A epopeia Borussia Dortmund

Um texto sobre futebol?

Gabriel
Tralhas do J’onn J’onzz
9 min readJun 1, 2024

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A alegria de quem está a cada dia mais perto de perder mais um título

Imagine a seguinte situação: 2023, um time de futebol está há 11 anos sem ganhar um título nacional, vendo um dos seus maiores rivais sempre ganhando, empilhando títulos após títulos, porém, nesse ano é diferente, esse time é o líder e depende apenas uma vitória na última rodada e o título finalmente será dele. O resultado: 2x2. O adversário? Um time de meio de tabela. Não era um jogo fácil, mas um grande balde de água fria para toda a torcida desse time. E o campeão? Novamente o mesmo time, indo para o 11° título seguido.

Começa a outra temporada: técnico questionado; o maior ídolo do time tendo problemas ao virar um reserva de luxo; uma campanha irregular no campeonato nacional… Nada parecido com o acontecido no ano anterior e ainda existe outro campeonato, o maior do continente: Champions League. Qual o cenário do time na competição? Não vai à final há 11 anos (novamente esse número). Na última vez perdeu a final com um gol quase no último minuto, novamente para o mesmo time que o atormenta há anos no campeonato nacional. Esse ano o time cai no grupo da morte, considerado o mais fraco desse grupo e consegue se tornar o líder dele. Nas oitavas, um jogo contra um bom time, mas no qual ele era favorito e passa, só que com mais dificuldades do que o esperado. Nas quartas, novamente esse time é o patinho feio, enfrentando um dos grandes times do mundo dois jogos dificílimos cheio de gols e… o time passa. Finalmente as semi finais, dois jogos contra um dos times mais ricos do mundo, novamente, quem acredita nesse time? Afinal, o que esse time está fazendo nas semis da Champions? Duas vitórias e o time volta a final após 11 anos. E o possível adversário? Ou o maior campeão, ou o mesmo time que sempre o atormenta.

Pois bem, meus caros, não precisam mais imaginar, esse filme existe, não é o roteiro de um filme, mas sim o Borussia Dortmund e a muralha amarela está vivendo sua grande epopeia.

Mas o que é uma epopeia?

Na foto, dois machos brigando enquanto um cavalo assiste

A epopeia é um gênero literário um tanto quanto sui generis, ela consiste na mistura de duas estruturas textuais a primeira vista incompatíveis: o texto narrativo e a poesia. Sendo assim ela seria uma história narrativa, mas ao invés de se organizar em prosa, em parágrafos, como era o comum dos textos épicos da Grécia Antiga (local onde surge a primeira classificação de gêneros literários), ela é escrita em versos. Ela, porém, não se resume apenas em seus aspectos formais, mas também em seus temas.

Tive a ideia para o nome desse texto após ver o tuíte do Felipe Lemos, colunista do site Ponto Futuro sobre o PSG. Nesse tweet, o time francês era definido como puro parnasianismo, uma escola literária caracterizada por uma ideia de arte pela arte, apenas a forma importa. Assim é o time de Luis Henrique, um trabalho estrutural incrível, mas no que se refere a bola jogada, um time apático.

Luis Enrique: “Às vezes perco jogos por ser muito inteligente”

O Dortmund, pelo contrário é um time que sente a partida, transforma seus jogos em narrativas grandiosas, repleta de emoções. Assim era a epopeia, centrada nas histórias grandiosas de um povo. Alguns dos grandes exemplos desse gênero são Os Lusíadas — de Camões — que basicamente cria o mito fundador de Portugal, além de A Ilíada e a Odisseia de Homero, duas histórias que sempre vem a mente quando falamos de enredos heroicos.

Tomaria um pau do Vasco

Dessa forma, enquanto o PSG é o time que agrada aos tecnocratas que buscam entender o esporte como um amontado de números de telefones, o Dortmund, como uma boa epopeia, é o time que agrada a quem gosta das narrativas humanas que permeiam esse esporte, as emoções que ele desperta, seus percalços, suas falhas, seu caos, mas também suas glórias, felicidades. Não é o time com a temporada perfeita, o que é perfeito está morto, mas é a equipe com a temporada que melhor entende a narrativa do futebol. Esporte esse esporte que como bem exposto por Milly Lacombe: “Não é fotografia, é filme. Não é imagem congelada vista por múltiplos ângulos; é história corrida baseada em coisas intuitivas e subjetivas.”

Vamos agora falar um pouco de PSG x Borussia.

1) O futebol como um jogo mental

Cruyff malhava na biblioteca

A ideia de futebol enquanto um esporte mental é bem mais subestimada do que deveria ser. Frases como a de Cruyff são repetidas ao vento e readaptadas por outros profissionais da área, Andrea Pirlo possui uma semelhante (O futebol se joga com a cabeça. Os pés são apenas uma ferramenta), mas quando vamos para o jogo real, essa concepção acaba sendo um tanto esquecida pelos próprios técnicos (que muitas vezes tentam controlar os jogadores como se fossem robôs os destratando de formas absurdas a beira do campo e no vestiário), ou na geração de analistas táticos que, como dito acima, reduzem o esporte a número de telefones. Isso não é um ataque à tática, ela é um aspecto fundamental do jogo, mas apenas um desses aspecto, não o todo.

Como diz Caio Miguel no texto: Jogo de Funções, não Posições no site Ponto Futuro:

Além disso, o jogador (humano) pode ser visto como um universo complexo em si mesmo. Esse universo é composto por muitos mundos interconectados, todos existindo e se desenvolvendo de forma holística. Considere a psicologia do jogador, por exemplo, com o consciente, o subconsciente e até o inconsciente. Esses são construídos por eventos e fatores ao longo da vida do indivíduo. Esses eventos e fatores têm sido guiados por fatores culturais, econômicos, históricos, sociológicos, fisiológicos e inúmeros outros

O duelo franco-germânico foi mais do que apenas algo restrito aos planos de seus treinadores, mas também e, principalmente, um confronto mental. Tal situação se torna evidente no segundo jogo do confronto, quando, após um suposto pênalti não marcado em favor do PSG, o que se seguiu foi um total descontrole emocional dos jogadores do time francês. Enquanto isso, o lado amarelo permanecia de maneira quase que inabalável, focado no jogo, mesmo nos momentos finais em que sofreu a clássica pressão do time que está perdendo (momento em que diversos times acabam falhando e tomando gols), seus jogadores permaneciam soberanos, executando perfeitamente o plano de seu treinador. Costuma-se dizer que isso é não sentir o jogo, eu vou pelo caminho contrário: o Borussia estava a todo momento sentindo o clima da partida e sabia que estava favorável a ele, enquanto isso, o PSG, um time pouco preparado para essas situações desfavoráveis, quebrou, pois não sabia como senti-las.

A partir disso, faz-se necessário evocar duas figuras centrais (ou centralizadas pela cobertura) desse confronto — Edin Terzić e Luis Enrique. Os dois são colocados como quase opostos no que se refere ao prestígio de um treinador. Enquanto o Catalão é visto como esse gênio tático, um estudioso de futebol, o Alemão é resumido a um animador de vestiário apenas. Isso me leva a uma pergunta: como o tal animador de vestiário venceu o gênio em duas partidas, sendo inquestionável a superioridade de seu time? Talvez isso more nesse próprio aspecto, o estigma em cima de técnicos que possuem como marca central sua capacidade de motivação e trato com os jogadores, esconde um detalhe importante: esses profissionais, muitas vezes são os que entendem o aspecto humano para além do puramente técnico e tático do esporte. Não estou dizendo que Luis Enrique não entenda disso, sequer tenho capacidade para afirmar algo assim, mas Terzić vem se mostrando um técnico excelente no que tange a gestão de vestiário, o que muitas vezes é tratado como um defeito, talvez seja seu grande triunfo, o trato com os verdadeiros protagonistas desse esporte.

2) O futebol como um jogo tempo-espacial

Eu entendo futebol como tempo e espaço. Se Messi está em um espaço que não há ninguém, tem tempo para pensar. Se ele não tem tempo para pensar, ele não consegue driblar dois ou três, se torna mais um. Tudo é tempo e espaço. — Xavi Hernandez

O outro aspecto do jogo que quero apontar aqui é a relação intrínseca entre tempo e espaço dentro do futebol. Sobre essa questão existem basicamente duas concepções, a primeira é a acima exposta por Xavi, se há espaço, há tempo. Outros técnicos possuem a visão de que a conquista de espaços no campo, parte de um controle dos tempos no jogo, sejam os ritmos impostos à partida, seja o tempo para à execução das ações.

Nessa concepção que, ao meu ver, é a entendida por Edin Terzić, ganha um papel mais central a capacidade de interpretação das situações por parte dos jogadores, uma vez que, ao não possuírem espaços predeterminados de ocupação por parte dos técnicos, eles possuem maior liberdade para exercer sua criatividade em suas ações em campo. Não quero transformar isso em um debate caricato de individual x coletivo no jogo. Afinal, tanto o PSG, quanto o Borussia possuíam um sistema e individualidades bem postas.

Entretanto, enquanto um dos clubes possuía um jogo que operava em praticamente só uma rotação, o que foi chamado por Juanma Lillo — auxiliar de Guardiola — no City, de “dostoquismos”, o time do Borussia imprimia diferentes ritmos à partida a depender do cenário, a partir disso, era exigida uma capacidade mental do seus jogadores muito maior e, como dito acima, o time estava mentalmente mais estável do que seu adversário. Independente de qual sua visão de jogo, fato é que: tempo, espaço, técnica, tática e mentalidade são todos elementos que se retroalimentam dialeticamente, que formam uma partida de futebol.

E assim, chego ao último capítulo dessa epopeia.

3) O Futebol como Experiência Emocional

Como dito acima, todos os pontos citados, são elementos que combinam-se para um fim, uma suprassunção dialética, essa que é o jogo de futebol. E o jogo de futebol, tal qual o cinema, o teatro, um show e todas as outras experiências culturais coletivas é em sua essência, uma experiência emocional. Futebol são histórias, é narrativa, é o amor da torcida por um clube, a luta dos jogadores, por 90, 180 minutos, tudo isso para um ato final: o título. Em uma temporada europeia de tantas emoções, como foi o título inédito da Atalanta na Europa League, a final do seu maior campeonato não poderia ser mais adequada: Real Madrid x Borussia Dortmund. Duas das torcidas desse continente que mais sentem seus times, mais amam seus times, mais valorizam o que é futebol: uma experiência coletiva.

O jogo está dado, adversários estão postos, escolha seu lado, voltando a analogia futebol-cinema, em uma narrativa bem hollywoodiana, o time para o que você torce se tornam os heróis e o adversário os vilões. Bem x mal. Pode até não ser tão maniqueísta assim na prática, mas esse é o espírito de uma torcida a partir do momento que o juiz apita. Pois bem, respondendo ao chamado que eu mesmo fiz: o meu lado está escolhido e é o lado amarelo desse confronto, é o Borussia Dortmund, o time que está vivendo sua epopeia e melhor lidou com futebol como é em seu princípio — uma experiência coletiva que visa gerar emoções.

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