A Hora da Estrela (1985)| Crítica

Gabriel
Tralhas do J’onn J’onzz
4 min readOct 16, 2022
Imagem de citação, falsa, do pensador. Nela a seguinte frase: Todo mundo sabe que ver o filme é ben melhor do que ler o livro — Clarice Lispector
Mas nada supera assistir o musical

Na literatura, o narrador é o artifício criado pelo autor da obra para expor sua visão sobre a história que ele está contando. No cinema, essa função é exercida pela câmera, que é o meio usado pelo diretor para por em prática suas ideias sobre o roteiro.

Abro minha crítica assim por um simples motivo: nas primeiras páginas do genial livro A Hora da Estrela, de Clarisse Lispector, somos apresentados a Rodrigo S.M, o narrador de nossa história. Em uma bela ironia, Clarice escreve: “até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”. A sentença, além da ironia, estabelece o tom que a autora quer para sua obra: um retrato cru, sem sentimentalismos. No longa, a diretora Suzana Amaral (ganhadora do prêmio de melhor direção, do Festival de Brasília, com esse filme) parece ter entendido muito bem a ideia de Clarice e, assim como Rodrigo S.M, sua câmera não quer nos fazer “lacrimejar piegas”.

A história de Macabéa, uma jovem datilógrafa prestes a ser demitida e que se alimenta apenas de cachorro-quente e coca cola - é uma cortante representação da vida de pessoas tratadas como “invisíveis” pelo resto da sociedade. Na obra original é estabelecido que Rodrigo S.M é um autor de classe média que, atravessando a rua, vê essa mulher que era diferente de qualquer outra pessoa que ele já viu - a partir disso - ele começa a imaginar como deveria ser sua vida. No longa, o narrador é transportado para a câmera que, num formato quase documentarista, funciona como um observador vendo a vida dessa inocente e sonhadora mulher que é, cada vez mais, destruída pelo seu meio social.

Assim, o foco de Suzana não é te emocionar por meio de trilhas sonoras exageradamente tristes ou com montagens hiper estilizadas de violência contra Macabéa. Não, apenas a realidade… apenas a realidade de uma personagem que, infelizmente, representa muito mais a maioria dos brasileiros do que deveria. Macabéa, Olimpo, Glória (aqui, muito melhor do que no livro, inclusive), todas as personagens são vivas, parecem reais, parece que assim como é descrito no livro, você veria Macabéa atravessando a rua, ou que Olimpo seria seu colega de trabalho, Glória sua melhor amiga. Novamente, parecem pessoas reais.

Tudo isso é potencializado pelas atuações. Para um retrato tão cru, era imprescindível interpretações críveis e que joia rara que encontram: Marcélia Cartaxa, em seu primeiro papel e com 19 anos, dá uma das atuações mais potentes que o cinema já viu. Não a toa, foi diversamente premiada pelo seu papel. Em certos momentos, é tudo tão real que parece que ela nem está atuando, apenas vivendo a sua vida.

Além disso, todo o elenco de apoio consegue acompanhar o nível. Com destaque para Tamara Taxman, como Glória, a exata contraposição de Macabéa, uma mulher já amargurada pela vida, mas que sempre quer encontrar uma fagulha de esperança na sua vida e José Dumont, o sonhador Olimpo. Isso mostra, novamente, como a diretora tinha controle de sua obra, pois todo o elenco está exatamente no nível necessário para sua proposta não ruir.

Tudo isso contribui para o final, onde toda a inocência e esperança dessas pessoas é destruída (quem já viu ou leu sabe o que estou falando) e Macabéa finalmente vira a estrela do título, o que ela sempre quis, mas não do jeito que queria. Um desfecho cruel e que se torna mais potente por ser o momento que Suzana se permite abandonar o realismo extremo, adotando um lirismo que nos permite se iludir com a personagem, achando que ela terá um final feliz, mas tudo é cortado abruptamente. Belo, mas cruel, assim como essa história deveria ser.

Conclusão: Uma boa adaptação não é a mais fiel ao livro, é a que pega essência do livro, o que ele quer falar, mesmo que, para isso, sejam necessárias alterações, e a Hora da Estrela tira isso de letra. Suzana pega um livro pequeno, de 70 páginas (mas extremamente potente) e o transforma em 96 minutos de cinema da melhor qualidade possível. Um dos dramas mais fortes que o cinema nacional (quiçá do mundo inteiro) já produziu. No fim, Macabéa, de fato, virou estrela. A obra feita a partir de sua vida continua sendo lida por diversas pessoas no Brasil, e sua adaptação virou um clássico do cinema nacional. Sem dúvidas, um dos melhores longas que já vi.

Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐ blin blin!

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