Delírio báquico à trois: a dialética entre Heráclito, Hegel e Bataille

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Trabalhos de Filosofia
20 min readJul 1, 2023

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A ideia de um movimento na filosofia converge na resolução da passagem — progressiva ou regressiva — entre objetos opostos. Nomeada como dialética, essa se consagrou com Heráclito, fez história com Hegel e foi erotizada por Bataille. Esse artigo procura mostrar a proximidade entre os três filósofos, sobretudo no que tange ao enfrentamento face a face com a morte entre os temas hegelianos de história, reconhecimento, loucura e desejo. Além disso, busca mostrar a leitura batailliana de tais temas e apresentar a sua crítica à Hegel.

A natureza ama esconder-se

(HERÁCLITO, frag. 123).

O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto

(HEGEL, 2014, p. 41).

Este livro é o relato de um desespero

(BATAILLE, 2020a, p. 29).

Introdução: o que é a dialética

Se entendemos que a tradição filosófica catalogou os filósofos pré-socráticos como aqueles que se debruçaram sobre a phýsis (φύσις) e procuraram capturar uma arkhé (ἀρχή) que se conecte com a primeira, Heráclito de Éfeso (aprox. 540–480 a.c.) viu a captura como inviável. Isso porque, para Heráclito, a arkhé de tudo é o movimento e o movimento não se captura. Quer dizer, a natureza está em constante mudança, e a sua imagem, enquanto pensamento, acompanha a mudança. O que vemos e o que pensamos sobre ela muda a cada instante. Mas o espectador enquanto ser também muda. Seu fragmento de número 49a nos é oportuno: “Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos”. O rio muda tal qual o ser. A pergunta fundamental dos pré-socráticos, a saber, “qual é o princípio da natureza?” é respondida com a ideia de movimento, segundo Heráclito. Tudo se movimenta e as coisas são devires. Podemos pensar a mudança heraclítica como um passar entre opostos que configura a harmonia, sendo essa sinônima de conflito. Por isso, “A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; de uns, escravos, de outros, homens livres” (frag. 53). O mundo se origina a partir do fogo e continuará eternamente a existir como fogo, que se apaga e se acende. O universo se estrutura a partir da dinâmica do fogo, i.e., da mudança, e a razão humana deve segui-la. Compreender isso é compreender a sabedoria do universo, o seu lógos (λόγος). Assim, podemos atribuir a Heráclito a criação da dialética[1] e ela é tal como descrevemos o princípio de tudo: uma exposição de movimento, conflitos e opostos. A dialética entende a realidade da natureza e do humano como uma rede de conflitos que não cessa.

A filosofia de Heráclito posiciona o seu leitor a ver o mundo e a si mesmo como devires incessantes que assopram qualquer ideia estática do ser. O que há de seguro na reflexão sobre o ser, é que ele é movimento e isso basta. Nesse mundo, a guerra e a discórdia são os elementos vitais e necessários que trazem harmonia e justiça. A guerra, a luta e a oposição são aspectos absolutamente positivos para Heráclito e imperam sobre a vida. Por isso, “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (frag. 8). A guerra altera cenários domésticos e campos de batalha, metamorfoseia senhor em escravo e escravo em senhor. O grito de paz vem do esforço de compreender a natureza dessa realidade do lógos e, assim, adquirir o autoconhecimento e o conhecimento do mundo. Se a guerra fosse inexistente, haveria o caos e a predominância. E se alargássemos a compreensão de guerra, desde seu aspecto mais elementar e vital (como a luta entre opostos) até uma guinada histórica, chegaríamos a um outro momento da filosofia. Como dispor o tema da guerra séculos depois de Heráclito? Para essa tarefa, nos inclinamos a filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770–1831), leitor assíduo de Heráclito e seguidor de sua doutrina mobilista. Hegel potencializa a dialética e a assinala dentro da história, como conceito que expõe suas contradições para além da linguagem.

Dialética hegeliana e a história: nada acontece de uma vez por todas

Hegel difere de muitos filósofos ao colocar a dialética em paralelo com a história, assumindo que os problemas da linguagem estão simultaneamente relacionados com as contradições reais. Ou melhor, a realidade é contraditória a tal ponto que tensiona a linguagem, que se vê insuficiente para lidar com o real. Hegel foi o primeiro filósofo a pensar filosoficamente a história. Para ele, a história é uma marcha processual do Espírito (Geist) que engloba múltiplos conflitos e tensões — atemporais — que estão profundamente relacionados. A ideia de atemporal é conveniente porque mesmo uma situação determinada historicamente pode ser atualizada: o passado é reinterpretado e repercute em novos modos de agir. Nesses termos, a atemporalidade é entendida como o alargamento do tempo, da possibilidade de retroação ao passado e mobilização sintética do futuro. A consciência entra em choque com o dinamismo de fenômenos históricos, mas a história é a essência do Espírito e promoverá a reconciliação da consciência com a história rememorada. E rememorar o tempo é justamente colocar a consciência histórica em ato. Em todas as suas marchas, os sujeitos da história estão realizando o curso do Espírito como uma coletividade ambicionando de modo inconsciente o comum, em que os sujeitos estão em uma dimensão involuntária.

Uma personalidade histórica do mundo não é tão desprovida de imaginação que não possa adaptar sua ambição às circunstâncias, mas também não é muito ponderada. Está dedicada a um objetivo, aconteça o que acontecer. Por isso homens assim poderão chegar a tratar outros interesses grandes, ou até sagrados, sem muita reflexão — comportamento esse que realmente os sujeita à repreensão moral. Uma personalidade tão poderosa tem de pisar em muita flor inocente, esmagando muitas coisas em seu caminho (HEGEL, 2001, p. 82).

Dois conceitos são fundamentais para entender o que Hegel chama de história: os conceitos de totalidade e negação determinada. Quando falamos sobre a história enquanto uma atualização constante, nos referimos a totalidade histórica. Isso porque a totalidade reorganiza uma série de elementos anteriormente postos, incluindo elementos indeterminados e contingentes, e cria uma nova relação com um novo significado. A efetividade se dá a partir da rememoração. Como a arte do palimpsesto: raspar o texto originário para escrever um texto novo. Novas sintaxes, novas estruturas, novos sujeitos e predicados. E a negação determinada é o passo dado pelo Espírito ao transmitir uma síntese histórica a partir do que era um resíduo negativo. É uma operação bifrontal como a face do deus romano Jano: olhar para frente, mas também olhar para trás. Autocorreção histórica que dissolve o negativo e o torna positivo: perceber, negar, conservar e superar — processo chamado de Aufhebung. A negação inicial pode ser comparada ao conceito de imagem dialética do filósofo Walter Benjamin (1892–1940). Sob esse conceito, há um momento de paralisia onde se desenha uma constelação de tensões do outrora invadindo o presente (BENJAMIN, 2009, [N, 9, 7] e [N 10a, 3]). Essa operação somente é realizável na medida que a natureza da totalidade é infinita. Assim, conceitos como emancipação e progresso aparecem em Hegel, mas em um processo retroativo. Os movimentos da realidade material estão associados a lógica do Espírito, sendo ele, finalmente, uma entidade que orienta um conjunto de ações, dentre elas, ações objetivas, subjetivas, transindividuais, coletivas e etc.

A insuficiência do saber

Como o entendimento pode se ajustar a uma realidade histórica e temporal contraditória? Se notamos que a história transborda e está em infinita atualização de um tempo atemporal, como poderia a razão acompanhá-la? O que temos é um entendimento fragmentário que recorta o movimento, o estabiliza e o torna abstrato. Isso é a totalidade histórica. A mesma dificuldade ocorre em uma totalidade da natureza. Para entendermos a natureza, a história e o em-si, temos que nos inserir num movimento. Para tal, nada mais justo do que retomarmos os comentários de um grande leitor de Hegel, o filósofo Georges Bataille (1897–1962), o qual foi introduzido ao primeiro através dos seminários da Fenomenologia do espírito de Alexandre Kojéve (1902–1968). Bataille nos diz:

Em outras palavras, o conhecimento da Natureza é incompleto, ele só considera e só pode considerar, entidades abstratas, isoladas de um todo, de uma totalidade indissolúvel, que é só ela concreta. O conhecimento deve ser ao mesmo tempo antropológico (…) Bem entendido, essa antropologia não considera o Homem à maneira das ciências modernas, mas como um movimento que é impossível isolar no seio da totalidade. Em um certo sentido, é antes uma teologia, onde o homem teria tomado o lugar de Deus (BATAILLE, 2013, p. 396).

Bataille se dedicou a se confrontar com Hegel em temas como a morte, o sacrifício e o problema do entendimento. É flagrante, para ele, que mesmo Hegel assume a dificuldade de se inserir no movimento pelas vias do entendimento e propõe outra alternativa. Desse modo, diz Hegel:

A aparição é o surgir e passar que não surge nem passa, mas que em si constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro é assim o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse movimento não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários quanto são negativos e evanescentes (HEGEL, 2014, p. 50, § 47).

O delírio báquico seria a forma de compreensão do movimento e de sua verdade. A experiência transborda as categorias filosóficas. Podemos pensar a passagem de Hegel sobre o delírio báquico como a sugestão de uma imagem. Se fragmentarmos a aparição, i.e., dividi-la em partes, temos uma compreensão que se desconecta do todo onde cada parte guarda em si um significado. Então, dizemos o que é cada parte da aparição e mancamos com o todo. A aparição é a imagem do todo; é o relâmpago heraclitiano que governa o universo[2]. Ver essa imagem é visualizar o seu fluir e sentir seu movimento. Admitindo uma leitura imagética, não será o logós apolíneo que dará conta desse entendimento total, mas o delírio báquico: de uma só vez — o estremecer ao relampejar. Consequentemente, não existe um objeto fixo e não podemos fixar o verdadeiro.

Bataille, em seu texto Hegel, a morte e o sacrifício (2013), chega a citar uma passagem do prefácio da Fenomenologia do espírito para afirmar que há uma “beleza impotente” (ou sem-força) que odeia o entendimento (ibid., p. 401–402). Podemos associar essa beleza impotente com o delírio báquico. E Bataille mesmo a associa ao sonho, já que no mundo do sonho não há nada separado, distinguido; e é o mundo o qual a inconsciência governa. Alargando essa tese hegel-batailliana, a beleza impotente como um não-agir seria a beleza como a imagem da aparição que propomos. O delírio vê a imagem do todo, que é a beleza impotente, e a consciência-de-si delirante não age. Mas ela titubeia e sofre quando o entendimento a força ao raciocínio.

Tal delírio é a janela que se abre quando a consciência realiza a experiência hegeliana ao se perceber desiludida quanto ao caminho da verdade. De fato, essa experiência negativa é deflagrada no que Hegel chama de “caminho do desespero” (Verzweilflung) ou “ceticismo”, pois a consciência experimenta sua inverdade e sente a angústia do real. Portanto, não podemos propor uma propedêutica da filosofia. O início em filosofia é sempre a partir do erro: experiência da desilusão como uma formação do sujeito e a destruição de uma gramática natural. “(…) o que há de mais real é antes somente o conceito irrealizado” (HEGEL, 2014, p. 72–73, § 78). E quando o conceito se vê irrealizável frente ao em-si das coisas, o trabalho do negativo surge para aprofundar essa contradição e forçar a decomposição de sua categoria analítica; e a dialética trabalha em torno de uma crueldade analítica. Mas, no caminho do saber, a consciência percebe que, a estrutura do objeto a qual ela empreende sua análise, tem a estrutura do Eu.

A solidão abre fendas de loucura até em muralhas: desejo de ser reconhecido

No tópico anterior, vimos como os fracassos possuem uma função formadora. O Eu, de Heráclito à Hegel, não tem uma estrutura fixa e se modifica desde seu primeiro despertar. A consciência do Eu tende, inicialmente, ao desejo de autonomia absoluta, o qual é manifestado em sua negação de qualquer assimilação concreta e substancial com a natureza e com o Outro. É um desejo de ser negativo e indeterminado. Essa será, para Hegel, a constituição do sujeito, do Eu, da consciência-de-si “puro”. Contudo, essa experiência não é solipsista, pois a consciência-de-si, em um dado momento, vê o Outro, mas a partir da apresentação de si que o rejeita: é a morte do Outro como ser inessencial a si — movimento egóico. Mas a purificação eterna que a consciência-de-si deseja é igualmente uma morte, só que de si mesma, porque rejeita sua constituição como gênero humano, sua natureza. Ela é um vazio temporário. A consciência-de-si, esse Eu indeterminado, não é uma pessoa. Lembremos que pessoa retoma a ideia romana (dominus) de propriedade. Estamos diante de uma profundidade constituinte que se distancia de lógicas reguladoras, normativas e jurídicas, que aparecem, de fato, na experiência para com o Estado.

O desejo, desde Aristóteles (384–322 a.c.), potencializa o movimento[3]; e desejar a morte do Outro não consolida e fixa a consciência-de-si: o desejo impulsiona o movimento em um aspecto ainda mais geral — e contraditório –, a saber, a intuição da essencialidade do Outro para a consciência-de-si. Portanto, a consciência desejante se divide. Quem ela nega é absolutamente essencial para si. Isso porque, ao desejar a negação do Outro, a consciência articula um reconhecimento complexo que o envolve e o reproduz. O sujeito, para Hegel, é relacional. A consciência-de-si e o Outro “(…) se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente” (HEGEL, 2014, p. 144, § 184). Mais do que isso, o sujeito “(…) intui no objeto sua própria falta, sua própria unilateralidade; vê no objeto algo pertencente à sua própria essência (…)” (id., 2011, p. 198, § 427). Há, efetivamente, uma cisão da consciência: por um lado, ela deseja autonomia absoluta, por outro, está profundamente alienada ao intuir sua essência no Outro. O psicanalista francês Jacques Lacan, em seu seminário “A angústia”, radicaliza essa noção relacional ao dizer que o Outro é como um pedaço do próprio corpo daquele que o deseja.[4] A radicalização e apropriação da tese hegeliana não poderia ser diferente, já que Lacan foi colega de Bataille nas aulas de Kojéve. Vemos a temática do reconhecimento a partir do Outro também no plano familiar, por exemplo, quando Hegel diz que o reconhecimento da irmã está no irmão (id., 2014, p. 309, § 457).

Nesse sentido, a consciência-de-si deseja o Outro como uma falta que lhe pertence. Essa reflexão de si ocorre com um Outro que é, do mesmo modo, uma consciência-de-si não objetificada. A satisfação decorre desse momento. Podemos intuir que o ser precisa sair de si mesmo para se reconhecer e ser seguro de si. De forma mais profunda, ela deseja a si mesma porque procura efetivar o reconhecimento de si em-si: a morte inicial de si, de seu ser natural, também produz a falta e é fonte de angústia, como nos avisa Bataille (2013, p. 397). Mas a falta que toca o ser e que diz respeito a sua consciência-de-si indeterminada e vazia, como vimos em Hegel, o persegue até o fim. E essa perseguição, para Bataille, tem um outro significado: é o desejo que o ser tem de se reconectar ao seu em-si animal. Para o francês, a consciência-de-si “pura” é inumana e animal. A ideia não nos surpreende, visto que Bataille também foi um grande leitor de Friedrich Nietzsche (1844–1900), que foi um grande crítico de Hegel. E Nietzsche insistia no aspecto vital da natureza para o ser humano e dizia que a felicidade animal é viver de modo ahistórico, exercendo o esquecimento. Bataille une Hegel e Nietzsche. A negação que o ser realiza sobre si, sobre o Outro e sobre a natureza não se dá sem marcas e rastros na consciência. No seu livro O erotismo (2020b), essa negação estrutura o ser e, como veremos, o prepara para uma experiência luxuosa, comum e dialética. Vemos uma separação entre dois tempos: “Assim, a humanidade, no tempo humano, antianimal, do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas; e a animalidade é então o que guarda em nós o valor de uma existência do sujeito para si mesmo” (ibid, p. 184).

Antes de identificarmos esses dois tempos — tempo humano e, intuitivamente, tempo animal — é notável que o ser humano realiza a passagem de um ao outro. Passagem que, como vimos na citação acima, deixa rastros, e a mesma é reconhecida no seu texto sobre a morte hegeliana:

Em seu princípio, os efeitos destruidores da Negatividade têm a Natureza por objeto. Mas se a Negatividade do Homem o leva a colocar-se diante do perigo, se ele faz de si mesmo, pelo menos do animal, do ser natural que ele é, o objeto de sua negação destrutor, sua condição banal é a inconsciência em que se encontra em relação à causa e aos efeitos de seus movimentos (BATAILLE, 2013, p. 409).

A diferenciação entre dois tempos pode ser pensada sobre o prisma da percepção da morte entre dois seres: animal e humano, os quais, para Bataille, são conceitualizados, respectivamente, em seres contínuos e seres descontínuos. Tais conceitos são decisivos: os seres contínuos os são efetivamente porque vivem no instante natural da vida, sem fragmentar o tempo e refletir sobre a cronologia terrificante da morte. O animal não se separa da sua animalidade — como uma mosca singular que não se separa do turbilhão das outras moscas. Pode até haver algum lapso de consciência, mas ela logo volta a se inserir na perdição que é ser mosca. A mosca singular desaparece, mas as moscas, enquanto espécie, não desaparecem (BATAILLE, 2013, p. 400). O ser que reflete sobre a morte e sofre por sua finitude se sente miserável, é o ser descontínuo, que não entende sem hesitar que a morte é natural e temos de morrer. O ser humano é trágico.

Não obstante, isso é um convite ao homem que foi aberto pelos nossos filósofos. Heráclito nos orientava: “Quanto maior forte a morte, maiores os destinos” (frag. 25). E Hegel dizia que o espírito é positivo “enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele” (HEGEL, 2014, p. 41–42) e Bataille se exacerbava: “Quem não ‘morre’ por ser apenas um homem nunca será mais do que um homem” (2020a, p. 67). O convite pode ter diferentes nomes, mas manteremos a oferta batailliana: o êxtase.

A via extática do homem não-mutilado gera o homem acéfalo

O ser é uma totalidade. A operação do entendimento faz com que o ser perca a totalidade de sua unidade: ele se torna homem, humano. E Bataille dirá que a primeira operação do entendimento é o trabalho. O trabalho é o que separa e rebaixa os seres descontínuos dos seres contínuos. Ele configura um conjunto de regras e leis que elaboram o programa da atividade laboral, posando o homem de trabalho sobre uma divisão de tarefas, a qual, por sua vez, o coloca dividido entre o tempo humano e o tempo inumano: essa será a fórmula da descontinuidade, que surge desde os primórdios da humanidade.

Os vestígios do trabalho aparecem desde o Paleolítico inferior e o sepultamento mais antigo que conhecemos data do Paleolítico médio. Em verdade, trata-se de tempos que duraram, segundo os cálculos atuais centenas de milhares de anos: esses intermináveis milênios correspondem à muda em que o homem se desprendeu da animalidade primeira. Ele saiu dela trabalhando, compreendendo que morria (…) (BATAILLE, 2020b, p. 55).

Para satisfazer a consciência-de-si, que equivale a satisfazer suas vontades animais, Bataille descreve uma experiência que só pode ser alcançada pelos humanos devido a sua descontinuidade. A satisfação é verdadeiramente um “prazer dialético” (2013, p. 408) porque decorre de movimentar-se entre mundo do trabalho, que impõe um interdito a espécie humana, e mundo do dispêndio, que transgride o interdito, mas volta a ele. A transgressão que joga o homem ao dispêndio pode ser encontrada em diversas formas: o riso, o heroísmo, o êxtase, o sacrifício, a poesia e o erotismo. Apesar dos diversos meios, a transgressão também pode ser entendida como uma experiência interior. Dessa experiência, tem-se o projeto-livro escrito por Bataille: A experiência interior (2020a), onde ele diz ter realizado o movimento circular do sistema hegeliano (ibid., p. 147). A experiência foi meditada por Hegel, mas recusada por ele, como veremos. Bataille, por outro lado, entra na experiência e faz dela um método e um projeto, anti-hegeliano por excelência. A experiência interior é o aprofundamento sem limite de uma angústia — como a do temor da morte — que libera um certo prazer em seu trajeto. É um pôr a vida em risco e perceber a si salvo. A natureza excessiva do erotismo vincula o homem à consciência-de-si, “Para que o homem ao final se revele a si mesmo, ele deveria morrer, mas seria preciso fazê-lo em vida — olhando-se deixar de ser” (id., 2013, p. 404). Essa é a experiência dialética do êxtase do erotismo: a stasis (στάσις). O ser precisa de uma experiência que o aniquila temporariamente para vislumbrar a consciência-de-si através de um momento singular inconsciente. Viver a morte como um resgate da eternidade animal que o ser perdeu e a suspensão temporária dos interditos até o anúncio do gozo, que reinicia o desejo voluptuoso. Assim, experiencia-se a totalidade do ser, o ser não-mutilado, íntegro ao seu caráter animal, mas que se torna acéfalo porque rebenta a cabeça, o símbolo da razão.

O mundo sagrado contra o mundo profano: Bataille contra Hegel

Todavia, segundo Bataille, Hegel mutilou-se, mas não se decapitou. O sistema hegeliano é a anulação da experiência interior porque visa construir uma filosofia do trabalho, no qual o homem hegeliano se adequa ao projeto de Hegel e não o fracassa ao final (BATAILLE, 2020a, p. 117). Para Bataille, Hegel aponta o delírio báquico, mas o delírio de que Hegel fala é passagem. Entendemos o delírio hegeliano como meio produtivo para construir o conhecimento[5]. A existência seria essencialmente o desenvolvimento do trabalho (o pensamento, o discursivo, o projeto). De fato, na Fenomenologia do espírito, a seção VI sobre o espírito determina o espírito efetivo — como Governo — como um momento essencial da consciência. E esse espírito efetivado impede o desmoronamento do ser ético: impõe aos indivíduos que se desprendem do todo, a morte; eleva o ser-aí ético à liberdade e à sua força:

Quanto aos indivíduos, que afundados ali se desprendem do todo e aspiram ao ser-para-si inviolável, e à segurança da pessoa, o Governo, no trabalho que lhes impõe, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissolução da forma da subsistência, o espírito impede o soçobrar do ser-aí ético no natural; preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à sua força (HEGEL, 2014, p. 308, § 455).

E nessa mesma seção, Hegel ainda apela a um gozo virtuoso vide o momento da consciência-de-si de cidadão de seu povo (2014, p. 310, § 461). Essas citações são para condizer com a crítica de Bataille: Hegel pensa o trabalho enquanto estatuto formador essencial ao ser. O Governo ou o Estado anula aquela consciência-de-si vazia e inumana. Hegel, portanto, profanou o sagrado.

Retomando A experiência interior (2020a), Bataille foca sua crítica à Hegel na quarta parte, capítulo III. Lá, Bataille diz que a satisfação hegeliana advém da consumação do projeto absoluto do saber. Mas para o francês, a dialética acarreta o não-saber definitivo e interroga o saber absoluto: “por que é preciso que haja aquilo que eu sei?” (ibid., p. 148). Atentamo-nos ao procedimento de Bataille: sua crítica, inicialmente, se dá entre a semelhança entre ser e saber. O ser se faz em atos de saber, indo do desconhecido ao conhecido, tornando o conhecido parte do ser, permitindo-lhe agir e desejar. Apesar da indistinção entre ser e conhecimento, o conhecido é apenas parte do ser: a existência não se reduz a ele, já que isso levaria o conhecido como finalidade da existência do ser. O conhecimento opera mais do que a consumação do saber: ele absorve um ponto cego, difícil de ser discernido, que faz o conhecimento se perder. Esse é o não-saber que reabre as cortinas da vida do ser, que o discerne do entendimento, e pode ser absorvido de outro modo, que não o entendimento.

Dois autores com duas finalidades distintas, é disso que se trata: o fim, para Hegel, é o saber e, para Bataille, é o não-saber. “Que o não saber seja ainda saber. Eu exploraria a noite! Mas não, é a noite que me explora…” (BATAILLE, 2020a, p. 150). O projeto hegeliano é o homem completo enquanto trabalho e saber — elementos positivos porque geram o agir, o desenvolver, enfim, o trabalhar. Se o saber absoluto é o acabamento da história, Bataille reivindica que há uma história — em continuum — animal. Se em Hegel há o interesse pelo êxtase da morte e do sacrifício, esse será figurado na morte militar (id., 2013, p. 407). Há, seguindo a mesma linha maldita, a figura da loucura na Fenomenologia, que é definida como a bela alma. Falamos anteriormente do delírio enquanto passagem, sobretudo na passagem do “caminho do saber”, mas a bela alma se refere ao momento do reconhecimento. Ou melhor, ao momento da negação-desejo do Outro, da natureza e de si, só que é descrita como a paralisia desse movimento, como a falta de força para tal movimento. Isso sugere que a bela alma é uma figura da loucura entendida sob a problemática da ação, do não-agir. A bela alma vive a loucura de não se submeter a loucura de se perder.

Falta-lhe a força da extrusão, a força para se fazer coisa e para suportar o ser. Vive na angústia de manchar a magnificência de seu interior por meio da ação e do ser-aí; para preservar a pureza de seu coração, evita o contato da efetividade, e permanece na obstinada impotência: — de renunciar a seu Si, aguçado até a última abstração; — de se conferir substancialidade, ou transmudar seu pensar em ser; — e de confiar-se à diferença absoluta (HEGEL, 2014, p. 437, § 658).

A bela alma é carente-de-efetividade e não se torna ser, ou seja, não realiza a experiência do caminho da verdade. A experiência própria da bela alma, enquanto um momento da loucura, é inexistente para Hegel. Daí o projeto batailliano de frisar que há, sim, uma experiência interior da loucura e do delírio.

Conclusão: dialética sem síntese

O passo que aproxima Bataille de Hegel é o mesmo passo que o distancia. Quer dizer, Bataille entende que o vazio hegeliano da consciência-de-si é um ponto importante para o salto no abismo do êxtase e para a sustentação da diferença, i.e., de uma arkhé do ser não reconhecida.[6] Se Hegel vê a síntese na dialética, Bataille — assim como posteriormente fará Theodor W. Adorno (1903–1969) — aprofunda uma dialética sem síntese, negativa e abismal. O tema da loucura aparece em Hegel sob duas figuras: uma como passagem essencial para o caminho do saber, e outra, como a figura da bela alma. Em geral, elas são desprezadas em nome do saber absoluto. Bataille, por outro lado, propõe a loucura como método.

Referências bibliográficas

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_________________. O erotismo. Ed. Autêntica. Belo Horizonte. Trad. Fernando Scheibe. 2020b.

_________________. João Camillo Penna. Hegel, a morte e o sacrifício. In.: Alea: Estudos Neolatinos. [online]. 2013, v. 15. (Acessado 01 de julho 2023). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-106X2013000200009

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KONDER, Leandro. O que é a dialética. Ed. Brasiliense. São Paulo. 1992.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Ed. Zahar. Rio de Janeiro. Trad. Vera Ribeiro. 2005.

[1] Apesar dessa atribuição, Aristóteles considerava Zenão de Eleia o fundador da dialética. Para outros, esse papel era de Sócrates (KONDER, 1992, p. 7–8).

[2] Fragmento 64: O relâmpago governa o universo.

[3] Na sua obra De anima (2006), Aristóteles enfatiza o problema do movimento e rompe com a generalização acerca dele. Para ele, movimento possui processos ímpares e são divididos em movimento de crescimento e decaimento e o movimento de transporte local; e o que na alma faria mover, segundo Aristóteles, é a combinação entre desejo e intelecto (433a17).

[4] “A falta é radical, radical na própria constituição da subjetividade, tal como está nos aparece por via da experiência analítica. Eu gostaria de enunciá-la com esta formulação: a partir do momento em que isso é sábido, em que algo chega ao saber, há alguma coisa perdida, e a maneira mais segura de abordar esse algo perdido é concebê-lo como um pedaço do corpo” (LACAN, 2005, p.149).

[5] O fundamento do delírio como produtividade, positiva para Hegel, é utilizado séculos depois por um grupo socialista alemão, chamado Coletivo Socialista de Pacientes (SPK). O grupo se influenciou pelo hegelianismo e afirmou um manifesto anticapitalista em que dizia que a doença era uma contradição em dois termos: contradição da vida e contradição das condições de vida capitalistas. Nesse sentido, fazer da doença um combate ao capitalismo era a síntese dialética proposta pelo grupo (SPF, Fazer da doença uma arma).

[6] A ideia de sustentar a diferença baseada na crítica à Hegel por ser um filósofo que não pensou a diferença será o projeto de muitos filósofos franceses influenciados por Bataille, como Gilles Deleuze (1925–1995), Michel Foucault (1926–1984) e Jean-François Lyotard (1924–1998), por exemplo.

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