Caso Catarina: duas histórias

cauê
Trabalhos de Filosofia
11 min readDec 15, 2022

Duas histórias sobre o caso de Catarina (Estudos sobre a histeria de Freud e Breuer)

História da doença

“A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.”

(ANDRADE, 1–3, p. 29, 2015).

Essa é a história de uma jovem menina cuja vida sexual foi desmistificada através de outrem. Como imaginar que em um ambiente distante do meio burguês e montanhoso poderia ser palco de acontecimentos terríveis para alguém? Catarina nos dirá: ela era uma garota que no século XIX viveu nos Alpes Tauern (em alemão, Hohe Tauern) com a sua família e que insuflou o seu contorno com imagens mnemônicas de um rosto incômodo. Quando tinha 14 anos de idade, Catarina e a sua família realizaram uma viagem no inverno pelo vale e pernoitaram em um alojamento. O início do pernoite foi dado por Catarina, que se sentia com sono e foi para o quarto, enquanto os outros ficaram bebendo e jogando cartas em um bar. Catarina ainda não dormia quando avistou um tio entrando no quarto, mas foi justamente ela pegar no sono que logo foi surpreendida por esse mesmo tio. “Está fazendo o quê, tio?” se queixava Catarina ao sentir o corpo dele no dela e continuou: “Por que não fica na sua cama?” O tio responde, sem ensaiar uma desculpa: “Menina sonsa, fique quietinha, você não sabe como é bom”. O que seria o bom que o tio mencionava? O que uma garota de 12 anos poderia entender com tal fala? Mas ela responde: “Bom só se for para o senhor, não deixa nem o outro dormir direito” e reage, encostando ao lado da porta, pronta escapar para o corredor até que o tio desistisse e caísse no sono. Ao fim do suspense, ela dorme até a manhã do outro dia.

Catarina não compreende o que acontecera — como poderia? — mas o corpo sente: pressão sobre os olhos e no peito invadem-na como sintomas nos dias seguintes. Não obstante, o tempo não a perdoa e os sintomas não passam; são, na verdade, revalidados.

Em um outro evento dentro de uma hospedaria, Catarina mais uma vez resistiu contra seu tio que estava embriagado. Inquieta como estava, Catarina não pode deixar de notar que seu tio também se relacionava com a sua prima, Francisca. Em uma noite que toda a família passou em um celeiro, vestindo apenas as roupas do corpo, um estalo ruidoso a fez perceber que seu tio, que estava deitado entre ela e Francisca, arrastava-se para o outro lado e que Francisca, curiosamente, acabara de deitar-se. Outro evento semelhante chamou a atenção de Catarina, que mais uma vez esteve como sombra vendo o tio e a prima em contato. Era em uma hospedaria no vilarejo de N. quando um vulto branco se traduziu em fuga: Catarina flagra o tio perto de abrir a maçaneta. Ela indaga: “Por Jesus, tio! É o senhor? Foi fazer o que aí na porta?”. O tio afirma que estava procurando algo e que tinha se enganado. Catarina não pensou muito a respeito dos eventos, mas não nega que mesmo assim eles chamavam a atenção dela de tal forma que poderia ter sentido uma angústia nessas situações.

Como vimos, o tempo não poupou Catarina. Eventos como os citados aconteceram de forma sequencial e os sintomas iniciais estiveram ritmados com eles. Falávamos de um tempo ingênuo e ilibado de alguém vivendo a sua juventude; de certa forma, também um tempo confuso. Os acontecimentos não foram revelados clara e distintamente para Catarina. Por que o tio se deitou nela quando era mais jovem? E qual a razão dos encontros dele com Francisca? A perturbação, ou confusão[1], era simples e ingênua: no primeiro evento, relutou contra o tio porque não queria perder a noite de sono e, curiosamente, o que o seu tio estava fazendo lhe parecia errado. Uma luz se acende! E se apaga imediatamente. Seguimos.

Ao ingressar na faixa dos 16 anos, Catarina estava um dia em casa quando recebeu a visita de dois homens que queriam comer algo. Catarina sabia que tinha que haver algo para eles comerem, mas seguiu o hábito da casa: quem cozinha é a Francisca. Mas Francisca não estava em casa, foi então que ela e seu primo Aloísio saíram em busca dela e em tom de humor, ele disse: “Vai ver a Francisca está com o pai!”. Os dois riram. Passando ao quarto que era do tio, notaram que a porta estava trancada. Aquela atenção típica de Catarina se acende mais uma vez. O sábio Aloísio lembra-a que tem uma janela no corredor, que possibilita a visão para dentro da casa. Sábio, mas medroso, Aloísio recusa ir até a janela e Catarina assume o desafio. Ela diz: “Seu tonto, eu vou, não tenho medo”. Catarina vai até a janela e vê, de fato, o tio em seu quarto, mas acompanhado de Francisca. O primeiro em cima da última. O tio estava deitado sobre a Francisca! Catarina então se afasta correndo da janela e, sob o consolo de um muro, sente falta de ar e é tomada de assalto pela vertigem que assola a sua cabeça, zunindo e martelando-a. Catarina, então, desmaia.

Ficou espantada, mas ainda não compreendia. A verdade ainda era temida. Os sintomas iniciais de Catarina ganham uma nova roupagem. Ela sente uma falta de ar intensa que aparece momentaneamente, como se estivesse sendo sufocada com um aperto no pescoço. Curiosamente, o estado da falta de ar aparece como que em cima dela. E segue como anteriormente: pressão sobre os olhos e aperto no peito. De tanto sentir a cabeça pesada e agitada — igualmente, de tanta vertigem — Catarina pensa que está prestes a morrer. Ou, no mínimo, desmaiar. Mas não morre, vomita, isso sim, por três dias desde a cena vista na janela.

Algum tempo se passou e Catarina decidiu contar a sua tia, esposa do tio que Catarina viu na cama com Francisca, a cena do quarto. Catarina se sentiu muito mal depois te ser prestado o papel de arauta à tia. A mensagem foi ecoada para toda a família. As crianças acabaram escutando coisas que abriram seus olhinhos inocentes e cenas desagradáveis entre tio e tia de Catarina se sucederam. Até que a tia rompe com o marido e o deixa com Francisca, agora uma mulher grávida. Ser a arauta da família foi custoso para Catarina, que sofreu represálias do tio que estava raivoso com ela. Ele dizia que Catarina era a culpada de tudo, que não devia ter contado nada para sua ex-esposa. Catarina passou a fugir do tio, pensando que ele poderia agarrá-la em algum momento que estivesse desprevenida, já que o mesmo corria atrás dela com uma mão erguida.

Catarina passa a ter uma vida regrada de momentos em que sente vertigem e que está a morrer. Não bastando isso, também sente que um rosto medonho olha para ela nesses momentos de sofrimento. Mas a quem pertenceria o rosto? Essa é a história do núcleo traumático de Catarina e dos sintomas gerados por ele.

História do tratamento

“Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.”

(ANDRADE, 10–14, p. 29, 2015).

Essa é a história de uma jovem menina cuja vida sexual foi desmistificada através de outrem. Assolada por sensações de morte iminente e falta de ar, Catarina é premiada por encontrar Freud justamente em um período tortuoso. Reconhecendo o doutor, que por sinal estava de férias na região dos Alpes Tauern (em alemão, Hohe Tauern), Catarina não perde tempo e decide comunicá-lo o seu sofrimento: “O senhor não é médico?”. Freud confirma: “Sim, sou médico. Como sabe disso?” E ela responde — e não obstante desembucha sobre a sua história de sofrimento: “O senhor assinou o livro de visitas, eu pensei que se o doutor tivesse algum tempo — acontece que sofro dos nervos e fui uma vez a um médico em L., ele me passou uma receita, mas não fiquei boa ainda.” Freud sabe que as montanhas dos Alpes Tauern não é o local ideal, e que buscava férias, mas dedica parte do seu tempo a ouvir a jovem Catarina. Da diferença do lugar, uma diferença de método: Freud opta por não usar o método hipnótico com Catarina.

As queixas que Catarina apresenta para Freud são logo traduzidos, em figura de hipótese, em ataques de angústia. Ora, Catarina dizia ao médico que sofria de uma sensação de falta de ar, estado o qual aparecia como se estivesse em cima dela. Depois senti pressão sobre os olhos e aperto no peito. Também sente a cabeça pesada e em constante sacode que prefiguram a morte para a jovem, mas ela não morre. Nem consegue caminhar, porque pensa que alguém poderia estar por trás dela pronto a agarrá-la. Freud conclui: é um ataque histérico preenchido pela angústia. Como não poderia sê-lo? Freud pergunta para Catarina se ela pensa em alguma coisa ou vê algo a sua frente. A resposta da Catarina é afirmativa: sim, ela vê algo. Na verdade, vê um rosto. Um rosto medonho que olha para ela de um jeito terrível. Mas poderia ela reconhecer esse rosto na realidade? É a pergunta que Freud faz e é interrogação que perdura, porque Catarina diz não se lembrar de quem é o rosto. Mas a jovem reafirma seu contrato com a memória e afirma que lembra, isso sim, de quando teve o ataque pela primeira vez: “A primeira vez foi há dois anos, quando eu ainda estava com a tia na outra montanha, antes o alojamento dela ficava lá, estamos aqui há um ano e meio, mas os ataques sempre retornam.” Contudo, para a inquietude de Freud, não lembra de onde vieram os ataques.

Freud recorda que identificou com certa frequência a angústia de mulheres jovens como uma consequência da aversão que toma conta de um espírito virginal propriamente ao momento em que o universo da sexualidade dá de cara para elas. É nesse sentido que ele se arrisca e propõe, em forma de pergunta, que talvez alguma coisa que ela passou tenha desencadeado um sentimento de perturbação, o qual ela preferiria não ter visto. E Catarina, como que pega de surpresa, revela que há sim uma história. Certa vez, ela estava em casa quando duas visitas apareceram e pediram comida. Mas na sua família o papel da cozinheira estava dado a Francisca, sua prima, e não a ela, e muito menos a Aloísio, seu primo. Os dois então partiram em busca da prima cozinheira. Aloísio até brinca: “Vai ver a Francisca está com o pai!” e os primos caem numa risada sem pressentimento. No caminho, os dois reparam que a porta do quarto do tio está trancada. Vejamos aí uma inquietação! Então, Aloísio nota que há uma janela pela qual pode ser visto o quarto por dentro. Após decidirem quem iria subir até a janela, ou melhor, após Aloísio ter assumido ser um primo medroso, Catarina então sobe até ela e vê o quarto. Em estado de choque, Catarina vê seu tio em cima de Francisca. Ela se afasta da janela e faz do muro seu consolo. Sente falta de ar e desmaia devido ao zunido e martelada na cabeça que sentia. Depois do susto, Catarina passou três dias acamada e vomitando. Essa é a primeira história que Catarina conta para o Freud no tratamento improvisado.

Nosso médico formula questões sobre o espanto de Catarina, assim como se ela lembra do que a impeliu ao primeiro ataque. A jovem diz não lembrar, que ficou tão assustada que se esqueceu de tudo. Mas Freud sabe que isso tem relação com uma cisão mental criado pelo afeto, cujo lado “esquecido” se refere ao estado hipnoide, que de nada tem relação com a consciência do Eu. Mas uma hipótese, nesse momento, ganha sentido para Catarina. Para Freud, e de acordo com a sintomatologia histérica e escrita pictográfica, o vômito se traduz em asco. Não seria isso o que Catarina sentiu ao ver a cena na janela? Ela confirma, mas indaga: “Mas [asco] do quê?” Freud insiste: “Não teria visto alguma coisa nua? Como estavam os dois no quarto?” Mas Catarina afirma que estava muito escuro para enxergar algo, e que os dois estavam vestidos com roupa.

Freud insiste para que Catarina continue falando sobre o que lhe ocorresse e ele reconhece que a primeira cena descrita pela jovem não seria suficiente para compreender seu sofrimento. E é a partir daí que o tratamento muda de rota, porque Catarina surpreende Freud com histórias anteriores, mas que são correlacionadas com a primeira história deflagrada pela jovem. Primeiro, Catarina conta à Freud que compartilhou com a sua tia que viu o seu marido, tio de Catarina, no quarto com Francisca. Mas a notícia apenas perturbou mais ainda Catarina, que passou a presenciar intrigas entre os tios e percebe que as crianças da família teriam escutado coisas que abriram seus olhos para temas particulares. A sua tia deixa o marido, o qual fica sozinho com Francisca, grávida. Mas o tio, descontente com a situação, persegue Catarina e a ameaça. Dizia que se ela não tivesse falado para sua ex-esposa, nada disso teria acontecido. O tio, segundo Catarina, apresentava um rosto raivoso, a seguia com o dedo erguido e dizia que ela era a culpada. Será que o rosto do tio era aquele rosto que Catarina via quando tinha os ataques? Mas Catarina dá o próximo passo na conversa com Freud: conta duas histórias que passou com seu tio. Catarina conta para Freud que, quando era mais nova, durante uma viagem de pernoite pelo vale, seu tio entrou em seu quarto e ela despertou de seu sono quando sentiu o corpo dele. Ela questionou o que ele estava fazendo: “Está fazendo o quê, tio? Por que não fica na sua cama?” e o tio responde: “Menina sonsa, fique quietinha, você não sabe como é bom.” Ela prossegue na história e conta para Freud que não sabia o que ele queria com ela, mas que se sentia perturbada e pressentiu que aquilo não parecia correto. Freud percebe, então, que Catarina não reconheceu aquele episódio como um ataque sexual e o médico já tem como norte do tratamento a premissa geral de ser um evento sexual. A segunda história não poderia ser diferente: mais um caso em que ela teve que defender-se do tio embriagado. E Catarina narra mais uma recordação quando, em uma noite em que estava deitada com o tio no meio e Francisca no outro lado, percebe que o tio se arrastava para o outro lado e Francisca havia acabado de se deitar. Como de outra vez em que viu o tio prestes a abrir a porta de uma hospedaria no vilarejo de N., sendo que ela sabia que Francisca estava no quarto adjacente ao dela. Foram eventos que chamavam a atenção de Catarina, e igualmente de Freud, que consegue desatar o nó exposto inicialmente pela jovem.

Freud percebe que a cena vista na janela, tida por ele como a descoberta, se concilia com os eventos anteriores que Catarina narrou para ele. Antes da cena da descoberta, Catarina havia ficado perturbada e sem compreender o que significava todos aqueles eventos antigos, tanto com ela quanto com a Francisca. Quando, aos 16 anos, Catarina flagrou o tio na cama com Francisca, ela pôde concluir o que era: um ato sexual. Mais do que isso, aquilo que o tio estava fazendo com Francisca era o que ele queria fazer com ela. Freud compreende, assim, que Catarina passou por um período de elaboração e incubação, sendo que foi nesse último que houve a conversão do vômito em substituto ao asco moral e psíquico. De fato, era a lembrança de Catarina sobre o evento que nutriu todos os sintomas que ela apresentava, e não o casal em si, a visão dos dois juntos. Restava, então, uma resposta a imagem do rosto que aparecia à Catarina. Freud não têm dúvidas: era o rosto do tio. E ela concorda.

A conclusão do tratamento de Freud foi a de que as experiências mais antigas da jovem Catarina eram momentos traumáticos e pertenciam ao núcleo traumático da história. Mas a cena vista na janela apenas serviu como movimento auxiliar para as últimas experiências; conciliou o conteúdo das experiências passadas que havia sido excluído da consciência do Eu. Catarina era jovem e por isso não entendia as experiências sexuais, as quais emergem tardiamente nela como recordações traumáticas. Mas ao narrar para ele a sua história, Catarina se sentiu transformada, aliviada e radiante, com um rosto insuflado de vida.

Referências bibliográficas

ANDRADE, C. D. de. Verdade. In.: Corpo. São Paulo. Ed. Companhia das letras. 2015.

BREUER, J. FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Trad. André Medina Carone. 2022.

[1] Nessa passagem, estou em concordância com a suposição de Freud sobre Catarina, a saber, que ela não reconheceu o evento como assédio e que, em resposta a Freud, afirmou que relutou contra o tio porque não queria ser perturbada durante o sono e que “aquilo não era correto” (p. 101).

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