Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022)| Crítica

Sam Raimi mostra novamente por que é o maior da história do gênero

Gabriel
Tralhas do J’onn J’onzz
8 min readAug 25, 2022

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tá pra nascer estética mais tosca

O texto contém spoilers pesados sem os quais eu não conseguiria fazer a crítica. Sigam por sua própria conta e risco.

MCU e Sam Raimi, uma união improvável. Enquanto o estúdio que domina o cinema atual (e está destruindo-o, mas isso é assunto pra outro dia) se notabilizou por um cinema “fast-food” (filmes padronizados, sem identidade própria e feitos a toque de caixa), o diretor da excelente trilogia do Homem-Aranha sempre se notabilizou por filmes com sua própria marca como cineasta. Ideias, inicialmente, incompatíveis e que poderiam render um desastre total. Entretanto, não foi o que aconteceu, Raimi parece ter tido carta branca para fazer o filme que queria. Uma mistura de terror com super heróis, que se difere muito de tudo já feito anteriormente pela empresa e rendeu um excelente filme, não apenas se comparado ao resto da Marvel, um excelente filme no geral.

Menos lógica, mais criatividade e foco nos personagens

Calem a boca sobre furos de roteiro

A maior crítica recebida pelo filme e que o fez tão polarizante são os famigerados furos de roteiro e conveniências narrativas, uma crítica que eu até entendo, mas não concordo. Explicando: tais críticas até são válidas quando um filme ou série estabelece uma regra e, posteriormente, a quebra a fins de facilitação narrativa. Isso evidencia uma obra mal escrita e incoerente dentro da própria mitologia (e ainda assim, na maioria dos casos, não importa muito). Entretanto, não vejo esse como o caso desse filme em específico, pois Doutor Estranho 2 nem uma mitologia estabelece, o longa não estabelece nenhuma regra para quebrá-la depois.

Pelo contrário, o que o roteiro de Michael Waldron (da ótima série Loki que, junto com esse filme, é a melhor coisa da empresa no pós-ultimato) faz é deixar em aberto o filme para qualquer possibilidade narrativa escolhida por seu diretor, sem normas preestabelecidas. Assim, se Sam Raimi quiser fazer um Doutor Estranho zumbi, uma Wanda assassina de slasher, uma sequência de ação envolvendo notas musicais, que é uma das melhores da história do gênero, ele pode porque o texto nunca o impediu de fazer isso. Obviamente, você pode não gostar dessas escolhas, mas meu ponto é: não faz sentido criticar o longa por uma proposta de lógica que ele nunca se propôs a cumprir.

Além disso, outro mérito do roteiro é ancorar a trama em uma ideia bem simples: Wanda, para recuperar seus filhos, quer capturar América Chavez (uma menina com poderes de viajar entre universos) e o Doutor Estranho quer impedi-la. Caso o plot fosse mais complexo, o longa poderia gastar muito tempo com diálogos expositivos (esses que até existem no primeiro ato, mas nada que chegue a me incomodar muito), querendo explicar e reiterar sua trama a todo momento, como é o padrão da Marvel, e acabar deixando de lado algo mais importante: os personagens.

Isso foi o que fez Sam Raimi se colocar como o maior do subgênero de filmes de super-heróis: focar mais nas personas que compõe o filme do que em criar uma trama super complexa e em Doutor Estranho 2 isso se repete. A dupla de protagonistas cativa, pois ambos possuem motivações relacionáveis e que são exploradas ao longo do filme. Wanda é uma mulher se recuperando do luto do marido e dos filhos e que se sente atormentada ao saber que eles existem em outro universo, querendo fazer de tudo para recuperá-los; Estranho, um homem profundamente arrogante que perdeu seu status de mago supremo e o amor de sua vida. Ambas são pessoas que têm obsessões irreais, uma por querer simular uma família perfeita que é impossível e a outra por querer ser o protagonista de tudo.

Uma mistura (quase) perfeita entre autoria e a Marvel

Como dito acima, Raimi é um mestre e tinha uma proposta: um filme de terror dentro da Marvel. Por ser um universo compartilhado, o MCU possui uma certa fórmula em seus filmes, uma estrutura base que guia tudo e uma análise comum é colocar nela a culpa do problema dos filmes. Porém, eu discordo de que a fórmula seja o problema. Desde que o cinema existe, longas seguem certas batidas narrativas em comum e ainda funcionam como obras únicas, pois seus diretores conseguem colocar sua identidade dentro delas. A Pixar, por exemplo: seus longas geralmente seguem uma lógica interna de “dois personagens se conhecem — um problema acontece — eles se unem para resolvê-lo — no meio eles se separam por uma briga para no fim se reatarem e resolver o problema do início”. Mesmo assim, ninguém dirá que Montros S.A e Procurando Nemo parecem o mesmo filme. Seguem a mesma estrutura, mas possuem identidade.

Assim, o problema do MCU nunca foi sua fórmula, foi o fato de a maioria de seus diretores seguirem a mesma ideia estilística, tanto Homem Aranha de Volta ao Lar (Jon Watts) quanto Capitã Marvel (Anna Boden e Ryan Fleck) parecem ser longas feitos pelas mesmas pessoas. Não parecem humanos fazendo as obras, parecem robôs criados por Kevin Feige. Já no caso de Doutor Estranho: No Multiverso da Loucura, isso felizmente não acontece. Sim, a fórmula ainda está lá, mas é executada por uma direção que dá identidade ao filme.

Isso é visível na fotografia, enquanto a maioria dos filmes do estúdio seguem uma paleta de cores acinzentadas, sem nenhum contraste, criando imagens opacas e utilizam dos efeitos especiais para coisas sem peso, apenas bonecos genéricos de CGI. Raimi vai por um outro caminho, aliado a seu cinematógrafo de longa data Bill Pope, faz um filme colorido e inventivo visualmente, filmando todas as cenas com um certo escopo de grandiosidade, graças a uma câmera enérgica que nunca deixa a ação parar. O cenário não é simplesmente o local onde ocorre a ação, ele é parte da ação, ele parece um local vivo, onde de fato vivem pessoas reais. Principalmente porque várias da cena são filmadas em locações reais (o que deveria ser algo básico, mas na Marvel nem tanto, visto o último homem aranha que até uma cena de festa foi gravada em Chroma Key). Além disso, no que tange a efeitos, ele recorre muito a efeitos práticos, o que traz maior tangibilidade às cenas e quando é necessário CGI e Chroma Key tudo parece bem mais acabado que o padrão Marvel, vide as belíssimas cenas de viagem multiversal.

Comparação fotografia e CGI: à esquerda Vingadores Ultimato e Homem Aranha sem volta para casa, à esquerda Doutor Estranho 2

Além disso, o filme varia muito bem entre diversos gêneros, no terror há uma mescla entre slasher e filmes de possessão, criando sequências bem tensas e a depender do espectador, até assustadoras. Inclusive, pelo grande nível de violência gráfica (surpreendente para um filme +14), que cria uma imagem aterrorizante de Wanda, já que cada vez mais seu corpo vai se ensanguentando e sua roupa rasgando, representando a decomposição moral da personagem. Quando recorre a jumpscares eles são feitos com certa elegância e não simplesmente coisas aparecendo do nada na tela. Há sempre um foco em criar uma atmosfera para depois vir o susto. Na sequência que se passa na área de encanação dos illuminatis, por exemplo, o filme fica quase mudo, focando apenas no som da água caindo em câmera lenta, enquanto a Wanda vai aparecendo até de fato ocorrer o jumpscare. Não é nada revolucionário, mas a execução cria algo excelente.

Na comédia, o filme foge do humor clássico da Marvel que é sempre focado em mostrar falhas dos filmes como se ser autoconsciente eximisse o longa de suas falhas. Aqui, há um humor bem bobo e inocente que para alguns pode soar meio brega, mas que pra mim cria uma atmosfera cativante. Breguice esta que também está presente na parte romântica do filme. Na minha concepção, brega não é necessariamente ruim, cabe a cada espectador avaliar se ele gosta ou não desse estilo de narrativa. No meu caso, eu fiquei o tempo todo investido nesse bloco, porque o que tem de brega ele tem de sincero na representação do amor não correspondido do protagonista. Além disso, na ação o filme é bem inventivo, explorando ao máximo o fato de ter um protagonista e uma vilã com poderes mágicos.

Entretanto, como nem tudo são flores, há certos problemas sim e o maior deles é a sequência dos illuminatis. O filme que até então vinha em um ritmo frenético, mas extremamente divertido, de uma hora para outra interrompe tudo para uma sequência relativamente chata de puro fanservice barato e de exposição terrível. Sim, é legal ver o professor Xavier, novamente interpretado por v̶e̶l̶h̶o̶ ̶d̶a̶ ̶h̶a̶v̶a̶n Patrick Stewart (os diálogos dele são os únicos bons da cena), ou o John Krasinski interpretando Reed Richards, ou a volta do Chiwetel Ejiofor como Mordo, mas isso vem em detrimento do ritmo do filme e da própria história, pois seria muito mais interessante ver o protagonista descobrindo certas coisas do que ver elas sendo jogadas por meio de diálogos expositivos. É um momento de clara interferência do estúdio que poderia ter significado o início da decadência do filme…

São a mesma pessoa, não tem como

Até que como um anjo, Wanda aparece e assassina todos (eu disse que teriam spoilers), numa sequência absurda de bem dirigida e tão violenta que eu não sei como o filme conseguiu +14 de classificação indicativa e que chega ao ápice na morte do Xavier em um momento de pura apoteose emocional. É quase como um anti fanservice dentro do próprio fanservice, que eu amei e impediu o filme de se perder totalmente, mas não redime o resto da sequência que é chata, mal escrita e mal dirigida.

Conclusão:

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura não é um filme revolucionário (nem tenta ser), na verdade, pelo contrário, é um filme que utiliza de diversas bases do cinema para ancorar sua narrativa. Porém, isso está longe de ser um demérito, pois possui um gigante do cinema realizando um blockbuster de heróis que não tem medo de ser um e até por isso seja um dos melhores exemplares recentes do gênero. Um filme brega, mas que justamente por não ter vergonha de ser assim, funciona. Não é nenhuma obra prima, tem alguns problemas de ritmo, mas é definitivamente um dos melhores exemplares da Marvel e um dos melhores filmes do ano até então.

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