3º dia no Congresso da ABRATES

Rayza Ferreira
Tradutofagia
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7 min readJun 25, 2018

Hoje faz uma semana que o 9º Congresso da ABRATES terminou. Vamos relembrar as palestras do último dia que assisti.

08:00 — LITERATURA MINORITÁRIA, LÍNGUAS MINORITÁRIAS — QUE PAPEL DESEMPENHA A TRADUÇÃO? — Merixtell Almarza Bosch

A professora e tradutora chamou a nossa atenção para a relação de poder que existe nas traduções. De um lado, as línguas centrais (inglês, francês e alemão) que exportam com muita intensidade seus produtos culturais e traduzem pouco para sua língua. Do outro, línguas periféricas (espanhol, italiano, ainda mais russo, árabe, polonês, sueco, coreano, japonês, mandarim, português…) que importam muito pela tradução e pouco exportam, e quando o fazem, na maioria das vezes acabam por reforçar estereótipos sobre suas culturas, como é o caso de Jorge Amado, o 3º escritor mais traduzido da língua portuguesa. Em um cenário onde mais de 2500 línguas estão em perigo de extinção no mundo, ressaltou-se a importância do tradutor nesse processo. O profissional, sendo leitor da língua da qual ele traduz, pode agir como um agente e curador literário, levando para editoras grandes ou pequenas, ou através de projetos próprios, autores relevantes que ainda não chegaram ao mercado, colocando autor e tradutor em evidência, afinal a tradução é uma forma de legitimação e difusão de culturas periféricas. Foram apresentadas algumas iniciativas como a Tilted Axis Press, focada em traduções de línguas asiáticas para o inglês, o Instituto Ramon Llull para promoção do catalão e, no Brasil, o coletivo Sycorax de literatura feminista para o português do Brasil. Há também alguns programas de incentivo para tradução de autores nacionais como o “Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior” da Fundação Nacional e a bolsa do “Brazilian Publishers”.

09:00 — NOVAS FERRAMENTAS DE AUXÍLIO À TRADUÇÃO E SUA PERFORMANCE — Marcelo José Fassina

A tradução de máquina neural (NMT) cresceu absurdamente no último ano, tornando-se uma realidade em um tempo mais curto do que muitos esperavam, oferecendo como vantagens o aumento da eficiência, análise do idioma no nível subpalavra e o reaproveitamento de um banco de dados de uma língua para uma terceira, por intermédio de uma segunda. Contudo, ela também trouxe outros desafios, como o fato de que as traduções a partir das línguas mais usadas como o inglês melhoram significativamente enquanto as de outras línguas mais marginais continuam ruins (como na palestra da Prof. Merixtell, o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre), o tratamento inadequado de markups e placeholders, drástica queda na qualidade da tradução de textos mais extensos e um resultado mais fluente. Isso poderia ser uma vantagem, mas torna os erros mais difíceis de serem identificados por um revisor. Esse é um problemão que eu já precisei lidar algumas vezes e farei uma postagem especialmente sobre isso.

10:00 — DO E-MAIL AO PRIMEIRO PROJETO: A SAGA DO PROCESSO SELETIVO EM UMA AGÊNCIA DE TRADUÇÃO — Mitsue Siqueira

Esse foi o horário mais difícil de escolher qual palestra assistir. Ao mesmo tempo ocorreu “Primeiro passos na tradução literária” com a Regiane Winarski e Claudia Mello Belhassof que arrebentaram a boca do balão no dia anterior (expressão meio velha, mas estamos em época junina). Mas já estava sendo influenciada pela Mitsue antes da palestra. Literária é a menina dos meus olhos, mas atualmente sou tradutora de patentes e quero trabalhar assim que possível com agências.

Esse é um exercício muito importante com o qual ela começou a palestra e que devemos fazer de forma bem honesta. “Quem eu sou? O que eu já fiz? O que eu pretendo fazer?”

Ao fazer seu currículo e carta de apresentação é bom evitar aquelas características genéricas como “dedicado, organizado e detalhista” e descrever quem você realmente é: seu nome, seus pares para cada atividade (se você também faz revisão ou transcrição, por exemplo), ferramentas, área de atuação e área de interesse, produtividade e disponibilidade (nada de por 24/7). De acordo com uma gerente de projetos na palestra um e-mail “Segue currículo em anexo” provavelmente vai parar no lixo. É importante demonstrar que dedicamos tempo e atenção para essa apresentação em vez de parecermos uns spammers.

Havendo interesse, você provavelmente receberá um teste e uma ficha para cadastrar suas informações. É bom ficar atento com a extensão dos testes que vão muito além de 300 palavras. Esses testes demasiadamente longos podem ser um alerta vermelho de furada, mas também podem ser necessários, no caso de tradução literária por exemplo.

Quanto aos valores, Mitsue indicou que a tabela do Sintra é mais um valor de referência para as agências do que para o tradutor freelancer, devido aos custos que elas possuem como pessoa jurídica. O tradutor deve levar em conta os seus gastos, incluindo impostos, além de um valor para as “brusinhas” (afinal ninguém que viver só para pagar boletos) e considerar o tempo disponível para trabalho. Basta usar a calculadora para descobrir quanto poderá ser cobrado por palavra e assim buscar pelos clientes, no caso agências, que pagam esse valor.

Para trabalhar com agências brasileiras é provável que seja preciso emitir nota fiscal, seja ela como RPA, polêmico MEI , ME ou pela Liame. É preciso ficar atento aos possíveis problemas de cada uma dessas alternativas. E todo cuidado é pouco com os contratos entre seus clientes. Nessa etapa é indicado o acompanhamento de um profissional.

Às vezes pode ser desesperador para um iniciante preencher seu currículo, mas há diversas maneiras de conseguir experiência, como bem lembrado o Tradutores Sem Fronteiras, TedxTalks (para legendagem), Coursera, Global Voices, entre outros.

10:50 — A TRADUÇÃO PARA DUBLAGEM DE ANIMES: DESAFIOS E PARTICULARIDADES — Paulo Noriega

Essa é a única palestra que vou opinar, pois particularmente me deixou preocupada e decepcionada, e deixo claro que não foi pelo Paulo, a apresentação dele foi excelente. Mas sim a forma como os animes são traduzidos: aquela na qual o papel principal ainda é das traduções indiretas.

Noriega mostrou exemplos de animes mais antigos traduzidos através do espanhol, como os Cavaleiros do Zodíaco, Sailor Moon, Sakura Card Captors e Digimon, e outros mais recentes traduzidos através do inglês, como Yu-Gi-Oh! e Death Note. Nesse caso há o apoio imagético do desenho com áudio em japonês e do script em inglês ou espanhol.

Meu nível de japonês não é fluente, mas é o suficiente para ter detectado recentemente alguns problemas graves na tradução legendas, causadas por interferência do inglês (como palavras homônimas de significados totalmente distintos). Fico um pouco temerosa como consumidora de dublagem, já que a para o espectador ela é a única fonte de referência, logo o que ele tomará como verdade (uma verdade que pode ser afetada não apenas por erros de tradução, como por valores “ocidentais”).

Questionamentos me ocorreram depois da palestra que ainda não tive oportunidade de perguntar ao tradutor: essa decisão ainda se mantém por falta de tradutores de japonês (conheço alguns)? Ou seria alguma maneira de economizar, já que tradutores dessa língua demandariam mais orçamento da produção? Ainda que não intencionalmente, a tradução indireta é uma forma de manter a marginalização e a colonização da língua e da cultura japonesa, já que as produções culturais ainda não possuem voz própria e antes de serem exportadas precisam filtradas/interpretadas por línguas centrais.

12:30 — Keynote de Libras — TRADUTORES SURDOS: EXPERIÊNCIAS EM PROCESSOS DE TRADUÇÃO PARA LIBRAS — Marianne Rossi Stumpf

Foi interessante como no começo da palestra alguns ficaram confusos. Por que precisa de fone? A pessoa não vai falar em português? Tá, vai falar em LIBRAS, mas não vai falar PORTUGUÊS? E depois desse “incômodo”, a palestra da professora Marianne Stumpf surpreendeu a todos ao combinar com seu intérprete para que não iniciasse imediatamente, de modo que todos pudesse sentir na pele como é a sensação não entender a língua do outro.

Stumpf, professora surda da UFSC, destacou o histórico no país de inclusão e valorização da LIBRAS da década de 90 aos anos 2000 e compartilhou a enorme missão que recebeu: traduzir o ENEM, para que alunos surdos pudessem ter a mesma oportunidade que os demais candidatos. Todo o processo de preparação desde a elaboração com auxílio de tradutores surdos e ouvintes das questões, textos e alternativas até manter o mesmo cabelo e aparência até o fim das gravações foram desafios que duraram meses de trabalho em Brasília.

Marianne também ressaltou a importância do tradutor surdo e atuação de intérpretes surdos em encontros internacionais, muitas vezes por intermédio do gestuno, a língua de sinais internacional, que funciona como uma espécie de esperanto que não possui estrutura fixa. Ela também contou sobre algumas situações constrangedoras e engraçadas a se deparar com outras línguas de sinais nesses encontros internacionais.

Kyōdai, irmãos em japonês.

E por fim nos apresentou a escrita de sinais, inspirada no SignWriting, a qual foi desenvolvida por uma equipe de professores da PUC de Porto Alegre da qual ela fez parte.

Falando em PUC, após a palestra maravilhosa da professora houve uma merecidíssima homenagem aos docentes e discentes da PUC-RIO, o primeiro curso de tradução no Brasil, que acaba de completar 50 anos.

Após o almoço, houve transmissão do jogo do Brasil e palestras rápidas no estilo Ted Talks. Infelizmente estava doente e não consegui ficar. Você foi às palestras ou presenciou o clima animado do jogo? Ou foi a outras palestras no evento que achou imperdível? Conte nos comentários a sua experiência. Ficarei muito feliz em lê-las.

Enquanto isso já estou ansiosa para a 10ª edição do Congresso.

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Rayza Ferreira
Tradutofagia

English-Portuguese Translator and Language Freak. Tradutora português-inglês viciada por línguas. www.linkedin.com/in/yzasferreira