. Sendo assim, o utilitarista, principalmente o clássico, também visa seus objetivos. Do ponto de vista utilitarista, uma ação ética é aquela que produz mais felicidade e menos sofrimento (ibid., p. 21). Destacamos o utilitarismo clássico, por vezes chamado de hedonista por Singer (ibid., p. 35), para compararmos ao utilitarismo que Singer sugere: o utilitarismo preferencial. Tal vertente, segundo ele, “(…) defende que devemos fazer aquilo que, no saldo geral, favorece as preferências dos que são afetados” (ibid., p. 35). Para ele, o que chamamos de preferências pessoais — nossos desejos, necessidades e vontades — não devem, em uma postura ética, ser mais relevantes que as preferências de outrem. Deve haver um equilíbrio entre as preferências daqueles que são afetados em uma situação.

Singer afirma que, em um estágio pré-ético, o que mais importa é como uma ação pode afetar as preferências do sujeito. Mas em um estágio propriamente ético, o sujeito diante de uma situação que envolve um grupo que lhe pertence, deve levar em conta as preferências dessas pessoas — o colocar em lugar delas — e maximizar a preferência dessas pessoas. Mas há uma ressalva: reforçando que a situação comentada é muito particular, Singer aponta en passant que o cálculo de uma ação ética deve ser feito mais sobre as situações incomuns ou em situações reflexivas sobre princípios gerais que podem nos guiar no futuro (ibid., p. 35).

Como uma situação-exemplo a uma ética universal, Singer nos coloca diante da situação de um sujeito que encontra uma árvore abundante em frutas e que pensa se irá dividir ou não as frutas achadas. No exemplo, três pontos de vistas possíveis são apresentados. No primeiro caso, o sujeito argumenta que tem direito às frutas, pois foi ele quem as encontrou. No segundo caso, o sujeito alega que é justo que ele fique com as frutas, pois teve o trabalho de procurar a árvore. E, no último caso, o sujeito sustenta que todos têm igual direito à dádiva da natureza e, portanto, se vê obrigado a dividir igualmente as frutas (ibid., p. 34). Se diante desses três pontos de vista, o sujeito aderir a uma delas, sem que com isso ele justifique o porquê da adesão — sem oferecer uma razão universal de defesa -, então ele coloca sua preferência na frente da preferência dos outros. Vemos que o utilitarismo preferencial busca equilibrar os interesses individuais e coletivos e, portanto, visa o universal e é imparcial.

O embate entre uma ética universal e uma ética subjetivista e egoísta

Quando Singer discute o que a ética não é, ele afirma que ela não é uma questão de predileções ou opiniões subjetivas. Analisaremos, assim, a perspectiva de Singer sobre o subjetivismo em relação à perspectiva de Rachels sobre o tema. Singer possui uma visão negativa sobre o subjetivismo ético. Ele defende que os juízos do subjetivismo ético dependem do consenso ou do não consenso da pessoa que emite o juízo, sem se importar com o consenso de outrem (ibid., p. 27). Além disso, o subjetivismo ético seria incapaz de explicar a divergência ética. Em ideias subjetivas, as opiniões podem ser verdadeiras e, portanto, não há o que discutir.

Em seu texto Subjetivismo (2000), Rachels define o que ele entende por subjetivismo ético. Segundo ele, ela “(…) é a teoria que diz que as pessoas, ao realizarem julgamentos morais, não fazem nada além de expressar seus desejos e sentimentos pessoais” (RACHELS, 2000, p. 1). Rachels se apoia no filósofo David Hume (1711–1776) para formular seus argumentos sobre o subjetivismo, visto que Hume entende que a moral é uma questão de sentimentos pessoais (ibid., p. 2). Ao mesmo tempo, Rachels também se apoia no filósofo americano Charles L. Stevenson (1908–1979) para discutir sobre o emotivismo, que seria a versão aprimorada do subjetivismo ético (ibid., p. 7).

É preciso estabelecer as distinções que Rachels faz sobre o subjetivismo. Segundo ele, o subjetivismo passaria de um nível básico — o subjetivismo simples — a dois níveis mais refinados: o emotivismo e o “pensar bem” (think through). Nos atendo ao primeiro nível, o principal ponto nessa perspectiva é que não há fatos morais em problemas morais. O que é considerado é um fato estatístico, por exemplo, que “(…) mais de um milhão de abortos têm sido realizados anualmente nos Estados Unidos desde 1973” (ibid., p. 1). Mas se o dado mencionado é bom ou ruim, isso não seria um fato. Bem como o que importa na ética subjetivista são as pessoas e suas expressões sentimentais, não o universal. Sendo assim, não há fatos e não há ninguém certo ou errado. Os relatos de atitudes subjetivas não se contradizem. Por exemplo, segundo Rachels, “(…) quando o sr. Bush diz que ‘o aborto é imoral’, isso quer dizer o mesmo que ‘Eu (Bush) desaprovo o aborto’ — uma declaração de fato sobre sua atitude” (ibid., p. 9). Isso é exatamente o que Singer aponta quando critica uma ideia subjetivista da ética: não haveria, então, divergência ética porque não haveria o que discutir, como vimos no segundo tópico deste texto.

Mas o que estaria em jogo para definir um ponto de vista como um fato? De acordo com Singer, é preciso uma defesa ética que percorra algum tipo de argumento moral. Para tal, como afirma Singer,

“A questão do papel que a razão pode representar na ética é o ponto crucial colocado pela afirmação de que a ética é subjetiva. Para fundamentar muito bem a ética prática, é preciso demonstrar que o raciocínio ético é possível. Negar a existência de fatos éticos objetivos não implica a rejeição do raciocínio ético. (SINGER, 2018, p. 29).

Em contrapartida de Singer, Rachels argumenta que a razão “(…) por si só nunca pode nos dizer o que fazer. A razão meramente nos informa da natureza e das consequências de nossas ações, e das relações lógicas entre proposições” (RACHELS, 2000, p. 2). Não sendo a razão o instrumento deliberador de ações e julgamentos morais, cabe então mirar nas emoções. Tal posição subjetiva fomentaria, inclusive, a tolerância entre as pessoas uma vez que se considera que nenhum juízo moral é verdadeiro ou falso e cada opinião é válida e indiscutível. Se Singer vê um ponto negativo na impossibilidade de discordância sob esse ponto de vista, Rachels aponta o lado positivo da diversidade opinativa. O subjetivista não tem o direito de impor sua perspectiva moral sobre outro porque pouco importa a discussão racional e a ambição universal.

Um outro ponto contrário a um ponto de vista universal e racional é a compreensão da linguagem moral feita por um subjetivista. Nesse aspecto, a linguagem moral seria “(…) um meio de influenciar o comportamento das pessoas; se alguém diz ‘você não deveria fazer isso’, essa pessoa está tentando impedir a outra de fazer isso” (ibid, p. 8). Ora, o subjetivismo esvazia o debate racional e o substitui pelo convencimento a partir da manipulação dos sentimentos.

Em relação ao egoísmo racional e ético, seguiremos com a definição deste pelo Baier em seu texto Egoísmo (2000). O principal ponto do egoísmo racional e do egoísmo ético é que seria sempre racional buscar o bem particular em detrimento do bem coletivo. Nas palavras de Baier, elas defendem que “(…) que promover o próprio bem maior é sempre em conformidade com a razão ou a moralidade” (ibid., p. 6). Baier, então, aponta duas premissas: a primeira premissa afirma que a busca de uma justificativa para uma ação será mais bem-vinda quando ela atender nosso interesse pessoal, visto que nossa felicidade constitui o nosso maior bem. A segunda premissa se apoia no racionalismo ético, “(…) a doutrina segundo a qual para que uma obrigação ou recomendação moral seja sólida ou aceitável, seu cumprimento deve estar em conformidade com a razão” (ibid., p. 7). É partindo do racionalismo ético que se chega ao egoísmo ético, que pensa a validade das obrigações morais sob o ponto de vista do bem individual, entendido como bem maior. Apesar do argumento ser válido, as premissas são insuficientes se pensarmos como Singer, o qual afirma, como vimos, que justificativas morais em termos de interesses próprios não são suficientes.

O egoísmo ético está em conflito com a — denominada por Baier — “regulação ética de conflitos” (que implica um elemento de imparcialidade e universalidade). Tal regulação é a base da resolução dos conflitos interpessoais em determinada situação ética. Ou seja, se em uma dada situação, o interesse de um ou de vários podem ser contrários ao interesse de uma outra pessoa, é preciso que haja uma coesão, no qual um ou outros recuam em favor de um bem comum. O egoísmo ético, ao contrário de uma perspectiva universalista, não cederá em favor de um interesse de outrem.

Vê-se, portanto, que o impasse emerge porque subjetivismo e egoísmo fundamentam suas premissas no indivíduo. Além disso, a primeira nega o uso da razão na moral, e a segunda submete-a à defesa dos interesses pessoais.

Se a razão fosse fundamentada em um bem comum, como Singer propõe, então o indivíduo seria colocado em duas relações: como aquele que pode debater racionalmente e que participa coletivamente de uma situação. Desse modo, os fatos morais seriam restabelecidos em detrimento do conjunto, e não se destacariam apenas as expressões sentimentais e a felicidade não seria apenas o objetivo inegociável de um, mas de todos.

Conclusão

O universalismo ético opera nos problemas éticos como regulador das adversidades sob o propósito do bem comum conjugado com o uso da razão. Esse texto observou que a teoria universalista de Singer torna a ética praticável, no sentido de possibilitar o debate entre opiniões divergentes e a autoridade da justificativa racional e imparcial.

Constatamos que o entendimento do problema dos padrões éticos, dos modos de agir e do utilitarismo preferencial que Singer expõe são essenciais para a compreensão do universalismo ético. Então, dedicamo-nos a análise dessas premissas para confrontarmo-nos com o subjetivismo ético e o egoísmo racional e ético.

Seguiu-se, então, que a premissa básica do egoísmo ético diz respeito a buscar aquilo que dá maior felicidade a um indivíduo e que isso seria racional. Enquanto que, para o subjetivismo, não existem fatos morais e a razão não é um instrumento para pensar moralmente, sendo que só existiriam expressões sentimentais, e não julgamentos morais.

Finalmente, o desenvolvimento construído nesse texto pôde chegar ao impasse entre as teorias éticas. Analisamos que o universalismo ético e a razão poderiam resolver os problemas que Singer viu no subjetivismo ético e egoísmo racional e ético: que a ética seria mera questão do gosto subjetivo ou objetivada sob uma felicidade particular.

Referências bibliográficas

BAIER, K. Egoísmo. In.: : SINGER, P. (Org.). A Companion to Ethics. Maiden, Estados Unidos da América: Blackwell, 2000. pp. 197–204.

RACHELS, J. Subjetivismo. In.: SINGER, P. (Org.). A Companion to Ethics. Maiden, Estados Unidos da América: Blackwell, 2000. pp. 432–441.

SINGER, P. Ética prática. Ed. Martins Fontes. São Paulo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2018.

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