A pandemia e o dilema do comum

Precisamos olhar para o conflito entre interesses pessoais e interesses coletivos com muito mais seriedade e profundidade

Pedro Telles
Transborda
5 min readApr 19, 2020

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Enorme parte das pessoas com quem tenho contato próximo estão, de alguma forma, deixando de seguir as recomendações mais estritas para a quarentena.

Não é que estejam ignorando a importância de ficar em casa, vivendo a vida normalmente. Pelo contrário: mudaram profundamente seus hábitos.

Mas ainda assim, às vezes saem para correr ou passear com o cachorro. Ou foram visitar a mãe, que também está há semanas sozinha em casa. Ou pedem uma comida delivery. Ou decidiram, no meio da quarentena, fugir da sua casa para algum outro lugar. Ou qualquer coisa assim.

De alguma forma, saem (ou ja saíram) de casa em um contexto que pode ser considerado desnecessário. Mas lhes pareceu importante sair para manter sua saúde física, psicológica ou emocional — ou simplesmente saíram porque acharam que, tomando certos cuidados, não fariam mal.

Alguns países tentam resolver isso impondo quarentenas estritas e com regras claras sobre o que é permitido, quando possível abrindo válvulas de escape. Mesmo nesses países conflitos existem. Aqui no Brasil, infelizmente estamos em situação muito pior, com um presidente que se esforça para impedir qualquer forma efetiva de quarentena — o que dificulta muito o estabelecimento de regras ou acordos sociais de qualquer tipo.

A princípio, a pandemia traz o que pode ser visto como um dilema ético novo para nossa vida em sociedade, onde o mero fato de sair para pegar sol na rua se tornou uma possível ameaça de morte. Mas na verdade, estamos lidando mesmo é com uma versão mais explícita de um dilema ético antigo: o do conflito entre o interesse pessoal e o interesse coletivo.

Quando escolhemos comer carne sabendo que sua produção causa a destruição da Amazônia e mudanças climáticas, colocamos o interesse pessoal sobre o coletivo. Ou quando optamos desnecessariamente pelo uso do carro ao invés do transporte público ou não-motorizado, gerando mais poluição. Ou quando buscamos formas de burlar a cobrança de impostos, impactando o financiamento de serviços públicos. E assim por diante.

Todas essas são escolhas que, ao serem adotadas por muita gente, levam a mortes e sofrimento. Da mesma forma como não seguir estritamente a quarentena durante a pandemia. Como disse acima, no combate ao coronavírus o peso da escolha é mais explícito — mas o dilema ético por trás é fundamentalmente o mesmo, entre liberdades individuais e o bem comum.

Não digo isso apontando o dedo na cara de ninguém. Eu mesmo já coloquei o interesse pessoal sobre o coletivo em muitas escolhas assim, na quarentena e em outros aspectos da vida. Mas a pandemia nos convida a encarar de verdade esse dilema — e agir com relação a ele de forma muito mais séria e contundente do que temos feito nas últimas décadas ou séculos.

Há duas dimensões nessa reflexão. A primeira é a pessoal: para além de seguir mais estritamente a quarentena, do que cada um de nós está disposto a abrir mão não apenas agora, mas pelo resto da vida? Em quais outros campos da vida cada um coloca o individual acima do coletivo, muitas vezes sem nem pensar sobre isso?

A segunda dimensão é a coletiva. Sabemos que seres humanos estão longe de ser tão conscientes ou altruístas quanto gostaríamos de acreditar, e inúmeros estudos mostram a tendência que temos a ignorar ou minimizar os impactos coletivos dos nossos atos. É aqui que entram acordos coletivos voluntários ou mandatórios: quais novas regras e iniciativas precisamos estabelecer, seja voluntariamente em nossas comunidades, seja via políticas públicas e ação do Estado, para definir melhor os limites que não podem ser cruzados e zelar por esses limites?

Se você para pra pensar, a separação entre interesse pessoal e interesse coletivo só é possível em pouquíssimas situações. A grande maioria das nossas ações individuais gera algum tipo de impacto coletivo. O debate sobre liberdades individuais, portanto, não pode existir descolado de suas implicações coletivas — mesmo as implicações que pareçam mais distantes e indiretas. Até porque essas implicações interferem nas liberdades de outros indivíduos. E o coronavírus nos convida, com muita força, a pensar e agir sobre isso.

Nesse processo, não podemos ignorar o profundo impacto das desigualdades — tema que mereceria um texto inteiro só para si. A liberdade para tomada de decisões colocando interesses pessoais acima de interesses coletivos sempre foi maior para as pessoas mais privilegiadas. Quem tem mais dinheiro sempre tem mais opções, e quem não faz parte de grupos historicamente discriminados sempre enfrenta menos restrições. Sendo o nosso grau de liberdade maior, o nosso grau de responsabilidade de pelas consequências disso é maior também.

Pela mesma razão, é sempre delicada a imposição de mais limites sobre quem é menos privilegiado. Isso se manifesta em inúmeras esferas, de negociações internacionais a decisões de compra pessoais. Na ONU, países em desenvolvimento insistem há décadas que países desenvolvidos precisam arcar com maiores responsabilidades (e maiores despesas) no combate às mudanças climáticas, porque historicamente eles emitiram muito mais gases de efeito estufa responsáveis por gerar o problema. No debate sobre uso de carro versus uso de transporte público, é legítimo o desejo de uma pessoa de baixa renda que passou anos juntando dinheiro para comprar o seu veículo próprio. E tudo isso precisa ser levado em consideração em qualquer reflexão ou implementação de regras.

De qualquer forma, como muita gente já tem dito, está claro que não cabe desejar que a vida “volte ao normal”. Porque no normal a que estávamos acostumados, nem mesmo relação entre pessoal e coletivo estava tão evidente. Quando a pandemia for embora, precisamos não apenas manter essa consciência viva, como transformá-la em ações concretas em muitas áreas para além da quarentena.

Para além de ficar em casa, aqui vão alguns exemplos do que significa abrir mão de liberdades individuais em nome do bem comum na atual crise:

  • Doações para ajudar quem precisa, e uma reflexão sobre a nossa relação com o assistencialismo
  • Destinação de leitos de hospitais privados para o sistema público de saúde
  • Priorização de políticas sociais como a Renda Básica, e políticas de apoio a pequenos empreendedores
  • Elevação de impostos sobre grandes riquezas e distribuição de lucro, bem como redução de salários e benefícios de servidores públicos com altos salários (lembrando que a maioria dos servidores públicos recebe salários baixos)

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