A utilidade das palavras segundo De magistro

cauê
Trabalhos de Filosofia
7 min readJan 19, 2024

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Texto sobre o livro “De magistro” de Aurélio Agostinho

Introdução

No livro-diálogo De magistro (2023), Aurélio Agostinho (354–430) inicia uma discussão sobre o tema da linguagem e gramática que parte de dois princípios: um princípio antigramatical — sobretudo no tocante a gramática romana de sua época — e um princípio contra a autoridade da linguagem. Em diálogo com seu filho Adeodato, trava-se um jogo entre palavras que desafiam a sua suposta rigidez.

No âmago da fala, Agostinho indagava ao filho: “Que te parece que queremos fazer ao falar?” (A. 2023, p. 1) e o jogo com seu filho começava. No primeiro momento do diálogo, pai e filho se ancoram na ideia de que falar é ensinar e fala-se através de sinais. Ora, e o que são os sinais? Os sinais são as palavras, usadas quando falamos, e os gestos, como, por exemplo, quando apontamos com o dedo para algo. Os sinais possuem a função de indicar algo. Esse algo, nos termos agostinianos, é “esse mesmo não sei que único (…)” (ibid., p. 7) ou, como ele denomina, “significável”: as coisas que podem ser significadas pelos sinais e não são sinais (ibid., p. 12). Em outras palavras, os sinais indicam as coisas mesmas pela qual os sinais se referem, o que corresponde ao seu sentido do latim “significare”, a saber, fazer sinais (ibid., p. 10). Sinaliza-se, no entanto, por meio de palavras e por meio de gestos, os quais Agostinho sugere o exemplo dos histriões que se apresentam nos teatros sem o uso de palavras e sob gestos pantomímicos. É importante notar que a sinalização, para fazer jus ao propósito de Agostinho, não deve esbarrar em outro sinal. Por exemplo, quando Adeodato, no diálogo, busca outra palavra para expressar o significado de “se” (ibid., p. 5).

Em um segundo momento, Agostinho sugere a reflexão sobre as coisas que podem ser mostradas por si mesmas sem necessidade de sinais. No caso delas, se alguém perguntasse o que é alguma coisa, a resposta seria fazer tal coisa, sem dizer uma palavra ou um gesto, como um mise-en-scène. Agostinho e Adeodato chegam a mencionar que andar, correr, caminhar e falar são exemplos de gestos em ato. Mas Adeodato afirma que apenas o falar e o ensinar podem ser mostrados quando perguntados o que são. O caminhar, segundo ele, poderia levar ao engano do interrogador quando, aquele que responde para mostrar o que é caminhar, caminhar uma certa duração e levar o interrogador a acreditar que o caminhar se dá apenas naquela duração, nem mais ou menos (ibid., p. 34). Agostinho responde a isso ao aludir a inteligência do observador que pode compreender por completo uma demonstração e ambos concordam que existem coisas que podem ser demonstradas sem sinais.

Ampliando os termos gramaticais, pai e filho questionam se “palavra”, “nome” e “pronome” são tão fragmentadas como podem parecer. Em definição, “nome” é aquilo com que se chama cada coisa, “palavra” [verdebum] significa tudo aquilo que é proferido com voz articulada em vista de um significado e que verbera no ouvido; “pronome” é usado para substituir o nome de maneira menos exata do que o nome (ibid., pp. 11–17). Mas os termos não se limitam às suas definições, sendo assim, Agostinho assevera que “nome” também é uma “palavra”, uma vez que ela igualmente possui a mesma função que a segunda. Logo, “nome” e “palavra” significam-se reciprocamente (ibid., p. 16). Em relação aos pronomes, Agostinho surpreende Adeodato ao mostrar como as conjunções que ele cita, “e” [et], “mas” [at], “senão” [atque], são nomes quando Agostinho os refere posteriormente como “todas essas…”. Ou seja, Agostinho trata das conjunções a partir de pronomes e confirma que mesmo elas são nomes (ibid., p. 17). Agostinho quer provar a Adeodato que o uso da razão sobre a gramática dispensa a necessidade de uma autoridade que tenha “conhecimento supremo das palavras”. Se se pergunta a um grego como ele nomeia uma certa classe gramatical, se interroga retamente uma vez que tal classe gramatical também é nome: “(…) que necessidade há de procurarmos alguém que dê suporte para nosso entendimento?” (ibid., p. 20).

Após desconstruir certo uso de termos gramaticais, o próximo passo é ir além desse ambiente estritamente gramatical. Isso porque, se as palavras nada mais são do que sinais, resta-nos perguntar sobre a utilidade das palavras, visto que elas teriam um valor secundário, como disse Adeodato ao lembrar da regra em que “tudo o que existe devido a outra coisa é inferior àquilo devido ao qual existe” (ibid., p. 32). E a preocupação de Agostinho, como veremos, é sobre o conhecimento das coisas.

A utilidade das palavras: sobre o conhecimento

Agostinho faz uma ode ao conhecimento das coisas mais do que uma ode ao conhecimento das palavras. No início do diálogo, Agostinho evocava a relação entre memória, fala e coisa — quando a fala é um exercício da recordação porque, com cada palavra pensada ou emitida, vem à mente as coisas das quais as palavras são sinais através da memória (ibid., p.. 5). Tal relação, se bem analisada, já sinaliza um dado importante que só ao final do texto será tratado: o conhecimento prévio é a condição de existência e reconhecimento do sinal.

Tal dado gera uma reflexão importante para a educação. Pois comumente se entende que o ensinamento do mestre ao aluno é um momento de aprender coisas novas a partir das palavras evocadas pelo primeiro. O que é exatamente o que Agostinho questiona. Será? Existe uma ideia em Agostinho da qual a disciplina inspira a alma que já teria esses conhecimentos, mesmos os conhecimentos miseráveis. Em paralelo, a presença desses conhecimentos nos lembra da teoria da reminiscência de Platão, que influenciou Agostinho.

Em uma passagem do texto, Agostinho fala sobre duas situações em que o sinal (ou a palavra) não ensina ou não se aprende nada por via dele. No primeiro caso, o sinal mostra uma coisa que eu não sei o que é e, portanto, o sinal nada ensina. No outro caso, o sinal me mostra uma coisa que eu já sei e, portanto, nada aprendo por intermédio dele. Agostinho, então, cita uma frase do personagem bíblico Daniel (3: 94) para demonstrar que a palavra não mostra a coisa da qual ela é sinal. A frase “Seus barretes não foram atingidos” (ibid., p. 38) não mostra o que são “cobertores de cabeça” e o que é “cabeça”, sendo que Agostinho conhecia essas coisas antes quando foram vistas por ele. Isso quer dizer que os vocábulos em questão já apontavam para coisas conhecidas uma vez que já foram vistas. Em resumo, são três passos do conhecimento, que se dá entre o sinal e a coisa: ao ouvir a palavra “cabeça”, tem-se um som. A palavra é apenas um som. Depois ela se torna sinal quando quem escuta se dá conta de que coisa ela é sinal. E esta coisa, por sua vez, só é percebida como coisa apontada uma vez que fora vista anteriormente (ibid., p. 38).

No ensino ou em uma conversa, não serão as palavras que vão ensinar. Nem haverá aprendizado através delas. O que se aprende com a palavra é a significação oculta no som que escutamos através da coisa significada que já nos é conhecida. As palavras-sinais nos advertem a buscar as coisas (ibid., p. 39). Por um lado, buscamos as coisas sensíveis ou carnais ao passo que já vimos certas coisas ou as relembramos como imagens impressas na memória como documentos (ibid., p. 41–42). Por outro lado, buscamos as coisas inteligíveis, que são as coisas que aprendemos com a razão, no diálogo interior, com Deus (ibid., p. 42). Só há como entender uma palavra quando se sabe o que ela significa. Portanto, primeiro se conhece as coisas e depois se é recordado delas pelas palavras. “(…) se sabemos, antes somos recordados do que ensinados; se não sabemos, nem sequer somos recordados, mas talvez advertidos a procurar” (ibid., p. 40).

Quanto ao mestre, as palavras que ele usa não revelam seu pensamento, diz Agostinho. Ele explica que, na relação deste com seu discípulo, será apenas quando o último contemplar internamente as disciplinas que o mestre o passar, via palavras, que ele aprenderá algo, como a virtude e a sabedoria (que são coisas inteligíveis ou espirituais). E esse momento é justamente o intervalo que Agostinho aponta entre o momento da fala do mestre e o momento da cognição. Não se aprende o que o mestre pensa, aprende-se sozinho, na contemplação interior. Para ser precisamente agostiniano, entende-se que o único mestre é Deus, que usa seus homens, como os professores, para nos auxiliar na educação com sinais externos.

Conclusão

Percebe-se, então, que Agostinho não descarta as palavras ou as entende como inúteis. Pelo contrário, o filósofo destaca que a utilidade das palavras é ser uma ferramenta para o ensino. Para ele, é insustentável pensar que a educação seja apenas uma questão verbal e fechada no domínio das palavras: é preciso se colocar em meditação para “fazer aparecer” a ciência que já está em nós. Agostinho almeja esmiuçar o modo como entendemos o mundo nos colocando em confronto com a principal diferença estabelecida em seu texto: a diferença entre palavra e a coisa. A diferença é posta para que se entenda a palavra, ou sinal, como uma representação da coisa.

Referências bibliográficas

AGOSTINHO, Aurélio. De magistro. Trad. A. Ricci e revisão de Moacyr Novaes. 2023.

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