Coringa

Passados dois anos desde o lançamento do filme a minha visão mudou muito

Gabriel
Tralhas do J’onn J’onzz
8 min readMay 30, 2021

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O figurino e a maquiagem do filme ficaram impecáveis

Esse texto contém spoilers de Coringa, Rei da Comédia e Taxi Driver

Antes de mais nada, o que eu gosto do filme

Esse texto não é exatamente uma crítica, eu não darei nota nem nada desse tipo. Entretanto, irei falar brevemente do que gosto no filme. A atuação do Joaquim Phoenix é fenomenal e mereceu o Oscar. E o elenco todo está bem. A direção do Todd Philips, consegue fazer um filme bonito (mérito também da fotografia). A trilha sonora é boa. E a forma como o filme faz o desenvolvimento da personagem do Coringa é muito boa, apesar de eu não gostar do Coronga vairus.

Todd Phillips e o “politicamente correto”

Todd Phillips explica porque ele largou as comédias para fazer Coringa: Vá tentar ser engraçado nos dias de hoje com essa cultura do politicamente correto (o termo “woke culture” não tem uma tradução exata para o português, então fiz uma adaptação)

Todd Phillips antes de Coringa teve como principal trabalho os filmes de Se Beber não Case, filmes de comédia, mas segundo ele, não dá mais para fazer comédia nessa geração. Logo, ele decidiu realizar uma transição para o drama e isso revela uma coisa sobre a figura do Todd Phillips: Ele se coloca no local de fazer um filme que retrate as mazelas da sociedade, entretanto, quando os seus filmes são taxados de machistas, racistas, ou seja por propagar essas desigualdades, ele veste a desculpa do humor e critica o politicamente incorreto.

Por mais que Coringa vista a carcaça de filme socialmente importante, além de ser extremamente raso ao tratar dessas questões, o longa é o retrato de um diretor querendo dar uma resposta a essa cultura que ele tanto odeia. E é isso que eu desenvolverei com mais calma nos outros parágrafos.

Coringa e as personagens negras

Acho muito curiosa a relação de Coringa com as personagens negras. Eu não havia percebido isso até ver um vídeo genial do canal Quadro em Branco.

Vamos lá, quem são elas? A primeira é o exato retrato de como o sistema não liga para pessoas como o Arthur (“Você não se importa comigo, vocês nunca importam”, diz ele à ela em um dado momento do filme); A segunda é a senhora do ônibus que se irrita enquanto ele brincava com o filho dela; A terceira é paixão idealizada por ele e, por último, a psicóloga que ele mata.

A forma como o longa mostra: “Nossa, como esse homem branco de classe média sofre” e ao mesmo tempo pinta mulheres, que provavelmente sofrem tanto ou mais que ele, como pessoas que servem como gatilhos para a espiral de mortes e loucura do Coringa, é uma mensagem no mínimo conflitante e irresponsável (afinal, vivemos em uma sociedade estruturalmente racista e patriarcal).

Os casos que acho mais interessantes são os da Sophie (a mulher que ele gosta)e da psicóloga do final.

A primeira tem inspiração direta em duas personagens do filme Taxi Driver e, principalmente, do Rei da Comédia, ambos de Martim Scorcese. Betsy e Rita Keane, respectivamente. Gosto muito como o Scorcese a todo momento mostra como essas mulheres estão certas em rejeitar os protagonistas. Já em Coringa, mesmo que não haja efetivamente uma rejeição de Sophie a Arthur, o filme é todo construido para você criar empatia com ele, então quando se é revelado que tudo não passou de idealizações da cabeça da personagem, você se sente triste por ele, elevando aquela mulher a um status de culpada pela frustração do protagonista. Situação essa que nunca ocorre nos dois outros filmes citados, pois lá é claramente mostrando como tanto Travis Bickle (Taxi Driver) e Rubert Pupkim (Rei da Comédia) são figuras patéticas e problemáticas.

Já a psicóloga da cena final do filme é uma personagem praticamente inútil na narrativa, entretanto, a cena em si me intriga. Quando Joker começa a rir, ela pergunta do que ele está rindo e a resposta dele é: “Eu pensei em uma piada”, ela pede para ele a contar a piada e ele responde com um: “Você não entenderia”. Essa cena tem várias interpretações, entretanto, ela passa muito uma mensagem de: você não entenderia minha dor. Afinal, o longa todo se ancora em nos mostrar como o protagonista é uma pessoa a margem da sociedade, que ele sofre o que ninguém sofre e que uma mulher negra nunca entenderia a dor dele. Lembra da declaração do Todd Phillips? Tudo isso me soa como ele mostrando: Vejam minorias, o homem branco mediano também sofre e vocês não ligam para ele. O retrato de um diretor revoltado com a geração mimimi.

Coringa e a Violência

Você Nunca Esteve Realmente Aqui é um filme genial dirigido pela Lynne Ramsay. Nele nós somos apresentados a um assassino de aluguel, interpretado pelo Joaquim Phoenix, que é contratado para salvar uma criança de uma rede de tráfico humano e prostituição infantil (isso não é spoiler, é a sinopse do filme). O longa teria de tudo para cair em uma história de ação extremamente sangrenta e criar um herói cult que seria aclamado por muitos como o salvador de criancinhas dos pedófilos malignos. Se isso acontecesse seria um filme minimamente genérico, só que a diretora opta por um caminho muito mais corajoso. Não vou adentrar muito, pois esse não é o foco aqui, eu quero falar sobre como a violência é retratada.

A diretora nunca nos deixa achar os assassinatos do filme como algo divertido, ela prefere mostrar o quanto eles são brutais e focando principalmente nas consequências dos mesmos. Isso gera uma sensação de repulsa e até nos faz duvidar se aquilo é realmente necessário. Obviamente, essa não é a única forma de se retratar violência, John Wick tem uma abordagem muito interessante, pois mesmo transformado em algo vendável, divertido e até prazeroso, o filme faz de tudo para mostrar como aquele universo é irreal. Tudo lá soa falso e a violência é sem propósito, o filme se poupa de tentar criar justificativas para os atos do protagonista.

Já Coringa, ao meu ver, vai no pior caminho possível. O filme glorifica e justifica a violência de seu protagonista e nem se esforça para ao menos transformar o universo em algo ficcional. Pelo contrário, se esforça ao máximo para espelhar aquele mundo no nosso. E quando o Coringa mata alguém, sempre tem justificativa. O cara que tratava ele mal no trabalho é assassinado, o que tratava bem sobrevive. Os riquinhos que atacam ele no ônibus são suas primeiras vítimas e o principal ato do filme é quando ele assassina publicamente o comediante que o fez passar vergonha na TV. E no final, ele é ovacionado publicamente, sendo exaltado pelos cidadãos de Gotham.

O climax do filme foi de tirar o fôlego

Essa tentativa de justificar os atos do coringa é curiosa, pois abre espaço para uma discussão mais complexa: como um assassino é retratado dependendo de sua cor de pele, ou etnia. Um árabe, principalmente os Muçulmanos, sempre são estigmatizados como terroristas, os negros são os vagabundos assassinos, já quando se trata de um branco, a mídia e o cinema sempre tenta justificar o porquê dos atos dele. E esse longa apenas contribui com isso. Coisa que não posso falar de Taxi Driver e Rei da Comédia. Sempre é mostrado como, mesmo os protagonistas sendo vítimas, em parte do sistema, eles são perpetuadores, ao mesmo tempo. Travis Bickle é racista, machista, homofóbico, já Pupkim é um narcisista e os longas nunca se abstêm de mostrar isso claramente.

Quando no final dos filmes, ambos os personagens terminam glorificados e ovacionados, a sensação é de desproposito, até de tristeza. Em Coringa é de felicidade…

Se você luta por causas sociais você é como o Coringa

Talvez de todas as caixas em que o longa é colocado, a mais contraditória é a de “filme político”. Sim, de fato, ele trata de questões políticas, o problema é como trata.

O filme é totalmente delirado politicamente, ele atira para todos os lados possíveis: quer falar de luta de classes, doença mental, sobre como a sociedade marginaliza pessoas, entre outras diversas coisas, mas tudo isso é tratado de uma maneira completamente rasa. A doença mental é usada como uma das justificativas que levam o nosso protagonista a virar o Coringa. Essa associação entre doença mental e violência é algo extremamente batido e problemático. E por mais que o próprio Joaquim Phoenix tenha dado entrevistas à época falando que transtornos psicológicos não são o que fazem alguém cometer crimes, o filme falha em demonstrar isso. A mensagem que o longa passa é a de que o Arthur é quem é por ter problemas psicopatológicos.

Além da questão da doença mental, outra abordagem é igualmente problemática, a desigualdade social. Durante o longa, é demonstrado como Gotham é uma cidade completamente marcada por uma luta de classes, essa que o roteiro nunca aprofunda muito. Por isso, o Coringa nos seus atos acaba se tornando um ídolo para essas pessoas, já que ele assassina os ricos e poderosos, e todo esse povo começa a se vestir como ele em sua homenagem. Isso passa a mensagem extremamente problemática que pessoas que lutam por diretos sociais são como o Arthur, assassinos.

Me deixa muito curioso o final do filme, após inúmeros atos políticos, ao invés de colocar seu protagonista como um agente político, o que ele faz é em um momento falar: “Eu não sou político, eu não sou nada”. Desse modo, isentando tanto a personagem, quanto o filme de se posicionar e, se você quer fazer uma obra política, ao menos tome uma posição e não saia atirando para todos lados sem coerência alguma.

Conclusão

Acredito eu que a coisa mais fascinante do palhaço do crime é o fato dele não ter uma origem exata. Como diz Alan Moore em sua obra prima, a Piada Mortal: “O Coringa tem um passado de múltipla escolha”. Christopher Nolan entendeu isso e genialmente coloca a personagem para em diversos momentos de Cavaleiros das Trevas para contar diversas origens para as suas cicatrizes e seu sofrimento. Já Todd Phillips tentou um caminho diferente, saiu em uma empreitada para justificar o Joker, mas o resultado é uma salada mista, que até é digerível, mas com muito esforço. Um longa sem coerência política, com um tratamento horrível com suas personagens negras e que ainda glorifica o protagonista a uma posição que ele não merece. O que me deixa decepcionado, afinal é o meu vilão favorito, mas vou seguir o excelente conselho dele mesmo e por um sorriso na minha boca.

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