De Fate: A Saga das Winx à Riverdale: O tokenismo na cultura pop

Com o avanço dos debates sobre minorias sociais as séries começaram a ter elencos mais diversos, mas fica questão: Qual diversidade?

Gabriel
Tralhas do J’onn J’onzz
10 min readOct 30, 2022

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Foto da personagem Dane, d’A Saga Das Winx, sorrindo

Observação: o texto a seguir se refere unicamente ao cenário de Hollywood, pois é o mercado que domina a indústria. Obviamente, a situação é diferente em outros locais, mas eu não teria capacidade para discutir sobre elas por desconhecimento.

Antes de mais nada: O que é tokenismo?

Tuíte. Nele temos um bolsonarista que escreveu a seguinte mensagem: A esquerda é tão nojenta que está escondendo o fato de o presidente e de sua esposa ter levado um gay!!! (contexto: velório Rainha Elizabeth). Embaixo, uma foto de Michele e um homem gay sentados num sofá

O termo foi cunhado por Martin Luther King Jr, em 1962, nas palavras do ativista:

“A noção de que a integração por meio de tokens vai satisfazer as pessoas é uma ilusão. O negro de hoje tem uma noção nova de quem é.”

Na foto temos Martin Luther King Jr cumprimentando uma multidão que estava protestando pelos direitos civis dos negros

Tokenismo vem da palavra token, que em português seria símbolo. No contexto da frase acima posta, King falava sobre a ideia de que os ativistas negros iriam se contentar simplesmente com alguns “tokens”, algumas pessoas negras, usadas como símbolo de inclusão. Dessa forma, esse fenômeno pode ser compreendido como o uso de pessoas que pertencem a um grupo minoritário como forma de criar uma ilusão de diversidade, ou até para mascarar preconceitos. Nas palavras do presidente:

“Eu não sou racista, meu sogro é o Paulo Negão”.

Essa tática é muitas vezes utilizada por grandes empresas para passar o ar de socialmente responsável, como forma de manutenção de imagem pública, mas que, em nenhum momento, questiona o sistema que mantém as opressões vigentes. É uma inclusão, mas sem qualquer substância.

Eduardo no twitter: “O mlk foi rascista e ele e os amigos querem ter razão ainda, puta merda”. Issey responde Eduardo: “Martin Luther King Was racist?”. Eduardo responde Issey: “No, KKKKK mlk it’s slang in Brazil for kids”
grandes diálogos da internet

O “Tokenismo” na “Cultura Pop”

Pare e pense: Quantos personagens que permearam sua infância eram negros, LGBTs, mulheres, etc? A resposta da maioria provavelmente será um número ínfimo se comparado ao número de personagens homens, brancos, cis-gênero e heterosseuxais. É um fato que as produções audiovisuais, em especial as Hollywoodianas, sempre pecaram muito na inclusão de minorias.

Cena de Bojack Horseman. Apresentando um programa de televisão, o âncora diz: “Será que o conceito de mulheres terem escolha foi longe demais? Juntamos esse painel diverso de homens brancos e de terno para falar sobre aborto.”
Na prática a televisão não liga muito pra essas tais “minorias”

Os primeiros grandes heróis do cinema foram os protagonistas dos faroestes, filmes que valorizavam o homem, branco e que eram o ideal de masculinidade da época (obviamente, são filmes frutos de seu tempo, é apenas um exemplo). Muito tempo se passa e surgem os blockbusters com clássicos como Tubarão e Star Wars e… Os heróis continuam os mesmos homem brancos e que representam o ideal de masculinidade da época.

Logo da Disney com as cores do arco-íris e a palavra “pride” (orgulho).
Pastor Junio, pode passar o século XX inteiro fazendo produção racista e depois se passar por progressista?

Entretanto, por volta dos anos 2010’s essa realidade começa a mudar. A princesa da Disney não é mais a Branca de Neve, mas sim Tiana e Moana. Alerquina se torna um ícone mais popular atualmente do que o Super Homem, o grande filme da Marvel esse ano é Pantera Negra 2… será que a realidade mudou? Eu, como homem negro, queria muito vir aqui e falar que sim - mas se fizesse isso - estaria contando uma grande mentira. O que acontece na verdade são inclusões pontuais, que visam dar um ar de produtos inclusivos, ou seja, tokenismo. Irei aprofundar em dois casos de séries extremamente populares entre adolescentes (público mais suscetível a ser influenciado por estereótipos): Riverdale e Fate: A Saga das Winx.

Riverdale

Foto da série Riverdale. Quatro pessoas na foto. À esquerda um homem branco, de cabelo ruivo e ao seu lado, uma mulher branca de cabelos pretos. À direita um homem branco vestindo um gorro em seu cabelo e ao seu lado uma mulher branca de cabelo loiro
Um diverso elenco de homens e mulheres brancas

Uma das séries mais polêmicas da atualidade, Riverdale não é um caso de uma série que pode se chamar de convencional, mas o fato é que é absurdamente popular, rendendo seis temporadas e já tendo sua sétima — e última — confirmada. Talvez o grande mérito do programa, como aponta Pedro Lovallo, no excelente texto: Cultura Pop Como Mal Hereditário: Notas Sobre Riverdale é como ele consegue trabalhar com figuras tão arquetípicas do imaginário estadunidense de TV e de certa forma, subvertê-las, virando muito mais uma paródia de uma série teen do que de fato um exemplo desse tipo de seriado. Entretanto, existe uma área em que essa subversão não funcionou que é na representação de grupos minoritários.

Foto do personagem Kevin de Riverdale

Peguemos o caso de Kevin, o famoso “personagem gay” do programa. Logo no primeiro episódio somos apresentados a ele como o arquétipo do melhor amigo gay de Betty, que também é apresentada unicamente como um arquétipo de menina doce e gentil. Porém, diferente da personagem de Lilly Reinhart, Kevin continua tendo apenas um traço de personalidade: sua sexualidade. Isso se torna estranho ao saber a informação de que o criador, Roberto Aguirre Sacasa é abertamente homossexual e se resume a criar um personagem “token” de inclusão lgbt. No decorrer da série, outra personagem (Cheryl Blossom) se descobre lésbica, uma nova chance de se mudar essa situação e, ao contrário do primeiro caso, Cheryl é definitivamente a protagonista com mais personalidade do programa, mas quando o assunto é sua sexualidade… O roteiristas se resumem a fazer ela sofrer diversas e diversas vezes em relacionamentos malfadados, como se ela fosse condenada ao sofrimento eterno por sentir atração por mulheres.

Entretanto, esse nem é o pior caso, porque Roberto também quis ser diverso racialmente… e falhou miseravelmente. Na primeira temporada temos Chuck e as membras da banda Josie e as Gatinhas. O primeiro se resume a fazer Slutt-shamming com as alunas da escola; enquanto as meninas da banda pouco têm de personalidade e a mais explorada delas (que é tão relevante que eu sequer lembro o nome) se resume a fazer par romântico com Archie e, após a separação, ela vira uma figurante, sem nenhum diálogo. Essa situação pareceu ter sido modificada no segundo ano, com a inclusão de Tony Topaz, que se mostra uma das melhores personagens da série por… 5 episódios. Após isso ela se relaciona com Cheryl e passa a ser figurante de luxo (a atriz foi do elenco principal por todas as temporadas e na maioria das vezes só aparecia de fundo na série).

Isso rendeu uma carta aberta da atriz, Vanessa Morgan, que interpreta Tony (detalhe: ela era a única atriz negra do elenco naquele momento), na qual ela apontou como na indústria personagens negros são renegados a apenas estarem lá, como uma cota de diversidade, ou apenas como suporte de personagens brancos, mas sem nunca ter qualquer desenvolvimento próprio. Felizmente, Roberto reconheceu o erro que havia cometido e mitigou a situação com uma história própria para Tony e a adição de uma nova personagem, Tabitha Tate, que é sem dúvidas a melhor adição que a série já teve. Entretanto, essa ação não veio de maneira orgânica por parte dos roteiristas que perceberam o seu erro, veio após um escândalo público de uma atriz expondo tais problemas. O que rende o questionamento, será que se não fosse isso, algo teria mudado?

Fate — A Saga das Winx

Imagem que exibe personagens do desenho Clube das Winx e da série Fate: A Saga Winx

O Clube das Winx foi um desenho marcante do início dos anos 2000. Uma das suas características mais surpreendentes, para a sua época, era a diversidade de seu elenco, tendo personagens negras, latinas (pra Europa e Estados Unidos isso meio que é uma raça) e asiáticas (mais especificamente do leste asiático). Em 2021 saiu sua adaptação live-action da Netflix, um sucesso, visto que atingiu o top 1 global da empresa em suas duas temporadas. Porém, uma coisa incomodou muito os fãs da animação italiana: Com exceção de Aisha (a personagem negra), o resto do elenco inteiro da série era branco.

Musa, originalmente pensada como uma personagem de origens chinesas foi feita por uma atriz canadense; Riven, também pensado como alguém do leste asiático feito por um ator britânico e Flora foi substituída por uma nova personagem, sua prima Terra também feita por uma atriz britânica. Apesar da qualidade dos intérpretes (esses três são, provavelmente, os melhores do elenco, eles levam essa série muito mais a sério do que deveriam) não deixa de ser embranquecimento de pessoas de cor.

Mas olhe pelo lado bom, ainda temos dois personagens negros (Aisha e Dane) e um deles é bissexual 🤯🤯🤯! Olha que série inclusiva! Aisha, na primeira temporada, sequer tem uma história própria, servindo como uma espécie de babá da Bloom (que é branca, lembra do que a Vanessa disse?) e Dane é reduzido a ser um antagonista (o mais unidimensional de todos) e é claro, a participar de um trisal porque, obviamente, pessoas bissexuais só podem se relacionar romanticamente se for em relacionamentos abertos e desprovidos de qualquer relação afetiva. O pior é que a série tenta ser socialmente relevante — com a Terra mandando frases prontas nível Quebrando o Tabu sobre gordofobia — mas nunca desenvolvendo de fato esse tema (inclusive é outra coisa problemática na TV, personagens gordos só podem serem retratados em séries como pessoas inseguras e que sofrem com o seu corpo? Uma pessoa não pode ser acima do peso e feliz?) e Bloom usando palavras como mansplaining em contextos em que elas não são aplicáveis (inclusive, o que é um desserviço porque banaliza um termo sério).

Na segunda temporada, a série consegue ser mais cretina (no caso de Riverdale eu até posso ter uma boa vontade de achar que eles tinham boas intenções, essa série não, ela é cretina mesmo). Para controle de danos trazem a Flora, dessa vez, interpretada por uma atriz latina; criam um novo personagem, Grey para compensar o que fizeram com Musa e Riven; e Terra se assume lésbica (isso a série dava indícios desde a primeira temporada, então — talvez — esse caso não tenha sido tão controle de danos). Porém, pouco importa isso, o dano já está feito, uma série que nasceu racista por embranquecer personagens racializados, além de reproduzir estereótipos sobre pessoas bissexuais, não pode simplesmente achar que acrescentar novos 2 personagens novos e introduzir a sexualidade de uma personagem vai mudar algo.

Essa série talvez seja o exemplo mais puro de “tokenismo” na cultura pop, é como King diz: acha que vai satisfazer as demandas de inclusão por meio de tokens. Porque ao fim é isso, todos os personagens supracitados não passam de cascas vazias de representatividade, pouco tem de substancial ou concreto nisso.

Dito tudo isso, qual a solução?

Logo do Partido da Mulher Brasileira
Pra mostrar que é contra a tokenização, o Partido da Mulher Brasileira encheu suas fileiras de homens. Verdadeiros feministos!

No seu ensaio ‘Prazer Visual e Cinema Narrativo”, a crítica de cinema e psicanalista, Laura Mulvey profere a seguinte frase: “No cinema a câmera tem gênero e é masculino”. Eu completaria com: a câmera tem gênero, raça e sexualidade. Sendo assim, o primeiro passo sempre será diversificar os profissionais que trabalham atrás das câmeras, mas como é mostrado no caso de Riverdale, simplesmente pertencer a uma minoria não te exime de reproduzir preconceitos quanto a mesma. Por isso, além de artistas mais diversos, é necessários buscar por artistas de fato engajados nessas pautas.

Alguns exemplos já existem. Dentro das séries teen e romance, Heartstopper e Young Royals fazem um ótimo trabalho de representatividade LGBT e, no caso de Young Royals, também, racial, na tv. Nas animações os recentes Steven Universo e She-ra revolucionaram e abriram de vez as portas para temas de sexualidade em desenhos infantis (quem há 5 anos atrás conseguiria imaginar que o clímax do episódio final de uma das animações mais populares dos últimos anos seria — 🚨🚨🚨ALERTA DE SPOILER 🚨🚨🚨 — um beijo lésbico?). Dentro do mercado de super-heróis, o mais lucrativo da atualidade, Watchmen foi uma das melhores representações do sistema racista dos Estados Unidos que a televisão produziu em tempos e Aves de Rapina redefiniu, totalmente, a Alerquina, de uma personagem que servia unicamente de fetiche sexual, para a protagonista de um longa que tem como grande temática a libertação feminina do poderio masculino.

Já, no terror, todos os 3 filmes de Jordan Peele são casos exemplares de como um artista engajado pode moldar um gênero majoritariamente branco e masculino para ser um grande catalisador das melhores discussões raciais (de homens e mulheres negras), no cinema, muito melhor do que de filmes abertamente políticos, como o recente ganhador do Oscar Green Book. Até a nova trilogia de Halloween, mesmo dirigida e escrita por homens, faz um trabalho interessante de mudar a dinâmica do poder dentro do slasher, com não mais a mulher fugindo do assassino (sempre homem), mas ela caçando o assassino.

Ilustração de Conceição Evaristo seguida de uma frase sua: “Não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário. É para acordá-los dos seus sonos injustos.”
arte por 1dinelli

Obviamente, tais produções não vão resolver os problemas que são estruturais, nenhuma solução para eles é possível dentro do capitalismo (organize-se e ajude a transformar a estrutura: aqui ou aqui), e a inclusão dentro dele no fim só interessa se dá lucro. Mesmo assim, essa prática serve, ao menos, para mitigar essas desigualdades dentro do cinema e, ainda, para desconstruir estereótipos. Afinal, a arte é uma ferramenta ideológica que, da mesma forma que foi usada para perpetrar por anos esses estereótipos, pode, igualmente, ser usada para revertê-los (ao menos parcialmente).

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