O socius como documento-sobrevivência das ruínas brilhantes: Baudrillard, Benjamin e Didi-Huberman [ensaio]

cauê
Trabalhos de Filosofia
10 min readJan 19, 2024

“sim, a imagem / é felicidade / mas por perto / paira o vazio / e a imagem / só pode se expressar / em toda sua potência / ao apelar para o vazio”

(GODARD, 2022, p. 153).

Nos domínios de que tratamos aqui, o conhecimento existe apenas em lampejos. O texto é o trovão que segue ressoando por muito tempo

(BENJAMIN, 2009, N, 1, 1).

Não vivemos em apenas um mundo, mas entre dois mundos pelo menos. O primeiro está inundado de luz, o segundo atravessado por lampejos

(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 155).

Fragmento do filme “Border” (2004) de Laura Waddington

Desde A república de Platão, podemos entender a morte como um espetáculo quando Leôncios percebe cadáveres ao lado de um carrasco e o seu desejo de vê-los vence a razão repulsiva em não vê-los. Com os olhos arregalados, ele exclama: “Eis aí, infelizes! Saciai-vos com o belo espetáculo!” O trâmite entre a razão e o desejo do espetáculo da morte é a testemunha de um fascínio erótico, como diria Georges Bataille (1897–1962), que transgride o interdito da morte, e que pode ser entendido como inerente a espécie humana. Da literatura filosófica para a pictórica, Andy Warhol (1928–1987) nos ensina que a reprodução dos desastres, desde os noticiários, não acalenta o desejo de ver a morte, mas revela o nada, o vazio. Sua série dos anos sessenta, Death and disaster, nos mostra sua apropriação dos acidentes automobilísticos que eram estampados nos jornais: imagens de carros destruídos e cadáveres em meio a eles. Essa espécie de nulidade não emerge somente quando Warhol reproduz em telas os desastres em cores monocromáticas. Decerto, os noticiários e a mídia, produtoras de uma inflação de informação — seja falada, textual ou imagética — também desnorteiam o sentido e o significado de suas mensagens ao se apropriarem do real. Assim, a comunicação e seus conteúdos repetitivos de informações neutralizam o valor da mensagem do mesmo modo que as notícias de morte neutralizam o valor da morte ao espetacularizar-las. Desastre espetacular e fascinante cujo efeito particular do acontecimento em si é esvaziado. Tal reprodutibilidade técnica foi o diagnóstico de Walter Benjamin (1892–1940) para a modernidade, sobretudo através do cinema, e Warhol foi quem expôs isso ao mundo através de sua factory, estúdio de arte onde ele criava suas pinturas e reproduzia as imagens da cultura de massa.

E no tocante aos desastres de guerra, se pensarmos que eles geram o emudecimento aos sobreviventes, como constatou Benjamin ao final da Primeira Guerra Mundial, paralisando-os de relatar os acontecimentos e colidindo-os com a tradição narrativa, quão vivida será a experiência futura? Ou qual lição será contada se não houver mais experiência vivida? Com Warhol, podemos entender a mídia e a arte como meios fascinados com a materialidade, i.e., com as imagens. Tendo em vista que “vívido” é aquilo que possui uma carga intensa e cheia de animosidade, e “vivido” é a experiência liquidada de um objeto, vívidas são as imagens, da mídia à arte. Isso porque elas são intensas, mas isoladas em sua intensidade, por não serem mais vividas como experiência. Esse é o estatuto da imagem na contemporaneidade: ela é mais importante que o real, que o acontecimento. Desse real inferior às imagens, pode-se seguir, com isso, que ele se torna uma miragem: algo embaçado, distante e impenetrável. Nesse sentido, Giorgio Agamben (1942-) define que ser contemporâneo é ser anacrônico e inatual; é não coincidir com o período em questão. Por que o contemporâneo aparece desconexo com o seu tempo e com a sua realidade? Vemos um reflexo disso ao momento de esgotamento utópico da arte moderna e o surgimento da arte contemporânea que perdeu a visão de futuro e voltou ao passado. A partir da Segunda Guerra Mundial, a busca do novo e a experimentação artística declinam e a arte contemporânea inaugura um eixo heterogêneo da arte, e ela desloca-se do anseio revolucionário vivido na Europa para o refúgio capitalista nos Estados Unidos.

Se na contemporaneidade pensamos na substituição do real pela imagem, para Jean Baudrillard (1929–2007), o corte é mais profundo: não há tal substituição uma vez que o real já não existe mais e há somente a imagem como referencial. Para o filósofo, vivemos em uma sociedade hiper-real porque o que é artificial, a saber, as imagens, se torna mais real que um real ausente. Distante de um real imanente, concorre a isso a produção desenfreada de um real a partir de signos do real, produção material e memórias artificiais como um aceno glitched de que o real ainda seria latente. Esses produtos são simulacros. Imagens-simulacros cuja fase de existência anula qualquer relação com real e qualquer contraste entre verdadeiro e falso. Baudrillard diz “(…) é doravante impossível isolar o processo do real e provar o real” e tal declaração vai de encontro com a ontologia contemporânea flagrada por Agamben: o ser sem referencial, mas bombardeado por excessivas imagens e informações. “Le faux est-ce qu’il veut” é a frase de Madame de Duras bem escolhida por Benjamin como abertura de seu texto sobre a reprodutibilidade técnica da arte. Certamente, o bombardeio excessivo de imagens e informações é desejado; o falso, em contraste com o real, é desejado. Bombardeio tão desejado que assujeita a todos no medo e na ansiedade de estar de fora das notícias e da mídia, ou seja, de se “desligar” do mundo digital, que se torna sinônimo de prazer. Com isso, a clínica nos presenteia com mais uma síndrome: Fear of missing out (FOMO), termo cunhado para o medo do desligamento digital. Assim, um estado em que não se é possível realizar qualquer atividade que não seja a partir do ganho do prazer, recebe o nome de hedonia depressiva, como acrescentou Mark Fisher (1968–2017), que busca atividades ligadas aos prazeres do consumo de uma matriz comunicativa de sensação-estímulo.

Como mapear o excesso de imagens e informações no contemporâneo? Em um exemplo, podemos pensar nas imagens das redes sociais, como Instagram, Facebook, Twitter e TikTok. Para além de pensar como essas imagens são, admite-se que elas seguem um padrão interessado por ganhos sociais, likes e interações que são superficiais, mas fundamentais e adequadas ao contemporâneo, como um bom marketing. Por isso, Baudrillard diz: “Em toda a parte, a socialização mede-se pela exposição às mensagens midiáticas”. E sobre a exposição, Benjamin também atesta que “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmada” e, com isso, a diferença entre autor e público desvanece ao desejo de autoexposição, como “(…) publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou uma reportagem”. Essas imagens podem ser exemplificadas como as massivas e compulsivas publicações de selfies, onde se revelam o vazio comunicacional, já que o rosto não é linguagem. Podendo, portanto, serem chamadas de imagens hegemônicas: imagens pré-formuladas, sem mistério e enigma, sem face oculta. Mais recentemente, vimos surgir nessas redes as imagens-conteúdo ou content posts, cuja ideia é a criação de imagens em softwares como Adobe Photoshop que seguem um trend design vigente. O conteúdo, em geral, se adequa ao perfil (ou ao content creator) que o publica. Esse é um exemplo que Baudrillard chamaria de “encenação da comunicação”, onde se simula um conteúdo informacional em meio a outras postagens “tendências” e “informativas” que competem com os selfies compulsivos e finge-se uma comunicação, como um logro. Portanto, neutralizam-se as imagens pelo seu excesso, pelo scrolling infinito dos smartphones e pelo embaralhamento entre imagem e comunicação. O crescente deslocamento ou a absorção das notícias dos telejornais para os perfis pessoais da mass media nos indica o apoderamento de si dos sujeitos, agora eles mesmos como veículos de comunicação, acendendo a faísca de se exprimirem em tudo: um novo estágio do desejo de exposição acrescido da sobreprodução e regeneração do sentido e da palavra na sociedade hiper-real.

Pode-se falar em sociabilidade na sociedade simulacro? Para Baudrillard, não. Aqui, a sociabilidade é entendida como um mise-en-scène cujos bastidores se dão no divã: a ausência de sentido e a desaparição do real que encobrem um trauma e um fascínio. “a agonia do real e do racional que abre as suas portas para uma era de simulação” diz o autor. Mas simulação em termos da psicanálise freudiana, fetichizada, no sentido de que os olhos voltam à história anterior como meio de ocultar a ausência do real, como moda retrô. Somos, assim, melancólicos, fascinados e anti-sociais. Uma outra ideia para entender isso é o conceito de “tela total” de Baudrillard, onde o digital, simbolizado pela tela, é naturalizado ao extremo e as relações sociais se dão com mais páthos e vivacidade por meio da mass media. No caso, a exposição virtual de uma amizade seria a experiência real, e não a potência do encontro. Tornando-se imagem, informação ou uma postagem de conteúdo, enfim, glorificando o signo do socius, tem-se a morte da sociabilidade. O real e o social se desestruturam na encenação midiática, que logo passa a reunir todos os signos do real e ser mais real que este, onde “medium [mídia] e real são a partir de agora uma única e nebulosa indecifrável na sua verdade”. Desse modo, todos esses artifícios que produzem um real fake estimulam a deflação da memória, no sentido de que há pouca absorção do que é sentido frente ao excesso de signos, informações e imagens.

Como pensar a exceção em uma hiper-realidade que vive sob o brilho da tela total? Como ressucitar o socius que não seja um simulacro? Podemos evocar, para essas questões, Georges Didi-Huberman (1953-) e seu livro “Sobrevivência dos vagalumes” (2011). Em seu livro, o socius é pensado em termos de uma amizade sobrevivente e lampejante que resiste aos escombros dos tempos. Se Baudrillard vê o mal nas ideias de simulacro e de tela total, Didi-Huberman o vê com outro nome: os projetores. Sem dúvida, os autores tratam de épocas distintas: o primeiro se refere ao neoliberalismo, enquanto o segundo pensa a experiência fascista. Em seu texto, Didi-Huberman associa as pequenas luzes (lucciola) dos vagalumes com os jovens que presenciaram a emergência do fascismo e o sentiram com pesar, desespero e resistência, apesar de todo o medo. A analogia entre inseto e animal, no contexto que Didi-Huberman enuncia, se dá em razão de suas vidas discretas e frágeis, mas sem esquecer os desejos potentes por trás destas. O caso elucidado é o de Pier Paolo Pasolini (1922–1975), o cineasta homenageado pelo filósofo cuja juventude foi marcada pela sobrevivência que lampejava na escuridão do fascismo. Didi-Huberman cita a história de uma noite em que uma frágil amizade era potente, confluindo nela o amor, o desejo transgressor, a euforia, o medo, enfim, um modo de sobrevivência juvenil ao fascismo italiano. Era a história do jovem Pasolini e seus amigos, cujos movimentos viris se assemelhavam aos dos vaga-lumes: pequenas luzes que se exprimiam em movimentos fugazes e desejantes, como uma forma de sobrevivência do corpo e do espírito em meio à derrocada. Os primeiros estavam em busca de uma “vagabundagem artificial” e, os segundos, procuravam a si mesmos em seus voos e suas luzes e, com isso, se amavam. Nas palavras de Pasolini, que celebra a amizade, ele diz:

“Pensei então no quanto é bela a amizade, e as reuniões dos rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes inocentes e não se preocupam com o mundo a sua volta, continuam vivendo, preenchendo a noite com seus gritos (…) Sua virilidade é potencial.” (DIDI-HUBERMAN, G. pp. 19–20).

Vemos a amizade entre Pasolini e seus amigos como o símbolo de um socius que sobrevive ao fascismo e, podemos dizer, ao neoliberalismo e a sociedade do simulacro. Os gritos da amizade humana, como os lampejos dos vaga-lumes, ainda que fracos e inocentes, irradiam contra os projetores fascistas e podem ser os gestos que sobrevivem ao mundo hiper-real.

À morte brutal da sociabilidade descrita por Baudrillard, intercede as imagens-vagalumes como socius sobrevivente, que sempre ressurge das ruínas, visto que embora contínua, “(…) a destruição nunca é absoluta”. Ademais, se conceituarmos como Aby Warburg (1886–1929) e situarmos a sobrevivência mencionada como “sobrevivências”, como Nachlebens, então pensamos num gesto que atravessa todas as catástrofes da história. Assim, a sobrevivência dos vaga-lumes pode ser considerada como um gesto que sempre existiu e sempre esteve ao lado da história dos vencidos. Por meio de Didi-Huberman, vemos o cruzamento do anseio de justiça benjaminiano aos vencidos da história com a narração de uma noite de Pasolini. Usando o método proposto por Benjamin nas Passagens (2009), esperamos demonstrar a potência que uma imagem vagalume tem contra a imagem hegemônica, contra o fim da sociabilidade e da comunicação superficial. Essa potência é o socius como amizade, que dialetiza e expõe o contraste entre um tempo de horror e uma constelação de possibilidades. Os suplícios, conselhos, desejos, acolhimentos e cartas entre amigos se tornam o documento e o conhecimento históricos carregados de páthos de uma época. Eles testemunham o real perdido, sobrevivendo a ele, invocando-o, para não esquecer do passado, como o fascismo o desejou, e para tensionar as imagens neutras, verdadeiras ruínas brilhantes.

“Não tenho nada a dizer. Somente mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os” (BENJAMIN, W. 2009, N1a, 8).

Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Ed. Argos — Editora da Unochapecó. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. 2009.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Ed. Autêntica. Belo Horizonte. Trad. Fernando Scheibe. 2020.

BAUDRILLARD, J. Simulacro e simulação. Ed. Relógio d´água. Lisboa. Trad. de Maria João da Costa Pereira. 1991.

_________________. Tela Total: Mito-ironias do Virtual e da Imagem. Ed. Sulina. 2005.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense S.A. São Paulo, SP. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 1985.

______________. Passagens. Ed. UFMG. Belo Horizonte. Trad. Irene Aron, Cleonice Paes Barreto Mourão. 2009.

______________. O Contador de histórias e outros textos. Ed. Hedra, São Paulo, SP. Trad. Georg Otte, Marcelo Backes, 2020.

______________. Sobre o conceito da História. In: O anjo da história. Ed. Autêntica. Trad. João Barrento. 2020.

DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Ed. Contraponto. Rio de Janeiro. Trad. Vera Ribeiro. 2013.

___________________. Sobrevivência dos vaga-lumes. Ed. UFMG. Belo Horizonte. Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. 2011.

FISHER, M. Realismo capitalista. Ed. Autonomia Literária. São Paulo. Trad. Rodrigo Gonsalves; Jorge Adeodato e Maikel da Silveira. 2020.

GODARD, J.L. Ed. Fósforo — Círculo de Poemas. São Paulo. Trad. Zéfere. 2022.

PLATÃO. A república. Ed. Martins Fontes, São Paulo, SP. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. 2006.

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