Leituras de Beckett na Teoria Crítica

cauê
Trabalhos de Filosofia
8 min readDec 15, 2022

Ensaio 2

Desenho de Beckett

HAMM — O que está acontecendo?

CLOV — Alguma coisa segue seu curso.

Pausa.

Samuel Beckett

A Filosofia até agora não aproveitou esse saber misterioso, essa revelação poética.

María Zambrano

As unidades do drama

A estrutura do gênero dramático puro fundamentada a partir de três unidades, a saber, a ação, o lugar e o tempo, foi dada como regra no interior da tradição artística para aqueles que almejavam ter sucesso em seus produtos. Aristóteles, autor das três unidades, postulava que a trama deveria ser cronológica diante de apenas um único tema, de forma a não confundir o espectador com temas divergentes. O lugar deveria ser estático durante toda a encenação. Ou, ao menos, um micro lugar dentro de um lugar fixo com as personagens percorrendo um tempo que não fosse interrompido por intervalos. Em paralelo, ao fazer uma introdução aos gêneros artísticos, Anatol Rosenfeld apresenta o teatro em seus traços estilísticos enfatizando que o seu autor é uma figura ausente na obra.[1] Esse dado é, na realidade, uma consequência da configuração teatral descrita acima. A realidade encenada no teatro passa a ser apresentada por si mesma. “(…) o ‘autor’ confiou o desenrolar da ação a personagens colocados em determinada situação.”.[2] O dramaturgo não aparece em cena, se não como através do texto. Se o teatro possui um tempo sempre presente, sem intervalos, mudanças de espaço e acasos, o espectador entende naturalmente que a peça e os personagens vivem a situação ali posta. Rosenfeld reitera o sistema fechado proposto por Aristóteles a fim de registrar a busca pela verossimilhança da encenação.

Em adição às teorias do drama de Aristóteles à Rosenfeld, o crítico literário Peter Szondi analisa e teoriza o drama tomando a dialética hegeliana como conceito de comparação: “O homem só entrava no drama como ser que existe com outros.[3] A dialética no drama é possível em função do ímpeto relacional entre os seres humanos. Em outras palavras, Szondi observa que o conteúdo do drama é uma reprodução de relações inter-humanas, sendo elas transformadas em linguagem no diálogo dramático. Nesse sentido, o estar entre outros configurava às personagens, segundo Szondi, a liberdade.

O estar “entre outros” aparecia como a esfera essencial de sua existência; liberdade e compromisso, vontade e decisão, como as mais importantes de suas determinações. O “lugar” em que ele ganhava realidade dramática era o ato de decidir-se (SZONDI, p. 23–24).

A acepção moderna de Szondi entende que após o século XIX, o drama é perpassado por características de outros gêneros literários. O teatro encenado passa a poder ser também contado. Daí a ideia do Teatro Épico do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht já no século seguinte. Pensemos na existência do eu lírico e do herói épico somado aos outros elementos do drama puro. Até aí, temos uma ampliação do drama frente ao andar da história que transmite outros ideais para a arte. Cada época histórica tem sua própria forma de expressão que não é necessariamente semelhante ao da antiguidade, por exemplo. Os que perseguem uma pureza no drama e estabelecem comportamentos preceptivos diante dela, os “médicos da arte” como sugere Hegel, estão se perdendo na verdade artística e se restringindo a uma pequena parcela das obras de arte. O que Hegel enfatiza e Szondi o entende perfeitamente é que “(…) toda a obra de arte pertence à sua época, ao seu povo, ao seu ambiente e depende de concepções e fins particulares, históricos e de outra ordem”. [4]

Ora, com as catástrofes trazidas pelo século XX, ao que Walter Benjamin reflete sobre a impossibilidade de se contar as histórias da Primeira Guerra Mundial[5], será possível pensar particularmente sobre a impossibilidade do drama? De acordo com o filósofo Theodor Adorno, a crise do drama em sua época é um acontecimento que teve como maior expressão a peça Fim de Partida do irlandês Samuel Beckett. Contudo, a análise adorniana sobre a peça não é acompanhada de uma historicidade, como pensar sobre os porquês de tal conteúdo serem apresentado de forma singular, tampouco recaí para uma extração de sentido filosófico ao conteúdo dramático (excluindo sobretudo o existencialismo da análise). Por outro lado, a tentativa de entender a peça de Beckett se concentra na impossibilidade dela mesma em se realizar no meio dramático.

A impossibilidade do drama

Fim de partida apresenta quatro personagens que habitam um espaço de quatro paredes e duas janelas. Os personagens Hamm e Clov têm majoritariamente os diálogos da peça. Diálogos que são em certo sentido deficientes. A expectativa de uma sucessão causal de ações guiados pelas falas entre os personagens não se torna realidade.

A última reserva de realidade e de personagens com que a peça conta e economiza é idêntico àquilo que resta do sujeito, do espírito e da alma em face da catástrofe permanente: do espírito que surgiu na mimesis, a imitação ridícula; da alma que se põe em cena, a sentimentalidade inumana; e do sujeito, sua determinação mais abstrata: estar lá já constitui por si um pecado. As personagens de Beckett comportam-se de maneira tão primitiva e behaviorista em conformidade com as circunstâncias pós-catastróficas (…) (ADORNO, p. 11).

A tragédia da peça se apresenta por si mesma. Isso quer dizer que a história encenada pelas personagens não emite sinais de uma tragédia até ter ao fim da peça a revelação trágica com ou sem o herói épico. A peça já é trágica desde o início; característica, nesse sentido, que é percebível através dos diálogos escassos, da podridão da situação e do lugar e das ações misturadas entre o grotesco, o trivial e o indeterminado. Se o dramaturgo deve ser uma figura ausente no todo da peça para que as personagens e a história se desenlacem por si só, confiando a interpretação do texto na encenação livre, deparar-nos-íamos com uma interrogação em Fim de partida: as personagens estão livres? O drama pressupõe a liberdade, mas a peça em questão expressa a negação dela.

CLOV- Então vou deixá-los

HAMM — Você não pode nos deixar.

CLOV — Então não vou deixá-los.

Pausa.

HAMM — Só tem que acabar conosco. (Pausa) Dou a combinação da despensa, se jurar que acaba comigo.

CLOV — Não poderia acabar com você.

HAMM — Então não vai acabar comigo.

Pausa. [6]

A peça apresenta um material ruinoso que diz sobre ela mesma, sem ser necessário recorrer, como reluz Adorno, aos cacos da história exterior como causa objetiva. Nisso o professor e filósofo Luciano Gatti tem razão ao complementar que a liberdade apagada se soma a incompreensão da história:

Mais que a natureza dos conflitos históricos no capitalismo tardio, o que determina o ‘tabu sobre a história’, que pesa sobre “Fim de partida”, é esta incomensurabilidade entre o curso da história e a capacidade individual de apreendê-la e transformá-la em consciência e experiência histórica (GATTI, p. 587–588).

O destaque dado por Adorno na análise da peça é sobre a paródia. O filósofo constata todas as unidades clássicas do drama — citadas anteriormente aqui — estruturadas na peça; contudo, o drama na peça está morto. “A parodia, ele afirma, significa a utilização de formas na época em que são impossíveis”. [7] Fim de partida, então, é uma paródia por apresentar uma peça que não funciona apesar de ter os elementos do drama. E o trágico emerge sobre ações indeterminadas, mas recorrentes, cíclicas. Não surge como efeito uma confusão lógica dos eventos, mas uma exaustão sobre a forma. Colocamos nossos raciocínios sobre o drama em questão. O lugar convida o espectador ou leitor para uma obsessão e fuga. A transgressão dessa unidade é feita pelo público, que se desloca para o pensamento.

Ela [a peça] inclina-se tanto diante da impossibilidade de continuar a representar-se à maneira das obras de arte do século XIX, de trabalhar sobre as matérias (temas), quanto diante da consciência de que as reações subjetivas, que transmitem não a cópia, mas a lei da forma, não são por si mesmas dados primários e absolutos, mas ulteriores, objetivamente colocados (ADORNO, p. 10).

É evidente que a impossibilidade do drama refletido por Adorno caminha pelo processo histórico do século XX — a peça enquanto vestígio do capitalismo. As personagens sem uma subjetividade por dentro, sem o poder de tomar decisões na peça, são semelhantes a um processo de desintegração do sujeito do mundo. A alienação prevista pelo capitalismo, sobretudo àquela conferida por Karl Marx, que faz com que os sujeitos não voltem a si mesmos. Beckett captura esse processo e o coloca em formato de peça teatral da mesma forma que podemos pensar que as personagens vivem a história dos vencidos outrora abordada por Benjamin (2020). O inimigo que nunca deixou de vencer em Benjamin como o anúncio de que não há mais calmantes para Hamm. Em ambos as referências, o ímpeto revolucionário de tais conceitos são inexistentes na peça. O esvaziamento do tempo impede isso, o mesmo se diz para as ações e os diálogos: insatisfatórios para qualquer resolução. O imperativo é o comportamento cotidiano em sua forma mais miserável, diz Adorno: “Os sujeitos completamente reduzidos a si mesmos, um nada cósmico feito carne, não são nada mais que fatos miseráveis do seu mundo reduzido a fezes, pessoas ocas que nada mais fazem que ressoar.[8]

Vemos esperança no triunfo vegetal sobre as ruínas quando Maria Zambrano, filósofa espanhola, proclama o tempo como sua autoria.[9] O ânimo alargado e purificado frente às ruínas é conquista daquele que as contempla. Que paralelo podemos fazer com Fim de partida? Não há natureza que possa se reerguer sobre as ruínas da peça. Isso é constatado por Clov ao se deparar com uma nebulosidade cinzenta fora da janela. Estamos diante de uma catástrofe permanente.

Mas a situação dada na peça não é outra que aquela em que “não há mais natureza”. Indiferenciável é a fase da reificação (Verdinglichung) total do mundo — que não deixa mais subsistir o que não foi feito pelos homens, a catástrofe permanente — e um outro processo catastrófico causado pelos homens mesmos, em que a natureza foi exterminada, e depois disso nada mais cresce (ADORNO, p. 5).

É por esse motivo também que o drama da peça é impossível. Sem o renascer da esperança, contemplamos o vazio e o fim do drama. Enquanto nosso herói épico não consegue deixar seu lugar ou se ocupa de pensamentos sobre a posição da poltrona em que está sentado, estamos diante de um exercício de prosopopeia: personificando o que está morto.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Tentativas de entender Fim de partida. In. Notas de literatura II, Trad. Bruno Prucci, 1958

BECKETT, Samuel. Fim de partida. Ed. CosacNaify

BENJAMIN, Walter. O Contador de histórias e outros textos. Ed. Hedra, 2ª ed. Trad. Georg Otte, Marcelo Backes, Patrícia Lavelle, São Paulo, 2020

_________________. O anjo da história. Ed. Autêntica, Trad. João Barrento, 2020

GATTI, Luciano. Adorno e Beckett: Aporias da autonomia do drama. In. KRITERION, Belo Horizonte, n. 130, Dez./2014, p. 577–596

HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética. Ed. Edusp, Trad. Marco Aurélio Werle, Vol. 1, 2015

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. Ed. Perspectiva, 1985

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880–1950). Ed. CosacNaify, Trad. Raquel Imanishi Rodrigues

ZAMBRANO, María. Uma metáfora da esperança: As ruínas. In. Revista Lyceum, vol. VIII, n.26, Havana (Cuba), maio de 1951. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n37.pdf . Acesso em: 26 de julho de 2021

[1] ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. Ed. Perspectiva, 1985

[2] Ibid., p. 30

[3] SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880–1950). Ed. CosacNaify, Trad. Raquel Imanishi Rodrigues, p. 23

[4] HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética. Ed. Edusp, Trad. Marco Aurélio Werle, Vol. 1, 2015, p. 38

[5] BENJAMIN, Walter. O Contador de histórias e outros textos. Editora Hedra, 2ª ed. Trad. Georg Otte, Marcelo Backes, Patrícia Lavelle, São Paulo, 2020

[6] BECKETT, Samuel. Fim de partida. Ed. CosacNaify, p. 87–88

[7] ADORNO, Theodor W. Tentativas de entender Fim de partida. In. Notas de literatura II, Trad. Bruno Prucci, 1958, p. 20

[8] Ibid., p. 11

[9] ZAMBRANO, María. Uma metáfora da esperança: As ruínas. In. Revista Lyceum, vol. VIII, n.26, Havana (Cuba), maio de 1951. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n37.pdf . Acesso em: 26 de julho de 2021

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